João Sicsú: “Trabalhador brasileiro passou a exigir mais”

Duas semanas antes de as manifestações de junho tomar o país, o economista João Sicsú entregou para a Geração Editorial a versão final do livro “Dez anos que abalaram o Brasil – E o futuro?”, um balanço sobre os resultados, as dificuldades e os desafios dos governos de Lula e Dilma. Ele não precisou fazer nenhuma alteração para encaixar o livro dentro do cenário que despontava com os protestos.


“Não precisávamos das manifestações para que os governos percebessem o que estava acontecendo. Grande parte da população brasileira já tinha realizado seus desejos, ainda que limitados, de consumo. Limitados do ponto de vista da classe média; do ponto de vista dos trabalhadores, foi uma revolução o que aconteceu. O sujeito mudou a casa dele, comprou sofá, televisão, geladeira…”, afirma o ex-diretor do Ipea em entrevista ao Blog do Dirceu.

Ele avalia que a década de governos democráticos e populares no país, inaugurada em 2003 com a posse do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, deixou o brasileiro mais exigente. Isso inclui demandas em lazer, cultura, transporte e saúde, entre outras. “Toda essa pauta apareceu para o trabalhador, que passou a ter renda regular e consumo regular. Ele passou, de fato, a exigir mais.”

O livro também chama atenção para pontos fundamentais, mas pouco ressaltados, sobre as mudanças no governo. Por exemplo, a ênfase no investimento, e não apenas no consumo.

E também não deixa de lado os desafios que precisam ser enfrentados: “As políticas na área de educação, saúde e transporte público são necessariamente demoradas porque demandam investimentos, embate político, discussão”. E alerta que, se não é possível atender essas demandas imediatamente, é igualmente impossível fugir da pauta. “A única forma de conciliar anseio e realização imediata é ter direção política.” Confiram nossa conversa:

Blog do Dirceu: Muitos afirmam que o PSDB seria melhor gestor econômico. O estudo que você fez permite confirmar esta tese?
João Sicsú: A gestão econômica do PSDB foi uma tragédia em termos de resultados sociais. Um avanço importante foi o Plano Real (1994) que, de fato, derrubou a inflação, mas isso não ocorreu não apenas no Brasil. Era uma fase na qual diversos países tinham alta da inflação, todos os países já tinham mais ou menos copiado uns dos outros a forma de derrubar a inflação. E ao aplicarem tais planos muitos foram bem sucedidos. Em alguns casos, com maior intensidade; outros com menor.
Aquela fórmula era abraçada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), mas abraçada em sua forma mais radical. O caso do Equador é exemplar. Eles abriram mão da moeda nacional e trocaram o sucre pelo dólar. Teve o caso argentino, intermediário, onde fizeram a conversibilidade, um peso valia um dólar. E o caso brasileiro, que foi um caso em uma intensidade menor, uma boa alternativa, aquela relação do real com o URV.
Então, era esperado que a inflação caísse. Aquilo era uma reinvenção do que havia sido aplicado na Alemanha na década de 1920. Mas esperava-se que, com a queda da inflação, o Brasil pudesse dar seus primeiros passos para o desenvolvimento, com redução do desemprego, distribuição de renda, aumento do salário mínimo, aplicação de programas sociais. Esses são os primeiros passos para o desenvolvimento. Contudo, essas bases para o desenvolvimento apenas foram lançadas entre 2003 e 2012. Elas não foram lançadas entre 1995 e 2002. Nós chegamos em 2002 com um desemprego em 12,5%, com desesperança, um aumento envergonhado e muito limitado do salário mínimo, com distribuição de renda muito desfavorável aos trabalhadores.
O único passo dado que tem um sinal positivo da administração do PSDB foi a derrubada da inflação, mas que não foi uma invenção do PSDB, foi uma cópia patrocinada pelo FMI, bem aplicada, mas que não foi aproveitada. Lembrem-se que na Argentina o De La Rua saiu fugido da Casa Rosada de helicóptero, o Gutierrez no Equador da mesma forma, e o Fernando Henrique saiu politicamente desmoralizado.

E o Fujimori para a prisão…
Exatamente. O fato é que derrubar a inflação que o PSDB tanto valoriza foi importante, mas em momento algum mostra que isso tenha sido algo genial. Era algo esperado, tal como aconteceu nos demais países. Agora, se o PSDB tivesse, de fato, obtido resultados sociais da sua política econômica, aí eu diria que ele teria sido um grande gestor econômico. Mas daquela política econômica não saiu nenhum resultado social tal como nós tivemos em 2010.

