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Jeosafá Gonçalves: A forma leninista perdeu a validade?

Para um Partido Comunista a questão da forma não é secundária, porque diz respeito à natureza proletária e aos objetivos revolucionários estratégicos da organização.

Por Jeosafá Fernandes Gonçalves*

Esse aspecto foi alvo de acérrimas polêmicas no período da 2ª. Internacional e, a rigor, só foi equacionado satisfatoriamente, no âmbito da Revolução Russa de 1917, quando Lênin, num combate teórico e ideológico agudo a Plekanov e a diversas outras correntes políticas atuantes no campo revolucionário, sistematizou as duras experiências dos trabalhadores russos e envidou todos os seus esforços intelectuais e sua vida para estruturar o PSDOR (depois Partido Comunista).

Obviamente o Brasil não é Rússia de 1917, e perto de 100 anos nos separam da revolução que virou o século 20 do avesso e de cabeça para baixo. Porém é necessário refletir: 1) se a forma de organização revolucionária proposta por Lênin está superada e decidir e 2) em caso afirmativo, se ela é ainda referência prática, não apenas teórica, para os comunistas PCdoB.

Essas duas indagações ganham certa feição retórica, uma vez que os estatutos do PCdoB são peremptórios na defesa da forma leninista de organização partidária. No entanto, entre as letras dos documentos partidários e a realidade há um hiato que merece ser alvo de debate.

Os estatutos do Partido estabelecem uma situação que deve ser perseguida diuturnamente por todos os militantes, da base ao Comitê Central, mas que é fruto do embate consciente entre a determinação militante e a realidade social, na qual o Partido se insere e na qual busca extrair os melhores lutadores.

Movimentos sociais, culturais, intelectuais, populares têm sua própria forma de organização, sempre adequadas dinamicamente aos respectivos objetivos. Quanto mais fortes e atuantes esses movimentos, mais suas formas de organização repercutem em outras das quais estão próximos ou com as quais compartilham militantes. Estruturas não são despidas de sentidos: são entes históricos, portam carga social e, antes de formas vazias, muito menos neutras, são verdadeiros depositórios de culturas organizativas, hábitos, costumes longamente sedimentados e práticas sociais intrinsecamente ligadas às origens de que partem.

Quando o Partido opta corretamente por se enraizar em todas as dimensões da vida social, por um lado o faz estabelecendo canais e estruturas de contato com todas as organizações com as quais se comunica, porém, não o faz sem riscos, uma vez que é também um organismo vivo e sobre pressão em sentido contrário: as organizações com as quais se comunica também, voluntariamente ou não, podem, numa relação dialética de pressão e contrapressão, exportar para o Partido suas práticas, seus costumes, suas culturas organizativas.

Caso no campo da luta política o Partido não equacione dinamicamente essa contradição, na prática, vai tendo suas estruturas assimiladas às das organizações sociais com as quais faz interface, seja elas sindicatos, associações de moradores, grupos culturais, gabinetes parlamentares ou do poder executivo, entre outros.

Uma vez que nenhuma estrutura é neutra, imperando em organismos do Partido costumes, práticas e formas de mobilização exteriores a ele, esses organismos deixam de perseguir, na prática, os objetivos partidários, e passam a se converter em satélites de objetivos circunscritos à organização com a qual comunica.

Obviamente o Partido não deve impor sua cultura organizativa – sistematizada nos Estatutos – às organizações de massa, muito menos converter gabinetes parlamentares ou dos executivos de que faz parte em meras extensões de comitês partidários. No entanto, há que se cuidar para que o Partido não se dilua na prática, pois, quando isso ocorre, a forma própria forma leninista foi simplesmente destruída.

A estruturação partidária leninista diz respeito a um longo estágio da luta de classes divisado por Lênin, na qual a luta contra as formas cada vez mais monopolistas e financeirizadas do capitalismo exige uma organização revolucionária hierárquica, cujas bases, órgãos políticos de circunscrição claramente definida, têm por responsabilidade, na luta prática e na luta de ideias, disputar e conquistar corações mentes para transformação revolucionária da sociedade.

Essas organizações de base, por sua vez, reportam-se à estrutura partidária imediatamente superior – e esta à qual se submetes e assim sucessivamente. Uma vez diluída, vale dizer, destruída, a estrutura da base, os militantes não mais se reportam à estrutura superior, mas ao líder pessoal, ao chefe do departamento, ao parlamentar, ao secretário de governo ou ao amigo de maior experiência.

O problema, então, não é haver lideranças carismáticas, nem chefia de gabinetes, nem parlamentares ou mesmo prefeito comunistas – ao contrário, é extremamente necessário que haja mais, posto que a luta hoje tem nos executivos e parlamentos o epicentro, sem sombra de dúvidas. O problema é nos descuidarmos de diariamente, dinamicamente, dialeticamente, insistentemente lutarmos para manter as estruturas partidárias em funcionamento com objetivos e tarefas e mediatas e imediatas claramente estabelecidas.

Se do ponto de vista programático e estatutário o PCdoB está no caminho certo desde 1922, muitas vezes áreas do Partido se descuidaram desse particular. O resultado não custa a aparecer: perda de mandatos, perda de sindicatos, perda de militantes – e perda de rumo.

Dos órgãos partidários, nestes tempos de crescimento do Partido e de ampliação de influência, os mais necessitados de cuidados são os intermediários e as células de base, verdadeiras placentas de militantes revolucionários. São eles também os mais frágeis e expostos a, no embate de classes, verem suas estruturas se diluírem em face de outras, externas ao partido, mais poderosas.

Em que pese à consistência dos atuais documentos partidários, as duas indagações do segundo parágrafo deste texto não podem ser respondidas de uma vez para sempre: precisam respondidas cotidianamente, uma vez que ser comunista, não sendo uma opção definitiva, é um batismo diário.

*Jeosafá Fernandez Gonçalves é militante PCdoB São Paulo.