Avanços e retrocessos na luta antimanicomial

Há 35 anos, quando trabalhadores da saúde e familiares fundaram o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), foi dado início a uma das maiores conquistas da saúde no Brasil: a luta antimanicomial que deu origem à Reforma Psiquiátrica.

Por Viviane Tavares, na página da Fiocruz

A partir da criação do movimento Por uma Sociedade sem Manicômios é que começou a ficar evidente que o modelo implementado até então não era o mais adequado. Depois de muitas denúncias das violências praticadas nos manicômios, da questão da mercantilização da loucura, com extensa rede privada na assistência e do despreparo dos profissionais, este modelo começou a entrar em decadência. Quase uma década depois surgiu o primeiro Centro de Atenção Psicossocial no país (Caps), na cidade de São Paulo. De acordo com o documento do Ministério da Saúde “Reforma Psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil”, o processo de intervenção no Hospital Anchieta, em 1989, e a criação do primeiro Caps, foram dois marcos de que a Reforma Psiquiátrica, ”não sendo apenas uma retórica, era possível e exequível'.

O dia 18 de maio surge nesse contexto para deixar registrado no calendário que essa luta não deveria ser esquecida. O presidente nacional da Associação Brasileira de Saúde e um dos fundadores da Reforma Psiquiátrica, Paulo Amarante, conta que a data surgiu no ano de 1987 durante o 1º Encontro Nacional dos Trabalhadores da Saúde Mental, na cidade de Bauru, em São Paulo. "O movimento começou com trabalhadores da área de saúde mental, mas depois vimos que era muito importante envolver a sociedade, levar a nossa luta para outros atores, entre os quais os próprios pacientes, os familiares e outros atores de movimentos sociais, como os de direitos humanos e da diversidade. Por isso é importante marcar uma data especial para esta luta. A ideia de manicômio passou a ser reconfigurada, não só como estabelecimento do hospício, mas do conjunto de saberes e práticas que falam sobre a loucura, a doença, saberes que são estigmatizadores, segregadores, etc.", relembra.

Avanços e retrocessos

Segundo o professor, esta luta está vivendo um novo capítulo agora. Entre os pontos de retrocesso estão a privatização da saúde, inclusive na área da saúde mental, com o crescente incentivo às comunidades terapêuticas, e a internação compulsória. Por outro lado, pesquisadores e trabalhadores da área reconhecem que também houve muitos avanços: ao longo destas quase três décadas, os investimentos do Ministério da Saúde mudaram da medicalização para o tratamento, exemplo disso é a criação dos Centros de Atenção Psicossociais (Caps), além da mudança de pensamento da população que atualmente acredita em maneiras alternativas de cuidado com os pacientes de doenças mentais.

A professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Nina Soalheiro indica também os fechamentos dos leitos de hospitais psiquiátricos como uma grande conquista. "O Brasil tinha um parque manicomial estimulado durante o período da ditadura e financiado pelo Estado, o chamado estímulo à indústria da loucura. Depois de muitos debates e com a aprovação da lei em 2001 – Lei 10.216/2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica) – começa a surgir de maneira mais forte a substituição deste modelo hospitalocêntrico e de exclusão por uma rede de serviços que vai sendo configurada no país inteiro", explica.

Paulo Amarante aponta também como conquista a grande mobilização em torno desta temática. Ele lembra que autores como Boaventura de Sousa Santos chega a reconhecer a luta antimanicomial como um dos maiores movimentos sociais do Brasil e da América Latina. "O mais interessante disso tudo é que a luta é um movimento, não é uma associação nem entidade. Mas tem legitimidade e representação no Conselho Nacional de Saúde e vários estaduais e municipais. Isso criou uma dimensão de participação muito grande em todo o país. Agora, o 18 de maio ficou pequeno, já falamos em semana da luta antimanicomial e até já chamamos o mês de maio de mês da luta antimanicomial", reflete.

A importância do Caps

Com a publicação da Portaria GM nº 3088, de 23 de dezembro de 2011, instituiu‐se a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para pessoas em sofrimento decorrente de transtorno mental, consumo de crack, álcool e outras drogas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Fazem parte da rede o Centro de Atenção Psicossocial , Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Centros de Convivência e Cultura, Unidades de Acolhimento, leitos de atenção integral, além de outras iniciativas, como o programa De Volta para Casa, que oferece bolsas a pacientes egressos de longas internações em hospitais psiquiátricos.