Quais as principais transformações estruturais produzidas pelos governos Lula e agora Dilma? Na última década principalmente, a razão de ser do seu livro “Dez Anos que Abalaram o Brasil”?
A principal transformação estrutural no Brasil foi a constituição de um grande mercado de consumo de massas. Essa é a grande transformação. A política implementada para conquistar esse mercado teve início na primeira fase do governo Lula, com aumento do salário mínimo e a ampliação do crédito. Esses foram os primeiros passos que levaram à redução do emprego e ao aumento da formalização do trabalho.
Em uma segunda fase do governo Lula, já no seu segundo mandato, as políticas de consolidação de um modelo macroeconômico para o desenvolvimento foram mais amplas. Os bancos estatais foram utilizados como instrumentos de política macroeconômica, ampliando o crédito em momentos de dificuldade, reduzindo os juros. A política fiscal, basta olhar os números, foi uma política anticíclica. Quando o Brasil precisava aumentar os gastos porque estava ameaçando uma desaceleração, eles foram aumentados. E houve uma tendência de redução da taxa de juros, ainda que tenha sido reduzida em uma velocidade menor do que a dos últimos dois anos.
Outro aspecto, muito pouco mencionado e uma variável muito importante para conter o desemprego e a redução da formalização do trabalho, foi a ampliação do investimento. Muito se fala que o governo Lula foi um governo que valorizou o consumo, sim, valorizou o consumo, devemos enfatizar isso até porque é um resultado social da política econômica, as pessoas têm de ter acesso à geladeira, fogão… Agora, temos de lembrar que no segundo mandato do governo Lula o investimento crescia entre duas e três vezes o crescimento da economia, um número bastante elevado para os padrões atuais.
O crescimento médio do governo Lula no segundo mandato foi 4,6%, tendo no ano de 2009 um crescimento negativo. Então, incluindo esse ano que foi basicamente zero, somando os quatro anos e dividindo por 4, tivemos um crescimento de 4,6%. E o investimento crescia muito. Apenas no último ano do governo Lula, a taxa de crescimento do investimento foi 21,5%.
O governo Lula não pode ser caracterizado como um governo que só estimulou o consumo, ele na verdade estimulou o investimento e o consumo. Nenhum empresário investe sem perspectiva de vender, ou seja, você estimula o consumo. Em seguida, você tem como resultado uma decisão empresarial de realizar investimento. Houve uma grande transformação econômica no Brasil, nós ampliamos a força de trabalho no país, formalizamos esta força, constituímos um grande mercado de consumo de massas e o trabalhador passou a ter direito ao consumo.

Aliás, o centro do ataque da direita contra o governo Lula foi o investimento e o consumo. Ora eles falam contra o consumismo, ora contra o BNDES, a flexibilização fiscal que permite exatamente os investimentos públicos…
Em relação à questão fiscal, não existe equilíbrio fiscal sem crescimento econômico. Essa ideia de buscar equilíbrio fiscal com o país crescendo pouco é impossível. Nós não buscamos equilíbrio fiscal por uma questão religiosa ou uma lição doméstica de que não se gasta mais do que se ganha. Nós buscamos equilíbrio fiscal para podermos ter orçamento para gastar no momento em que for necessário. Se você está desequilibrado, com uma economia fiscal fraca, chega o momento de gastar e você não tem munição.
O que aconteceu foi que recuperamos, completamente, o lado fiscal durante o governo Lula porque nós promovemos crescimento. Crescimento, obviamente, amplia arrecadação a uma velocidade muito maior do que os gastos. Isso é um resultado conhecido do ponto de vista da teoria econômica. Toda vez que a economia cresce, o déficit nominal cai. Isso é muito conhecido. E todas as vezes que a economia desacelera acontece o contrário.
Existem economistas que dizem “precisamos fazer o equilíbrio fiscal, vamos cortar gastos”. Eu diria que para fazer o equilíbrio fiscal é preciso ampliar gastos para a economia crescer, aumentar a arrecadação e a arrecadação sempre cresce em uma velocidade maior do que os gastos. A arrecadação é feita de uma forma bastante capilarizada e rápida. O gasto é mais lento. Essa ideia de que havia uma gastança irresponsável durante o governo Lula, os números derrotam essa tese. Nós vivemos o melhor momento fiscal do Brasil, exatamente durante o governo Lula.

