Luiz Flávio: Cura gay e a intolerância religiosa

Propostas pouco respeitosas às crenças das pessoas ou à diversidade, em pleno século 21, como é o caso da “cura gay” da homossexualidade, deveriam ser sumariamente arquivadas (em razão da sua mais absoluta falta de consistência científica).

Por Luiz Flávio Gomes*, na Carta Maior

O deputado João Campos (PSDB-GO), autor do texto arquivado, pediu sua retirada da pauta; mas o projeto pode ser reapresentado no ano seguinte.

De que maneira devemos enfrentar questões polêmicas como essa? Martha C. Nussbaum (La nueva intolerância religiosa) invoca o auxílio de Sócrates, na antiga Atenas. A cidade de Atenas foi uma grande democracia, porém seu povo, muitas vezes, caia no canto dos demagogos irresponsáveis. Eram frequentes os erros humanos fundados na insensatez, no peso da tradição e na parcialidade egoísta. Foi nesse contexto de falácias coexistentes com as verdades que o filósofo Sócrates desafiou a sociedade ateniense para levar uma “vida examinada”. E o que significava (e significa ainda hoje) isso?

Nunca podemos nos considerar exceção aos argumentos que queremos que tenham valor para os outros. E o contrário também é verdadeiro: nunca devemos excetuar os outros em relação aos argumentos que nós achamos válidos para nós mesmos. Se a liberdade de crença é sagrada e todos nós temos que respeitá-la, indefectivelmente, o que vale para ela tem que valer para as crenças e formas de vida das outras pessoas.

O seguinte: que devemos criar uma democracia que seja reflexiva, não impetuosa (voluntarista, vulgar, impensada). Devemos ser mais deliberativos e menos irreflexivos, sobretudo nas questões que dão ensejo a uma confrontação mútua. Toda pessoa, para não ser idiota, deve participar da vida política, mas buscando razões para seus posicionamentos não meras afirmações; temos que ser coerentes em nossas opiniões.

Ainda consoante Martha C. Nussbaum (La nueva intolerancia religiosa), para evitar a nefasta tendência de encurtar nossa visão sobre as coisas, sobretudo quando nos concentramos em nós mesmos, esquecendo-se do mundo, necessitamos assumir, antes de tudo, o compromisso socrático (que também é cristão e kantiano) de “examinar” as eleições que fazemos e verificar se são, ou não, egoístas e unilaterais.

Não podemos nos converter em exceções privilegiadas aos princípios que queremos que sejam aplicados para todos os demais. Não podemos nunca ignorar o pleno e igual reconhecimento dos direitos de todas as pessoas, respeitando suas eleições de vida, enquanto elas não afetem interesses concretos de terceiros.

Não podemos nunca dispensar o espírito interior que nos conduz à coerência, que nunca pode ser um propósito vazio. Necessitamos do espírito de progresso, de evolução, porém, antes de tudo, de boa convivência. Porque isso é civilização e não barbárie!

*Luiz Flávio Gomes é jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil