Angelina Anjos: Os filhos e as avós

Algumas das cenas mais tocantes que alguém poderia ver hoje são aquelas do filme Olga, em que ela se dirige a seu companheiro, Luiz Carlos Prestes, pouco antes de ser executada pelos nazistas. Terminada a amamentação da filha deles, Anita, ela sabe que lhe resta pouco tempo de vida. Sua carta pertence ao que de mais emocionante um ser humano pode escrever e ler.

Por Angelina Anjos, especial para o Vermelho

Parecia que nada mais brutal poderia ser feito por seres que se dizem humanos. Mas a ditadura argentina conseguiu superar essa crueldade – se é que algo pior ainda poderia ser realizado.

Levantamento do Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels) aponta que 1861 pessoas, entre civis e militares, estão ou já estiveram ligadas a casos de crimes cometidos durante a ditadura. Desse total, 244 já foram sentenciadas culpadas.

Em julho de 2012, terminou o último julgamento nos tribunais de Buenos Aires, com as condenações dos ex-ditadores Jorge Rafael Videla e Reynaldo Bignone e outros nove militares e civis declarados responsáveis pela implementação de um plano sistemático de sequestro de crianças que nasceram em centros de torturas como a Escola de Mecânica da Marinha (Esma) e maternidades clandestinas.

O regime de terror argentino prendeu jovens militantes – frequentemente casais – e, depois de torturá-los selvagemente, quando a moça estivesse grávida, fazia com que ela desse à luz, antes de executá-los. Nem permitia que a jovem mãe conhecesse seu filho e o amamentasse. Esses bebês foram extraídos dos seus pais e dados para serem criados por outras pessoas – via de regra militares, policiais ou gente ligada a eles – como se fossem seus próprios filhos.

A organização das Avós da Praça de Maio se dedicou à investigação do paradeiro de militantes de esquerda e 500 crianças sequestradas pela ditadura civil-militar argentina. Trata de buscá-los, considerando as circunstâncias de parte da história desses meninos e meninas que não tiveram como opção saber da sua origem real.

Hoje já somam 109 os que elas denominam de jovens “regatados”, que conseguiram conhecer sua verdadeira origem, conhecer quem foram seus pais e afirmar sua identidade.

Entre tantos casos dolorosos, veio ao Brasil para um ato da Secretaria de Direitos Humanos um deputado kirchnerista – Juan Cabandié, reeleito parlamentar esta semana, com a maior votação do seu partido em Buenos Aires – que aos 27 anos começou a desconfiar que a história que seus supostos pais lhe contavam não era real. Buscou as Avós e começaram a pesquisar, até que, dois anos depois, descobriram que seus pais tinham sido militantes montoneros, presos aos 18 anos ele, aos 16 ela, e executados pelo regime de exceção argentino.

O desaparecimento como um crime contínuo, pois nunca se caracteriza como vida ou morte e suas consequências individuais e coletivas, como a impunidade, são responsáveis por uma impressão de que o passado sobre as ditaduras do Cone Sul é infinito, pelas dificuldades de elaboração, representação e simbolização, ou ainda, de que o presente encontra-se esgotado do passado, processo de constante postergação de identidade.

Neste contexto é necessário indagar-se sobre quais mecanismos levam um indivíduo a executar ato vil, como o do sequestro de filhos de militantes políticos, não simplesmente por uma predisposição à violação de direitos, mas por considerar esse procedimento necessário, tendo em vista um objetivo maior, que levou em consideração, mais que o desaparecimento físico, o aniquilamento da possibilidade de se contar a própria história.

O desenrolar do árduo e incansável trabalho realizado pelas Avós da Praça de Maio é um ato que condiciona o povo argentino ao direito à memória e à verdade, é uma luta histórica por justiça. Afirma que é inadmissível viver com fantasmas e feridas abertas. Ninguém terá o direito de ocultar os fatos e entorpecer a memória.

O trabalho dessas avós é imprescindível pela restauração da verdade, como evento histórico, para a honra da memória, em homenagem aos que tiveram suas vidas ceifadas em prol da democracia. Ter acesso à verdade não como forma de revanchismo, mas pela formação da memória coletiva, resgate civilizatório, de redefinição do passado, reflexão do presente e projeção para o futuro.

Realizam um movimento que age no imaginário coletivo, promove a repactuação do povo com sua própria história, ao passo que revitaliza na memória que a vida não pode ser regida por uma relação de dor e ódio, mas sim criar uma racionalidade coletiva capaz de abstrair aquela tragédia humana.

O exemplo das Avós da Praça de Maio deve servir de marco civilizatório para o Brasil, que vivencia oficialmente, desde maio de 2012, a Comissão da Verdade, para investigar as violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. A Comissão é resultado de uma longa negociação para se investigar os crimes durante a ditadura militar (1965-1985) – processo em que o Brasil, comparado com seus vizinhos latino-americanos, se encontra particularmente atrasado.

Em 2009, no decorrer dos trabalhos de buscas dos restos mortais realizados pelo então Grupo de Trabalho Tocantins, atualmente Grupo de Trabalho Araguaia, os ouvidores receberam como relato de um ex-guia de militares, que além de uma menina, mais sete crianças, filhas de guerrilheiros, desaparecem da região, dentre elas, um menino menor, que conforme relatos do irmão é filho de Osvaldo Orlando da Costa, mais conhecido como “Osvaldão”.

É importante conhecer e enumerar todos os casos de sequestros de filhos de militantes políticos. A exemplo disso, em maio de 2010, foi comprovada a existência da filha de Antônio Teodoro de Castro, o Raul, desaparecido no Araguaia em 1974.

O juiz espanhol Baltasar Garzón defende que no caso brasileiro se optou "pela verdade histórica e pela reparação coletiva que isso supõe", à revelia – pelo menos até o momento – da justiça. É o mesmo que ocorre na Espanha onde, lembrou, não foi permitida investigação devida dos crimes cometidos durante a ditadura do general Francisco Franco (1939-1976). A Argentina, por sua vez, se encontra num estágio avançado de julgamento dos crimes do seu período ditatorial; Garzón a vê como um "protótipo" da "proeminência à justiça sobre os outros âmbitos".

Na visão de Garzón, a investigação de crimes deve ser baseada num tríplice eixo baseado na busca pela verdade, a reparação às vítimas e a instauração da justiça (isto é, o julgamento e, se for o caso, a criminalização dos devidos responsáveis). "Eu sempre me caracterizei por reivindicar a ação da Justiça como um dos aspectos fundamentais dos três que integram o direito das vítimas à verdade, à reparação e à justiça. Deveria haver, em qualquer país, esta opção."

A Comissão da Verdade que a sociedade afirmou como necessidade, no 1º Encontro da Sociedade Civil pela Verdade, Memória e Justiça, em Jordanésia, no Cajamar/SP, foi que esta deve ter poderes plenos para precisamente estabelecer a verdade. Ter acesso a todos e cada um dos documentos, pessoas, circunstâncias, testemunhos, vítimas, e que se estabeleça como critério o direito à verdade, à reparação e à justiça.

É preciso que o Supremo Tribunal Federal seja pautado pela sociedade para que reinterprete a Lei da Anistia no Brasil, para que fatos similares nunca mais aconteçam, para que jamais nenhum destino seja desviado, podado, açoitado, desaparecido. Para que o Brasil faça a reconciliação com seu passado, e que a palavra liberdade seja exercida plenamente por todos os povos da América Latina.

*Angelina Anjos é assistente social, militante da luta pelos direitos humanos, membro do Comitê Paraense pela Verdade, Memória e Justiça e filiada ao Partido Comunista do Brasil.