Vladimir Safatle: A imposição da memória

Quem chega a São Paulo de avião desce no Aeroporto Internacional André Franco Montoro. Caso queira ir para o interior, pegará a Rodovia Carvalho Pinto. Mas, se preferir ir em direção à capital, ele entrará na Marginal Tietê e passará pela Ponte Orestes Quércia.

Por Vladimir Safatle*, na Carta Capital

Se for minimamente atento, verá placas indicando o Rodoanel Mario Covas, que também dá nome a um parque na Avenida Paulista, e a um viaduto que ganhou nome composto no centro da cidade. Se gostar de artes, poderá conhecer o Centro Cultural Ruth Cardoso. Mas, cuidado, se não tiver senso de direção, corre-se o risco de ser obrigado a atravessar o Túnel Maria Maluf.

Quem faz esse passeio turístico pelas ruas de São Paulo imagina que a profusão de monumentos dedicados a políticos, a mulheres de políticos e até mesmo a mães de políticos deve expressar um profundo amor e devoção da população paulista por aqueles que os governam e os governaram. Afinal, a maneira como a memória social configura os espaços públicos e marca os monumentos não é uma questão menor.

Ela define os nomes e eventos nos quais uma sociedade reconhece suas aspirações. Ela é a face mais visível do que um povo procura guardar do passado e projetar no futuro. No fundo, é dessa forma que uma sociedade escreve a sua história, definindo, através do espaço urbano, seus próprios processos de transmissão.

Quem passa por uma Rua Doutor Sérgio Fleury um dia se perguntará quem é afinal de contas esse personagem ilustre a entrar pela boca da população todas as vezes que ela precisar nomear a referida rua.

Mas um espírito de porco, que não conhece a grandeza de nossos governantes, poderá ser incrivelmente maldoso e vir com a ideia de que essa gestão pública da memória social expressa, na verdade, a maneira com que o poder impõe à sociedade certas aspirações e uma história escrita sob medida para os interesses do presente.

Como se estivéssemos diante de uma memória imposta que visa fornecer a narrativa edificante de que sempre fomos governados por “grandes homens e mulheres”.

Esse espírito de porco poderia ser ainda mais infame e perguntar-se se os paulistas não estariam mais bem representados em sua capacidade de criação e em suas reais aspirações se pudessem descer no Aeroporto Internacional Mário de Andrade, pegar a Rodovia Sérgio Buarque de Holanda, passar pela Ponte Plínio Marcos, ver placas indicando o Rodoanel 16 de Abril de 1984 (o dia do comício pelas Diretas Já, no Vale do Anhangabaú: a maior mobilização pública da história brasileira, com 1.500.000 pessoas) e visitar o Centro Cultural Tarsila do Amaral.

De fato, e isso vem da época da República Velha, certos políticos brasileiros mantêm a bizarra compulsão a se autocelebrar ou a celebrar seus aliados falecidos. Nesse ponto, eles não são muito diferentes do presidente do Uzbequistão ou do prefeito centenário de qualquer vilarejo perdido nas brumas do tempo.

Pelos seus ternos e profissionais de marketing, há uma classe de políticos que gostaria de se ver como expressão mais bem acabada da modernidade gerencial cosmopolita e refinada. Mas, pelas suas práticas dignas de Odorico Paraguaçu, eles mostram seu verdadeiro arcaísmo provinciano.

No entanto, seria mais correto com o povo brasileiro que eles parassem de tentar marcar os espaços públicos com a história de suas alianças e filiações. Talvez não haja maior exemplo de privatização do espaço público do que esse sequestro dos monumentos e logradouros por aqueles que se julgam estar a escrever a história brasileira em sua versão regional.

Seria mais justo com todos os brasileiros que o Poder Judiciário moralizasse tal prática, impedindo o uso do nome de políticos que ocuparam cargos administrativos nas últimas décadas para a nomeação de logradouros e outros espaços públicos.

Enquanto isso, a maioria da população de São Paulo perde o contato com seus grandes artistas e intelectuais, que são a verdadeira célula motora do nosso desenvolvimento. 

*Vladimir Safatle é filósofo e professor universitário brasileiro.