Dentre estes, o Caps é considerado a principal alternativa ao modelo de manicômios. Eles são divididos em Caps dos tipos I, II e III, Capsi (para crianças e adolescente) e Caps ad (álcool e outras drogas), de acordo com o tipo de cuidado e complexidade do caso. Atualmente, conforme dados do Ministério da Saúde, existem 1.981 Caps em todo o território nacional.

Amarante reconhece que o número de Caps aumentou, mas considera ainda insuficiente por conta da demanda. O próprio Ministério da Saúde mostra que 3% da população geral sofrem com transtornos mentais severos e persistentes, ou seja, 5,7 milhões pessoas. Outras 12 milhões apresentam transtornos psiquiátricos graves decorrentes do uso de álcool e outras drogas; e 12% da população, ou cerca de 23 milhões de pessoas, necessitam de algum atendimento em saúde mental, seja ele contínuo ou eventual. "Houve um certo desinvestimento do Estado. Mas não é particular da saúde mental, é do SUS como um todo. Paradoxalmente, estamos diante de um governo popular que está assumindo mais os interesses privados, como o estímulo aos planos de saúde, as filantrópicas."

Comunidades terapêuticas

O Conselho Federal de Psicologia apresentou em 2011 o Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas, em que mostra violações das mais diferentes formas em 68 comunidades terapêuticas em 25 estados diferentes. "Há claros indícios de violação de direitos humanos em todos os relatos. De forma acintosa ou sutil, esta prática social tem como pilar a banalização dos direitos dos internos. Exemplificando a afirmativa, registramos: interceptação e violação de correspondências, violência física, castigos, torturas, exposição a situações de humilhação, imposição de credo, exigência de exames clínicos, como o anti-HIV – exigência esta inconstitucional –, intimidações, desrespeito à orientação sexual, revista vexatória de familiares, violação de privacidade, entre outras, são ocorrências registradas em todos os lugares", diz o relatório.

Paulo Amarante lembra que há um distanciamento do projeto original das comunidades terapêuticas. "O termo comunidade terapêutica diz respeito a um projeto muito importante surgido na Inglaterra no pós-guerra de democratização das instituições psiquiátricas. Militares, inclusive, naquela visão de reconstrução da democracia, queriam, por meio das comunidades terapêuticas, desenvolver um projeto para envolver aqueles pacientes crônicos abandonados, sem perspectiva de tratamento em atividades cotidianas, como ajudar a fazer comida, a discutir o que está ruim e o que está bom, no tratamento em geral. E isso teve efeitos terapêuticos maravilhosos", lembra e completa: "A princípio, a comunidade terapêutica não pode ser um local fechado, onde há violência, onde não tenha direitos, ou seja, tudo ao contrário do que essas comunidades estão apresentando. Além disso, elas dizem respeito a um serviço de saúde e não são. São serviços muitas das vezes de caráter religioso e que visam ao lucro. Agora a novidade é que todo mundo descobriu como tirar dinheiro do SUS e essa é uma nova fonte", analisou.

O deputado Adriano Diogo (PT/SP), que é presidente da Frente Parlamentar de Luta Antimanicomial, defende que as comunidades terapêuticas são manicômios disfarçados. "Agora o poder público dá este nome pomposo, mas não passam de centros manicomiais. Elas continuam usando o sistema de tranca, de isolamento, de incomunicabilidade. A maioria é de pessoas que usam isso como negócio, para ganhar dinheiro, com poucas e honrosas exceções. É um depósito de gente", diz.

A presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, Vivian Fraga, denuncia que o Estado deveria investir mais dinheiro no SUS no lugar de financiar este tipo de tratamento. "Organizações religiosas não deveriam receber subsídios do Estado. Infelizmente, tal prática não está isolada em São Paulo ou no Rio de Janeiro. Estamos falando de uma diretriz do próprio Ministério da Saúde e financiada, em alguns estados, pela política de assistência social", aponta.

A professora da EPSJV Nina Soalheiro relembra que durante a ditadura militar houve um crescimento estrondoso de leitos privados e que agora esse fenômeno vem se repetindo. "È evidente que a saúde mental optou estrategicamente por fazer o credenciamento de instituições por pressão dos setores evangélicos do Congresso e agora passa a regulá-las. Em relação ao incentivo a este modelo, vemos isso de forma clara como o recente programa instituído pelo estado de São Paulo, que entrega um valor à família e já destina o seu uso. É uma bolsa que garante a essas clínicas uma clientela cativa. O Estado então se exime da responsabilidade, financiando um setor privado, que além de tudo tem muitos problemas", informa, citando o programa Cartão Recomeço, que destina uma bolsa de R$ 1.350 por mês para custear o tratamento do usuário de crack, mas este benefício só pode ser gasto em comunidades terapêuticas conveniadas ao programa.