Alexandre Gomes: Romper os grilhões da cidade 

“Enfim, decreta-se que, neste país, não há propriedade, que tudo pode ser destruído por meio de uma lei sem atenção nem a direitos adquiridos, nem a inconvenientes futuros!” (Barão de Cotegipe, em discurso comentando a Abolição).

Por Alexandre Gomes*

Não é à toa a semelhança entre o irado discurso do Barão de Cotegipe, único senador a votar contra a Lei Áurea, e os costumeiros discursos que se ouvem, às vezes não tão publicamente, em relação à função social da propriedade. Em um caso, tal como no outro, trata-se de uma evolução no conceito de propriedade finalmente consolidado depois de décadas de luta e conflito político, econômico e social.

No primeiro caso depois de 38 anos de adiamentos e subterfúgios da chamada “abolição lenta e gradual” finalmente se obtém o reconhecimento daquilo que é obvio, que um ser humano não pode ser tratado como uma propriedade. No segundo ainda se luta para garantir que o objetivo da cidade não seja enriquecer a indústria imobiliária com o sacrifício da qualidade de vida dos cidadãos e do direito constitucional à moradia digna.

Neste momento no qual diversos estados e municípios preparam-se para mais uma Conferência das Cidades e a população paulistana inicia o processo de discussão de seu novo Plano Diretor Estratégico não é demais lembrar que o conflito essencial que se trava na batalha pela Reforma Urbana diz respeito à questão da propriedade. Sem a compreensão da relevância deste tema corre-se o sério risco de perder-se na emaranhada floresta de temáticas associadas à cidade e não distinguir aquelas questões de princípios pelas quais se devem travar as batalhas fundamentais e sobre as quais não é possível ceder terreno sem sofrer pesadas baixas.

A conjuntura atual é mais favorável ao pleno reconhecimento da função social da propriedade do que em outras lutas passadas. Com mais de 12 anos de existência o Estatuto das Cidades já é um documento amadurecido, com jurisprudência bem firmada a despeito das tendências mais conservadoras de parte do Judiciário, já produziu muitos filhos que regulamentaram e definiram vários de seus aspectos, já está incorporado em muitos Planos Diretores e leis instituindo o IPTU progressivo no tempo, inclusive na cidade de São Paulo.

Nas franjas da lei

Ao mesmo tempo nunca foi tão perceptível a contradição entre o crescente deficit habitacional, avaliado em 1,1 milhão de moradias em São Paulo, a degradação da qualidade de vida dos segmentos médios da população com bairros altamente verticalizados e os lucros fabulosos sem precedentes do setor imobiliário. Tendo consumido a maior parte dos recursos de financiamento da poupança até 2012, o setor imobiliário foi salvo pelas mudanças na poupança e pela injeção de novos recursos, bem como pela baixa inadimplência, que garantiu seu folego por mais dois anos no ritmo atual.

Apesar dos atrativos do programa Minha Casa, Minha Vida o setor imobiliário paulistano investiu pouco na área, em grande parte em função do alto custo da terra inviabilizar a produção lucrativa de unidades salvo em áreas muito periféricas, acentuando assim os problemas urbanos de mobilidade e má distribuição das densidades demográficas e de emprego que implicam em queda da qualidade de vida, muito tempo perdido nos deslocamentos, alto custo de transporte público tanto para o cidadão como para o poder público e ausência de vida urbana.

O crescimento também se deu tanto quanto possível nas franjas da lei. Seja pelo aproveitamento ao máximo dos estoques construtivos nas áreas e tipologias nas quais sobreviveram os resquícios dos velhos modelos de propriedade presentes nos zoneamentos anteriores ao PDE 2002, os quais por falta de força política das forças democráticas e populares da época cedeu-se através de emendas de última hora que descaracterizaram e quebraram a espinha dorsal do plano, seja pelo mais banal uso, e abuso, do “direito de protocolo”.

Este próprio custo da terra é profundamente afetado por estas concessões especiais de potencial construtivo que supervalorizaram as áreas onde foram concedidos e com isto esvaziaram todos os incentivos urbanísticos dados, por exemplo, às Zeis. Nestas, por sinal, quase que só se construiu através do Poder Público ou edifícios de alto padrão aproveitando-se do “direito de protocolo”. A maior parte permaneceu desocupada ou “disfarçada” como estacionamentos, esperando em algum momento a mudança de uso e o descadastramento como Zeis.