As manifestações de junho trouxeram algumas demandas. No seu livro você afirma que a tarefa dos governantes para os próximos dez anos será muito mais difícil. Por quê? Quais os principais desafios daqui para frente?
Eu entreguei o livro antes das manifestações de junho, dia 30 de maio. Mas não precisávamos das manifestações para que os governos percebessem o que estava acontecendo. Grande parte da população brasileira já tinha realizado seus desejos, ainda que limitados, de consumo. Limitados do ponto de vista da classe média; do ponto de vista dos trabalhadores, foi uma revolução o que aconteceu. O sujeito mudou a casa dele, comprou sofá, televisão, geladeira…

Vinte milhões de empregos, é uma revolução social…
Nosso mercado de consumo era de 85 milhões de pessoas – da classe de renda A B e C. Isso passou para 122 milhões; 42 milhões de pessoas novas consumindo regularmente. Esta é uma mudança na vida das pessoas que não podemos desconsiderar. Você ter acesso a uma geladeira, ao fogão, associado ao Luz para Todos, que fez uma revolução silenciosa, mas fundamental na vida das pessoas.
Estava claro, portanto, as pessoas começaram a transitar nas cidades e a perceber que é possível ter saneamento, segurança pública, saúde e educação. Afinal, os trabalhadores frequentam os bairros ricos porque precisam trabalhar e percebem que o mundo que eles viviam era muito limitado. Eles realizaram parte do que é possível realizar. A realização dos seus direitos de urbanidade estavam muito limitados. Eles tinham realizado o direito à renda, ao trabalho e ao consumo, mas perceberam que uma parte da sociedade tem algo que eles não têm e eles querem esses direitos. Querem segurança pública, educação, saúde, saneamento…

Fora lazer e cultura.
Lazer, cultura, transporte, toda essa pauta apareceu para o trabalhador que passou a ter renda regular e consumo regular. Ele passou, de fato, a exigir mais. Há uma consciência nesta saída proposta que é coletiva e pública. Os trabalhadores não dizem “eu quero aumento de salário para pagar plano de saúde” ou “para botar meu filho na escola particular” ou “para comprar medicamento”. O que o trabalhador está dizendo é “eu já realizo o consumo privado, agora eu quero investimento público para todos. Eu já realizo consumo, quero agora é que o governo realize um investimento que me beneficie, escola pública de qualidade para o meu filho, saúde pública, gratuidade no medicamento”.
Veja que, apesar do bombardeio da mídia – não apenas contra o governo, mas contra o Estado também – a figura do Estado não foi desvalorizada. Muito pelo contrário. O trabalhador já resolveu parte do problema dentro da casa dele, mas fora da casa, ele não pode resolver. Fora de casa quem tem de resolver é o Estado. A consciência coletiva não é “eu preciso de mais salário e menos Estado”, mas sim “eu preciso de mais Estado porque já tenho emprego e renda”.
Essa pauta é muito importante agora e demanda iniciativa política, direção política, para atendê-la e orientá-la. Diferentemente de emprego, renda e consumo, que nós podemos reverter em dois ou três anos, rapidamente. Todo aluno de primeiro período de economia sabe como faz para aumentar o emprego, ampliar salários, controlar inflação, isso é reconhecidamente algo que se pode fazer rápido. Em um ou dois anos, você transforma uma situação de desemprego, de descontrole inflacionário. Essas políticas macroeconômicas são de rápido controle.
Agora, as políticas na área de educação, saúde e transporte público são necessariamente demoradas porque demandam investimentos, embate político, discussão.

Licitação, tribunal de contas, meio ambiente, empresas…
Sim, tudo isso demora muito e você não consegue atender imediatamente. Não consegue atender, mas não pode fugir da pauta. A única forma de conciliar anseio e realização imediata é ter direção política. Eu penso que o governo nesses últimos dois anos tentou fazer mais do mesmo, tentou dizer, eu vou fazer mais do que o Lula fez, criar mais emprego, crescer mais, e isso a população já estava satisfeita.

Combater mais a pobreza…
Essa é uma pauta econômica que dá resultado social no mercado de consumo. Não dá resultado quando o sujeito tem de entrar no trem, no metrô, no hospital, na escola. É preciso conciliar políticas públicas e desejos… aí precisamos ter direção política. Penso que o governo não se empenhou em ter direção política para conciliar este anseio imediato e a realidade que é “eu vou te oferecer essa escola, mas não posso te dar hoje”. Para fazer essa ligação é preciso ter direção política. Aí, realmente, ocorreram muitas dificuldades.

