Patriota: Brasil consolida papel soberano e responsável no mundo

O Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GRRI), que reúne partidos políticos, movimentos sociais e acadêmicos no estudo e debate da política externa brasileira, inaugurou nesta segunda (15) a Conferência Nacional “2003-2013: Uma Nova Política Externa”, com a apresentação, entre outras, do ministro das Relações Exteriores, Antônio Patriota, que falou da trajetória do país no âmbito internacional e regional e de temas da atualidade.

De São Bernardo, Moara Crivelente para o Vermelho

A continuidade da tendência progressista no governo da presidenta Dilma Rousseff e a necessidade da participação da sociedade na elaboração da política externa brasileira foram os marcos da introdução do evento, feita por Iole Ilíada Lopes, vice-presidenta da Fundação Perseu Abramo, e pelo reitor da Universidade Federal do ABC (UFABC), professor Hélio Waldman, e pelo presidente do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, Luiz Marinho.

Iole, como representante do GRRI, falou da perspectiva que uniu mais de 70 membros em torno da necessidade de debate da política externa brasileira, cujo objetivo seria, para o grupo, a contribuição para o desenvolvimento e a democratização, a visão de inserção soberana do Brasil no mundo e o uso da política externa como um instrumento para a paz, a justiça e a democracia.

Neste sentido, o Brasil, afirma Iole, na busca maior “autonomismo” e protagonismo, diversifica as suas relações (com foco nas relações sul-sul), visando constituir olhares alternativos aos hegemônicos, com a centralidade na integração latino-americana.

E para que a política externa brasileira, já avaliada desde uma perspectiva positiva, possa representar mais avanços, necessários e possíveis para o país, ressalta a representante do GRRI, “é preciso fazer mais, pois há questões que ainda precisam ser enfrentadas”, com base fundamental no debate com a sociedade, para tornar a formulação da política externa mais legítima, democratizada.

O reitor da UFABC ressalta o espaço e a naturalidade com que os temas internacionais são tratados no âmbito público de outras regiões, como a própria Europa e os Estados Unidos, “pois há consciência de que o tema é importante para o lugar deles no mundo”. 

“Percebi que há um grande alinhamento entre a postura de abordagem sobre as relações internacionais e a proposta que orienta a nossa UFABC. Isso não é muito surpreendente, porque tanto nesta nova política externa como na criação da universidade tem o dedo do presidente Lula”, disse Waldmann.

Inserção universalista de paz e cooperação

O ministro Patriota ressalta que já em 2003 “o que começa a mudar é o que está sobre a mesa. Tínhamos a Alca [Aliança de Livre-Comércio das Américas] e a Nafta [Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio]”, mas a entrada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no governo provocou uma reformulação deste cenário.

Para começar, a integração regional foi posta entre os principais tópicos da agenda internacional autonomista e soberana do Brasil, com o projeto Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa), depois desenvolvido na atual União de Nações Sul-americanas (Unasul), e uma série de outros diálogos, fóruns e cúpulas de aproximação regional e interregional, um investimento sem precedentes na política externa brasileira.

“Foi o caso dos diálogos Brasil-Comunidades Caribenhas (Caricom), região em que o abrimos embaixadas em cada um dos países, para o desenvolvimento de projetos e também para a celebração de um passado comum, como a escravidão, o que nunca tinha feito parte da nossa agenda”, disse o ministro.

Patriota deu exemplos gerais das dimensões da política externa brasileira em mudança, com um novo olhar sobre a nossa região, o que “também mudou a forma do país olhar para o mundo em desenvolvimento, os contatos sul-sul e com os emergentes. Foi um período criativo e propositivo, que não fazia parte do tom do Brasil na política internacional”, disse.

“Nos primeiros dias do novo governo Lula, em janeiro de 2003, houve a reunião do que se transformaria no fórum Ibas (Índia, Brasil e África do Sul), as três grandes democracias em desenvolvimento”, ressalta o ministro, que também menciona avanços significativos na aproximação do Brasil com o mundo árabe, com a África e com a Ásia, dando exemplos concretos da cooperação internacional entre as regiões, através de mecanismos sólidos.

Para exemplificar a tendência de relações de cooperação construída entre países emergentes, com grande protagonismo do Brasil, o Ibas tem 10 anos com “uma agenda ampla e ambiciosa”, inclusive com um fundo para programas avançado no Laos, na Palestina, no Burundi, entre outros, em todas as regiões em desenvolvimento.

Já em 2009 organizou-se a primeira cúpula do grupo que ficou conhecido como Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e, posteriormente, a África do Sul), potências emergentes representantes de quase todos os continentes do globo. “O Brasil aproveitou a oportunidade e passou a realizar reuniões do grupo nas principais capitais do mundo”, conta Patriota.

Fundamental ressaltar também que o Brasil passou a ser observador na Liga Árabe, na União Africana e abriu numerosas embaixadas no Oriente Médio, no Caribe e na África. Mas essa aproximação não se deu em detrimento da aproximação com o mundo desenvolvido, ressalva.