Zeis x Mercado

A competição futura que se dará entre as Zeis e as áreas de interesse do setor imobiliário deve se acentuar pois se dará não apenas como hoje por recursos e pelo “descadastramento como Zeis” das áreas de interesse imobiliário, mas também surgira uma competição pelos limites de suporte, já que a adoção de alguma forma de cálculo de suporte é praticamente inevitável dada a sensação de saturação da cidade.

Simultaneamente agrava esta contradição o fato da cidade estar próxima da máxima extensão possível de sua mancha urbana, com as áreas remanescentes sendo áreas de mananciais, de forte interesse na preservação ambiental ou passíveis de tornarem-se áreas de risco de difícil controle se povoadas. Assim a perspectiva de atendimento ao imenso déficit mencionado praticamente obriga a discussão sobre os padrões de verticalização, em especial se for buscado o desenho mais adequado de uma cidade compacta com o maior adensamento da população nas áreas dotadas de infraestrutura e próximos aos locais de trabalho.

É de fundamental importância que esta discussão sobre verticalização destas áreas para construção de habitação de interesse social não se confunda nem seja manipulada pelo interesse do mercado imobiliário na verticalização desenfreada e especulativa visando aumentar os rendimentos da terra. Uma correta análise e demarcação desta diferença essencial entre a verticalização que produz a Cidade Justa e a verticalização que produz lucros para alguns poucos é essencial para que se chegue mais próximo do consenso nas decisões sobre o futuro da cidade.

Da mesma forma é importante distinguir os empreendimentos imobiliários verticalizados construídos nas áreas dotadas de infraestrutura dos que moram nestes empreendimentos. A valorização das áreas produzida pelas obras públicas de infraestrutura e equipamentos urbanos públicos, em especial os de lazer, cultura e serviços ambientais, não foi apropriada pelos moradores, mas sim pelo mercado imobiliário, porque os moradores pagaram pelo “custo” desta valorização no preço dos imóveis.

Habitação: o começo de tudo

Assim, sem perder de vista que a Habitação de Interesse Social de qualidade e próxima dos centros de emprego é a questão central dos problemas da cidade – sem a solução do qual não se reduzirá a pressão sobre as áreas de preservação e mananciais, não se construirá um sistema de transporte eficiente, não existirá uma rede de serviços e equipamentos públicos otimizada e não se afastará as comunidades das áreas de risco – é possível ainda assim construir um programa amplo com outros segmentos da sociedade e dos governos democráticos e populares contra a força massiva – e não raro brutal – do mercado imobiliário.

Este programa deve estar centrado no atendimento à demanda pela moradia digna e na persuasão dos demais atores da relevância desta necessidade e na discussão sobre a aplicação efetiva do princípio da função social da propriedade, pela recuperação ao menos de parte dos investimentos públicos resultantes na valorização das áreas através da outorga onerosa, pela implantação de um coeficiente básico de aproveitamento, pela efetiva aplicação do IPTU progressivo no tempo para imóveis subutilizados e por um claro incentivo de interesse social e planejamento para as Zeis e áreas com alta densidade de infraestrutura cujo fator não seja superado por projetos de interesse apenas do mercado.

Paralelo a isto a definição de critérios claros de suporte da infraestrutura ao adensamento previsto, também com prioridade para a habitação de interesse social, tem as condições políticas para a construção de um programa comum com as agendas de outros segmentos da população.
Apenas confrontando a visão da propriedade urbana como mera fonte de lucro e não como elemento de justiça social, direitos e qualidade de vida se vai, de fato, romper os grilhões da cidade. Sem uma solução progressista para esta contradição se conseguirá no máximo que estes grilhões fiquem mais leves ou mais bonitos, mas eles continuarão impedindo a cidade de viver.

*Alexandre Gomes, sociólogo e blogueiro, é co-autor do livro Lições da Cidade – questionamentos e desafios do desenvolvimento urbano na cidade de São Paulo