Filme reflete sobre risco de uma sociedade sem amor

O hormônio do amor, a oxitocina, é produzido pelo cérebro e liberado durante o parto para induzir as contrações do músculo uterino durante o trabalho. É ele que estimula a secreção do leite materno, favorece a relação mãe e filho e regula comportamentos sociais. Qual o futuro de uma humanidade nascida cada vez mais por cesarianas e oxitocina sintética? A indagação filosófica permeia a narrativa do documentário O Renascimento do Parto, em cartaz nos cinemas.



O médico Michel Odent / imagem: divulgação

O médico e pesquisador Michel Odent, referência mundial na matéria, é quem faz o questionamento no longa-metragem do casal Érica de Paula, doula e educadora perinatal, e de Eduardo Chauvet, cineasta e produtor audiovisual. A exibição do filme, em cartaz desde a sexta (9), foi prorrogada até quinta-feira (29) em algumas salas (confira abaixo).

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“Hoje, nós podemos entender que a capacidade de amar é, em grande parte, organizada e construída durante o período em torno do nascimento. Em um nível planetário, o número de mulheres que dão a luz a seus bebês e placentas somente por conta da liberação do coquetel de hormônios do amor está se aproximando a zero”, lamenta Odent, que na década de 1970 ele foi o responsável pela difusão do homebirth (parto em casa).

A oxitocina sintética foi criada artificialmente para substituir o hormônio natural. Ao optar pela cesárea, a mulher não está no mesmo nível hormonal que uma mulher que dá à luz naturalmente. Para se ter uma ideia da importância do hormônio, cientistas estudam sua relação com suicídio, autismo e até anorexia, cujo aumento das taxas está relacionado ao tipo de parto. Isso nos leva a crer que a forma como chegamos ao mundo tem relação direta com o desenvolvimento de comportamentos autodestrutivos. Ou seja, “para mudar o mundo é preciso mudar a forma como nascemos”, como defende Odent.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a taxa ideal de cesarianas deve ficar entre 7 e 10%, não ultrapassando 15%. Desde a década de 1960, no entanto, o que se vê é uma epidemia mundial. No Brasil, segundo levantamento da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, o índice de cesarianas saltou de 32% (1994) para 52% em 2010. Na Holanda, essa proporção é de 14%, nos Estados Unidos 26%, no México 34% e no Chile 40%.

Protagonismo da mulher

Uma das críticas feitas no filme é o da perda do protagonismo da mulher e a chamada violência obstétrica. Um levantamento da Fundação Perseu Abramo, divulgado em 2010, demonstrou que uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto. E não se restringe a violência física. As mais comuns são gritos, procedimentos dolorosos sem consentimento, falta de analgesia e negligência.

O ato de parir deixou de ser um evento fisiológico, familiar, para se tornar um procedimento médico, invasivo, com diversas intervenções desnecessárias, incluindo a episiotomia (corte feito no períneo, entre a vagina e o ânus).

Para o obstetra Ricardo Jones, a mulher no parto perdeu o protagonismo inerente. “O ator principal do parto tornou-se o médico, homem. O produto desse nascimento é o bebe. E a mulher um subproduto secundário. Para o surgimento do modelo obstétrico contemporâneo, era fundamental que se criasse a ideia de que as mulheres são essencialmente incompetentes, incapazes para dar conta do processo de nascimento por si mesmas”, analisa Jones no documentário.

É em meio a esse cenário que surge o ativismo pelo parto humanizado em maternidades, casas de parto ou em sua própria casa. Ricardo Jones, que é coordenador nacional e membro do Conselho Consultivo da Rede pela Humanização do Parto e Nascimento (ReHuNa), lembra que o local mais adequado para a mulher ter seu filho é onde ela se sinta mais segura, como mesmo atesta a OMS: “É onde ela se sinta mais segura. Para muitas o lugar mais seguro é a sua casa, para outras uma casa de parto e para outras o lugar mais seguro continuará sendo o hospital. E todas elas precisam ser contempladas por nosso sistema de saúde”.

Denúncia e mitos

O documentário reúne diversas denúncias sobre práticas que vem sendo naturalizadas nas maternidades, principalmente particulares, para impor a cultura da cesariana. Os depoimentos de médicos sobre a dinâmica das maternidades privadas revelam a lógica adotada pelo sistema de saúde, que prioriza a agenda dos consultórios, fonte maior de renda dos profissionais. Por isso, deixam de atender um trabalho de parto natural por demandar muitas horas de cuidado e atenção. Em muitos depoimentos é possível enxergar os esforços dos obstetras em convencer a “paciente” de que a cesariana é mais fácil de controlar, menos arriscada e que não traz risco ao bebê.

E os argumentos são os mais diversos. “Por que ela é muito nova para parir. Por que o bebê é grande e não passa. Por que a mulher é velha. Por que ela é muito gorda. Por que ela é muito magra. Por que ela é sedentária. Por que ela pode ficar larga. Por que dói muito”, diz Ana Cristina. Ela completa seu depoimento lembrando que a cesariana ganha patamar de “cirurgia salvadora”. “A sensação entre o público leigo é de que o bebê foi salvo. Se na cesárea nasceu daquele jeito, imagina se tivesse esperado mais três semanas?”, comenta, referindo-se ao fato de que muitas vezes as cesarianas são feitas com muita antecedência, que pode resultar numa prematuridade do bebê.

Ricardo Chaves, médico pediatra, faz uma reflexão interessante: “Nós combinamos com o bebê que ele vai nascer sexta-feira às 4 da tarde. E se combinamos ele nos respondeu que ele tem condição de nascer? Essa combinação é impossível de haver, não existe.”

Ainda sobre o desenvolvimento da criança, o público toma conhecimento no documentário de que 40% dos bebês nascem com o cordão enrolado no pescoço, o que torna o fato algo fisiológico e natural. No entanto vem sendo alimentado o “mito do cordão assassino”.

Segundo o Conselho Federal de Medicina, a cesariana acarreta quatro vezes mais risco de infecção pós-parto, três vezes mais risco de mortalidade e morbidade materna, riscos de prematuridade e mortalidade neonatal, recuperação difícil da mãe, maior período de separação entre mãe e bebê além de elevação dos gastos para o sistema de saúde.

“O filme choca, encanta, emociona, faz rir, faz chorar, e muito. Afinal, todos nascemos, parimos ou somos paridos! O Estado há de se posicionar com clareza e urgentemente pra conter o desrespeito ao fisiológico e à ciência moderna em favor dos interesses financeiros de grandes corporações”, conclui Eduardo Chauvet.

Em 2011, o Ministério da Saúde criou a Rede Cegonha, dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), para atender mulheres e recém-nascidos de forma humanizada. Cerca de cinco mil municípios aderiram ao programa. Até 2014, o ministério afirma que investirá cerca de R$ 9,5 bilhões no programa. Desde 2005, a legislação garante a presença de um acompanhante no parto e pós-parto nas maternidades do SUS. Em dezembro do ano passado, uma portaria do Ministério da Saúde regulamentou esse direito. Os hospitais do SUS têm até junho para se adaptar à medida.

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Deborah Moreira
Da redação do Vermelho