“Há vários exemplos de busca de uma relação mais madura, como com a União Europeia (UE), em que tivemos um nível de interlocução elevado”, diz o ministro. Em 2007 formalizou-se, por exemplo, o estatuto de “associação estratégica” entre o país e o bloco. Além disso, há novos consulados dos Estados Unidos no Brasil, com mudanças no processo de emissão de vistos, além do estabelecimento de mecanismos para o debate da discriminação racial nos dois países, onde vivem as maiores comunidades afrodescendentes das Américas, sublinha Patriota.

Criatividade e justiça social na política externa

O chanceler brasileiro ressalta também um período criativo e inovador, de introdução de novos temas na política externa mundial, como o combate à fome e à pobreza, uma “iniciativa ambiciosa” fixada na agenda com grande ativismo do ex-presidente Lula. A declaração final da conferência Rio+20, por exemplo, cita a erradicação da pobreza como o centro do rumo do desenvolvimento, quando há pouco tempo não havia consenso sobre a centralidade deste tema (antes se pensava em primeiro promover o crescimento econômico, que depois se “despejaria sobre a sociedade”).

O governo Lula contribuiu para transformar esse debate, assim como na área dos direitos humanos, com secretarias e conselhos federais, e também na democratização dos métodos de trabalho dos organismos internacionais, ou seja, na reformulação da configuração internacional, de acordo com Patriota.

“A política anterior era mais reativa, privilegiava o comercial, econômico, financeiro, sem grande criatividade; ter cotas no Fundo Monetário Internacional ou um papel importante na OMC, o que ainda é importante, mas a atitude era diferente”, diz o ministro, ressaltando a diversificação da agenda brasileira para além dos temas do comércio internacional, antes dominantes.

“Por exemplo, no encaminhamento de debates como a ação no Iraque, ou a reforma da Organização das Nações Unidas”, são iniciativas que muitos, na política nacional, “ainda viram com receio”, dando voz à preferência para âmbitos comerciais.

Entretanto, o país conseguiu elevar o seu perfil no próprio plano do comércio e da economia, por exemplo, com o Ibas, “já que só assim o G20 comercial pôde se sustentar na OMC, porque havia apoio ao novo status”, diz Patriota, ainda que tenhamos acionado “em sua plenitude o que pode se chamar de uma agenda política: não é só o comercial e econômico que nos interessa”.

Continuidade integracionista e universalista

Atualmente, com o governo Dilma, não há ruptura ou interrupção, ao contrário. Busca-se “construir sobre essa base inovadora que abriu caminhos e trouxe novas possibilidades, ainda não totalmente aproveitadas, mas que estão em período de consolidação e ampliação, a partir da experiência dos oito primeiros anos do presidente Lula, do ministro Celso Amorim [enquanto chanceler] e com o Itamaraty sob a secretaria de Samuel Guimarães”, afirma Patriota.

Por exemplo, no âmbito regional, o Mercado Comum do Sul (Mercosul) é presidido pela Venezuela, a Bolívia negocia a sua integração, e o Suriname e a Guiana acabam de iniciar o processo de associação ao bloco. Todos os países da América do Sul são membros, ou observadores, ou associados, e a própria Unasul tem um papel mais profundo. Exemplo disso é um dos últimos conselhos criados, para a observação eleitoral, que apoiará a legitimidade regional da democracia.

Além disso, o ministro também ressaltou a institucionalização da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), também no governo Dilma, a partir da iniciativa do ex-presidente Lula, com a primeira reunião entre chefes de Estado do Caribe e da América Latina. “Nunca tínhamos tido esse nível de reuniões com essa disposição de buscar caminhos comuns” na região.

Consolidação, ampliação e aprofundamento são características da política externa do governo, com a busca pela verdadeira e efetiva universalização das relações diplomáticas do Brasil. O país é o único da América que tem relações com os 193 países membros da ONU, e também com a Palestina, reconhecida Estado observador não-membro da organização em 2012 (o segundo é o Canadá, que não tem relações com o Irã).

“Isso reflete não apenas o desejo do Brasil de assumir responsabilidade nos assuntos mundiais, mas uma posição de cooperação, de compartilhar experiências que podem ser úteis, com uma agenda de benefícios mútuos, inclusive com presença comercial em vários países do mundo”, ressalta o chanceler.

Perspectivas futuras do Brasil no mundo

No plano multilateral, o mesmo movimento continua a se observar, lembra Patriota: “Não há tema hoje em dia de relevância para o futuro da ordem internacional, debatido em instâncias multilaterais (comercial, paz e segurança, ambiente, ou outros), em que as impressões digitais do Brasil não sejam perceptíveis”, e isso se enquadra na ideia de autonomia, de capacidade propositiva.

“No futuro, os desafios não são minimizados. É preciso lembrar dos extraordinários trunfos de que o Brasil dispõe. Território, população, recursos, ambiente democrático, melhoria da integração social, geografia integrada em uma região sem tensões entre países, e sem inimigos”, exemplifica o ministro.