Como nós vamos financiar esses investimentos? Porque estamos com essa questão de limite orçamentário de investimento. Se você olhar o orçamento nos últimos dois anos, nós estamos batendo nos R$ 70 bi de investimentos, já incluiu no PAC, fora as estatais… No último quadriênio do FHC, eram R$ 10 bi. Como lidar com essa questão principalmente em saúde, educação e mobilidade urbana, que exigem grandes investimentos e aumento do custeio fortemente? A reforma tributária é uma saída.
O financiamento destes segmentos é sempre um problema para o Brasil e para qualquer governo. São montantes elevadíssimos de recursos. Há um lado que é necessário pensar como financiar. Tem outro lado importante, nós temos de pensar uma forma dos investimentos públicos terem um impacto maior sobre a sociedade do que têm hoje.
Uma escola, por exemplo, não pode mais ser pensada da forma tradicional. Não é possível construir mais uma nova escola, colocar mais professores e outra e mais outra. Nós temos de colocar tecnologia, ciência e inovação no investimento público; e preciso que este tenha um impacto mais amplo. Precisamos pensar de forma diferente, sermos ousados no investimento público. Reproduzir o investimento na forma tradicional é não utilizar toda a potencialidade dos recursos públicos. Temos de ampliar muito e é possível e em todas as áreas, saúde, educação. A questão da tecnologia no investimento público para mim é um ponto decisivo.
O financiamento. De fato, nós precisamos da reforma tributária. Precisamos desonerar trabalhadores. Desonerar o consumo, a produção e o investimento. Mas, precisamos, tributar as altas rendas e as grandes fortunas. Esse é um embate político importante que devemos ter e certamente teríamos o apoio da sociedade. É simbólico nessa tributação sobre a riqueza a inexistência de qualquer tributo sobre helicópteros, jatinhos, iates. O tributo é zero. Mas, quem tem carro popular é obrigado a pagar todo ano seu IPVA.
Quem tem iate, jatinho, helicóptero está desobrigado a pagar seu IPVA. É preciso analisar com cuidado. Esses impostos seriam impostos estaduais, como o IPVA. Alguns Estados tentaram tributar, mas os proprietários recorreram e a história foi parar no STF. É preciso uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) para poder tributar jatinho, helicóptero etc. Porque isso foi votado no STF – o relator foi o Gilmar Mendes, dizendo o seguinte “esse IPVA só vale para veículos de 4 rodas” (ou algo semelhante). Foi votado então que, da forma como está, a Constituição só permite tributar automóveis e veículos automotores, não vale para jatinhos, iates e helicópteros.
Já o imposto sobre heranças e doações também é estadual e foi reduzido ao mínimo, é simbólico. E o imposto máximo que temos sobre as rendas é de 27,5%; se você colocar pessoa jurídica é menos ainda. Temos de mudar a estrutura tal como fizeram nos países mais avançados, e o Imposto de Renda passar a ser a principal fonte de arrecadação, ao lado do imposto sobre riqueza, e não o imposto indireto (consumo, IPI, PIS, Cofins), que tem de baixar.
Agora, a justiça fiscal não se faz só pelo gasto, se faz pela arrecadação também. Então, o governo tem que gastar construindo escolas, hospitais, fazendo o Bolsa Família etc, mas também tem que arrecadar de quem tem capacidade de contribuir. Temos de fazer uma reforma tributária que tenha uma escala de alíquotas mais favorável para os debaixo, e de acordo com a capacidade de contribuição dos de renda mais elevada. Temos de ter impostos sobre a riqueza e também sobre aplicações financeiras, mas também sobre jatinhos, helicópteros e sobre heranças e doações. O Brasil tem de ficar mais parecido com os países desenvolvidos em termos de sistema tributário. Não dá para termos um sistema tributário de país atrasado querendo ter serviços de países avançados.

Como você vê a questão do serviço da dívida interna, que consumiu em média 5% do PIB nos últimos anos? O serviço da dívida está dentro da média mundial, com juro real como nós pagamos no Brasil?
A tendência tem sido de queda. Nós temos uma taxa de juros muito alta no Brasil.

