As gordas nas telenovelas e na vida real
Ignominia na tevê: personagem obesa em novela da Globo ridiculariza mulheres que fogem ao padrão de beleza dominante. Uraniano Mota contrapõe, ao ridículo da novela, um trecho de seu romande O filho renegado de Deus
Por Urariano Mota
Publicado 30/08/2013 15:26

Leio nos jornais que Perséfone, a personagem obesa da novela Amor à Vida, é um dos núcleos de comédia na trama. Na telenovela, diferente da deusa na mitologia, Perséfone é mulher carente e virgem com mais de 30 anos. Vale dizer, ela é um amontoado de insucessos, piadas e desastres. Os colunistas de sucesso e superfície perguntam: será que a enfermeira virgem tem jeito? Será que um dia ela vai se apaixonar por alguém, ou pelo menos levar um homem para a cama?
Não sei se o grande público vive tão brutalizado que não vê nem percebe a mofa e zombaria que a telenovela faz com a vida de todos. Estão rindo de quê? Não veem que zombam das suas mulheres nas cozinhas, nos ônibus, nas ruas, no trabalho, tão obesas quanto a caricatura da novela? Ao que parece, não, porque a cada capítulo os jornais repetem e comentam a última de Perséfone, que ora vai para uma festinha atrás de um novo alvo e entra na mira de dois bandidos, ora sai correndo do quarto, com as roupas de um rapaz nas mãos, quando seu robe acaba esbarrando numa das velas românticas e pega fogo. Que engraçado, que comédia. O quanto é diferente essa personagem risível de uma pessoa real. Que diferença da tevê para uma gorda de nossas vidas. Os escritores que vemos o Brasil com a memória do coração temos outra realidade. Deixo para os leitores um trecho do meu romance O filho renegado de Deus.
É curioso, no entanto, como as mulheres vizinhas guardavam de Maria outra visão. Elas a reconheciam como uma senhora decidida, solidária e resguardada de merecer piedade. Ela rejeitava, “me repugna”, como dizia, qualquer piedade para a sua condição. Mulher brava, de coragem e de raiva. Do gênero e da forma daqueles bravos a quem os fracos não temem, porque sabem que essa bravura se dirige somente contra o injusto mais forte. Lídia, a sua jovem comadre, dela falaria na lembrança em 2012: “Ela era uma mulher bonita, de rostinho redondo, com os olhos pequeninos, muito vivos. Para mim, era uma boneca índia”. E com os olhos rasos d’água desse modo a recordava a se balançar na cadeira, como a lembrar em silêncio a injustiça que atravessa a vida de mulheres como Maria, uma injustiça que também era feita contra ela mesma, Lídia, depois de passar por fracassados casamentos. A feminilidade, nelas, para elas, era um sofrimento. O que nos homens era desejo, danação, para elas era um vexame, como um dia na Ponte Duarte Coelho em que Lídia recebeu um vento tão forte, na chuva, que a impediu de caminhar, porque a saia levantou e as coxas ficaram à mostra. “Dona Maria era muito bonita, com os olhos miúdos, negrinhos”, repete. E cala, e embarga a voz. “Vocês não querem sapoti? Tá fresquinho”, oferece.
Em Jimeralto, que a ouve, dá uma bruta e brutal vontade de a abraçar, de lhe dizer “eu compreendo os seus sapotis, eu compreendo a sua dor, eu sei da sua infelicidade, eu sei do que você não se queixa, do que a magoa, eu sei, amiga da minha mãe”. E mais, amarga como uma proposta e uma promessa que é uma formulação de princípio: “Eu não vou calar o seu mundo!”. Ele sabe, e não diz nem a si mesmo, que revê em Lídia aquela Maria que se foi tão pletórica, vermelha, no vigor e sangue farto na altura dos seus 30 anos. Ah, é da sua natureza de homem a reencarnação, ah, é do seu gênero, gênese e ser de transmigração, como se o espírito quisesse um novo corpo para uma vida que não foi possível. Dói nele uma dorzinha doce e fina porque Lídia não é a sua mãe, mas sabe que por ela será capaz de a ouvir e de lhe falar. Com a intensidade aguda de um violino em uma romanza, naquela, ele sabe, guardada em seu silêncio, naquela maldita e fina romanza número 2 em fá maior.
Porque tudo então lhe recorda a senhora gorda, albacora, albacora brava e bonita como uma bonequinha índia.