“O futuro sul-americano é de crescente cooperação em todas as áreas em ambiente democrático e com o mínimo de tensões, embora haja ainda várias situações persistentes, tensões eventuais”, embora o Brasil se beneficie de um momento de crescimento e desenvolvimento social, em ambiente de cooperação, democrático, sem armas de destruição em massa.

“Estamos numa posição bem singular entre o grupo de potências estabelecidas e potências emergentes. Na medida em que há a transição para a multipolaridade, ainda há riscos para uma ordem mais democrática e equitativa, em que o Brasil possa desempenhar um papel mais construtivo, um papel que o país tem postura única pra desempenhar, por sua relação com os diferentes povos, de aproximação e cooperação”, explica.

Descongelamento do poder e multipolaridade

Mencionando um “descongelamento do poder”, Patriota afirma que “os mais fortes ficam relativamente mais fracos, não só por funções mensuráveis como o PIB, mas também por equívocos graves na condução da sua política externa, como a intervenção norte-americana no Iraque, e a crise de 2008, que também revelou falta de sabedoria e habilidade de gestão, enfraquecendo a possível liderança do mundo desenvolvido”.

Entretanto, as potências ainda exercem seu poder de forma unilateral, ainda sem consideração pelo direito internacional, comportando-se como em regimes de exceção.

De acordo com Patriota, um dos exemplos que salta a atenção é Israel, que continua construindo assentamentos ilegais numa situação de ocupação, contra os princípios de direito internacional: “Um país com reivindicações legítimas de segurança, mas com posturas unilaterais que serão cada vez mais difíceis de aceitar num mundo cada vez mais multipolar”.

Neste sentido, Patriota diz que a questão é “como aproveitarmos o momento de descongelamento e da multipolaridade para construir uma ordem internacional de maior cooperação e diálogo, com um espaço de paz, democracia e progresso consolidado?”. O Brasil tem um papel importante nisso, sobretudo fundamentado no direito internacional.

Temas recentes continuam ressaltando a imperfeição desse sistema atualmente, como o episódio da espionagem estadunidense revelada pelo ex-agente da Agência Central da Inteligência (CIA) norte-americana, assentado na “violação do Pacto de Direitos Civis e Políticos, em seu artigo 17, que garante o direito à privacidade (inclusive eletrônica)”, diz o ministro, que também dá como exemplo o recurso a aviões não tripulados (drones) para o combate ao terrorismo pelos Estados Unidos, mas que produzem efeitos devastadores contra os civis. São reflexos do unilateralismo anterior.

Sobre o papel do Brasil, outros temas tratados foram a expansão da cooperação internacional, através do estabelecimento da Agência Brasileira de Cooperação e Desenvolvimento (ABCD), proposta pela presidenta Dilma para adicionar o “desenvolvimento” à equação já existente; o uso dos recursos dos royalties do petróleo do pré-sal para a educação e, entretanto, a manutenção do compromisso com uma matriz energética limpa (de hidrelétricas e biocombustíveis) e a questão do asilo a Snowden, cujo caso Patriota referiu à Cúpula do Mercosul, na semana passada, em que o Brasil se pronunciou de forma condenatória contra os EUA também pela sua perseguição.

Participação da sociedade civil

Também se lançou o desafio de maior participação da sociedade civil na formulação da política externa brasileira, que Patriota exemplificou com experiências positivas, como a realização da conferência internacional Rio+20, com comissões em diferentes setores da sociedade em diálogo com o governo para a organização e formulação do evento.

(Foto: Ricardo Alemão Abreu, secretário de Relações Internacionais do PCdoB e membro do GRRI, lendo a carta do grupo dirigida ao ministro).

“A experiência nos encoraja a buscar uma fórmula de coordenação, consulta e diálogo que possa ocorrer em intervalos regulares”, com uma interação mais direta, disse Patriota. “Os entendimentos para a criação de um foro já estão bastante avançados com a presidenta Dilma, e a proposta deve ser posta em prática antes do fim do ano, num mundo em que o Brasil tem cada vez mais a dizer”, ressaltou.

Além disso, há o grande desafio da governança global, apesar da crescente multipolaridade e descongelamento, disse o ministro, “mas não há ainda no horizonte uma solução para a reforma do Conselho de Segurança da ONU, para o qual queremos mobilizar a sociedade”. A agenda da reforma é encabeçada por diversos países emergentes, principalmente o Brasil, que se veem cada vez menos representados por um sistema internacional institucionalizado em torno da antiga “ordem internacional”.

No final do evento, representantes do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais entregaram ao ministro uma carta do grupo, em que se propõe a constituição de um mecanismo institucional direto de participação civil, consultivo e deliberativo, sobre a formulação da política externa brasileira, com base nas formulações já previstas na Constituição Federal, para maior legitimidade e afinidade com a sociedade. A carta, segundo o grupo, “reflete o acúmulo de debates do GRRI”.

Atualizada às 12h08