São R$ 200 bilhões, o orçamento da saúde e educação está em R$ 150 bi, os dois ministérios… Ao todo, R$ 200 bi da dívida interna que saem direto do bolso do consumidor, do empresário, da família. Mesmo que a estrutura tributária esteja invertida, ela é regressiva, indireta, onera a produção, os investimentos e a exportação foram muito desonerados nos últimos anos, mas ainda onera. Nos próximos dez anos, há possibilidades de reduzir isso?
Esse gasto de R$ 200 bi tem um problema adicional, além do seu volume. Quando nós gastamos na Previdência Social um volume imenso de recursos, isso tem um resultado extremamente positivo para a economia. Porque quem recebe o benefício da Previdência Social transforma aquilo tudo imediatamente em gasto no supermercado. Então, isso ativa a economia, o emprego, o comércio.
Agora, quando eu gasto R$ 200 bi com serviço da dívida, eu estou remunerando aquele que não vai transformar aquilo em gasto. O sujeito vai pegar aquele montante e transformar em título da dívida pública, ou vai viajar para Nova York, entesourar no exterior, comprar produto importado de alto valor. Esses recursos não são um gasto do governo que pode ser considerado benigno. Fosse um gasto jogado de helicóptero na rua, seria muito mais proveitoso para o país porque quem pegasse o dinheiro iria gastar. Ali, quem recebe inutiliza os recursos do ponto de vista da dinâmica do país e dos resultados sociais.
Tem que mudar a concepção do controle da inflação no Brasil. Já tem sido mudada, mas é preciso mudar mais. Eu me assustei com a elevação dos juros pelo Banco Central nos últimos meses e o anúncio de que vai elevar ainda mais. Basta você olhar o gráfico da inflação. Você percebe que o Brasil está tendo um ciclo inflacionário, sobe e desce, que depende de choques climáticos, um problema aqui e acolá que são isolados. Nós não temos um descontrole inflacionário que justifique elevarmos a taxa de juros para desacelerar a economia. A economia brasileira já está desacelerada. É preciso desacelerar mais ainda? Para a taxa de juros ter impacto sobre a inflação, os juros têm que antes desacelerar a economia, mas a economia já está desacelerada. O Banco Central está dizendo: “É preciso desacelerar mais ainda”.
Todos estavam percebendo que a inflação ia despencar porque há uma correlação muito forte no Brasil entre a variação dos preços dos alimentos e a inflação nos últimos quatro anos. Você coloca os dois gráficos e vê claramente isso. Todos percebemos que a partir de abril o preço dos alimentos estava despencando, então a inflação também ia despencar. Mas o BC elevou os juros e disse que vai elevar de novo. Quando ele faz isso ele impõe um tremendo custo à dívida pública e está provado que essa administração da inflação via taxa de juros tem muito menos a ver com nível e mais com a variação.
Países avançados que utilizam esse método têm uma taxa de juros de 2%, 1%, aí eles aumentam para 1,25%. Esse é o sinal de que o governo e o banco central vão agir contra a inflação. Então, muito mais vale aumentar e diminuir do que o nível onde está. O Banco Central poderia reduzir muito a taxa de juros para ela ficar num patamar não deste de 7,25%, que foi adotado recentemente. Tinha de ter reduzido muito mais para conquistar um novo patamar, mais baixo ainda, e aí poder aumentar e diminuir. Nós precisamos sinalizar com aumentos e diminuições, mas num patamar menor do que este. Um patamar que gere muito menos custos. Não é o nível que determina quanto vamos ter de inflação, pelo menos para administrar as expectativas de inflação. Não é o nível, mas a variação.
O BC foi bastante ousado num determinado período, entre agosto de 2011 até início de 2013, mas neste ano, parece que o BC sofreu pressões políticas fortes.

Ao contrário do que dizem, o BC subiu os juros politicamente. Diziam que era técnico porque a pressão inflacionária isso e aquilo… Criaram a expectativa, o governo não respondeu politicamente, não disputou na mídia e na sociedade, e essa expectativa depois virou inflação mesmo porque as pessoas começaram a marcar os preços.
Eu acompanho aquelas pesquisas Datafolha sobre popularidade do governo e tem sempre ali algumas perguntas de economia. Neste ano de 2013, aumentou muito a avaliação de pessoas dizendo “a inflação vai aumentar”, diferentemente de 2012 e 2011. Mas sabe o que vai acontecer na realidade, em 2013? Nós vamos ter a menor inflação em relação a 2012 e 2011. Nós tivemos 6,5% em 2011, 5,84 no ano passado e vamos neste ano ter 5,8% ou menos.
Nesse ano, a população acha que a inflação vai subir, mas na realidade ela está menor.

Como você vê a imprensa, particularmente a imprensa econômica no país?
O jornalismo econômico no Brasil perdeu muito de sua qualidade nos últimos anos. Nós tínhamos um bom jornal que era a Gazeta Mercantil, muito bom. Chegamos a ter o Valor como um jornal de muita qualidade. Mas mesmo o Valor nos últimos anos caiu de qualidade, é um jornal muito dirigido pelas ondas da política nacional e hoje é muito difícil ter informação e análise da economia onde se produza um debate a partir da imprensa. Seja na TV ou nos grandes jornais. Os demais veículos têm ainda um impacto muito pequeno. O Valor há uns 3 ou 4 anos chegou ao seu auge e agora passou a ser também um instrumento a serviço da política e da oposição, tal como os outros são abertamente.
A GloboNews e seus debates são completamente dirigidos para um determinado público. De vez em quando, eu vejo três economistas debatendo. O primeiro fala alguma coisa, o segundo reforça e o terceiro repete o que os outros dois falaram. Então, não dá nem para assistir porque já sabemos o que eles vão falar.
E tem a questão dos anúncios. No meu livro eu coloco uma tabela de como o governo distribui verbas de publicidade nos veículos de comunicação. Coloquei só dos canais de televisão. O que o governo faz é distribuir verbas de publicidade direto do seu orçamento ou de suas estatais de acordo com a audiência do veículo. O governo deu no ano passado meio milhão de reais para a TV Globo. Só para a TV, não estou falando do jornal, das rádios, dos sites. Ao todo, R$ 800 milhões. Isso é absurdo. Eu não quero o dinheiro do meu imposto na Globo.
O governo reforça a desinformação, a ausência de debate, ao concentrar seus recursos nas grandes empresas. A ideia deve ser desconcentrar, ampliar o debate. Não se pode dar dinheiro para as grandes.

E tem a legislação. A lei brasileira permite a discriminação positiva para pequena e micro empresa. O preceito constitucional dá prioridade. No Canadá , se surge uma comunidade nova, o Estado financia uma rádio para aquela comunidade e acesso a programas, eles podem e ganham um canal. Se surge um problema grave na sociedade, eles fazem um pleito à agência reguladora e ganham uma concessão e uma rádio para defender aquela cláusula.
E em alguns países, as organizações dos movimentos sociais tem lá um horário de cinco minutos – tal com a presidenta tem aqui – para se expressar.

Gostaria de falar um pouco sobre o desafio da integração sul-americana e o da industrialização, já entrando na questão do projeto de desenvolvimento. Se nós temos 200 milhões de brasileiros, temos mais 200 milhões ao nosso lado, que são os países da América do Sul. Ao todo, 400 milhões consumidores.
Debate-se muito a questão da desindustrialização. Isso tem início no governo Collor, onde foi dada a partida, e o caminho continuou sendo trilhado de lá para cá. Eu acho positivo que nós tenhamos grande capacidade de sermos produtores de soja, laranja, café, carnes etc. Isso é uma maravilha. A nossa questão é que a indústria que temos se especializou em apoiar esses segmentos, sem gerar valor agregado. Então, o sujeito faz o saquinho plástico para embalar o frango. Isso traz muito pouco valor agregado. Nós precisamos de indústria que incorporem valor a essa produção de itens básicos que nós temos.
A Alemanha, em valor – não em volume –, é um dos maiores exportadores de café do mundo. A Alemanha não tem um pé de café, mas importa, seleciona, torra, processa, coloca embalagem dourada e prateada, triplica o valor do café. O que a nossa indústria faz aqui com o café? Faz o saco para embalar o café e para exportar café verde. A Itália, em valor, é uma grande exportadora de produtos de couro porque agrega o valor no design. O Brasil é um grande exportador de couro. Chamavam até de couro azul: arranca do boi o couro, enfia num líquido e manda para fora. Nós temos de ter uma industrialização em torno dos produtos básicos que temos para agregar valor.
Qual o chocolate mais apreciado do mundo? O da Bélgica e o da Suíça, que não têm pé de cacau sequer. Por que não podemos investir nisso? É fácil e já conhecemos. Um dia disseram “o Brasil não tem avião, vamos criar a Embraer e vamos produzir”. Isso é decisão política. Vamos tomar a decisão política de industrializar o país de uma tal forma que gere valor agregado à nossa indústria. Para isso temos de ter indústrias com muita tecnologia. Indústria para fazer saquinho plástico agrega pouco valor. A nossa indústria, de fato, caiu seu peso relativo no PIB.
Nós tínhamos uma indústria que era uma coisa meio básica e sofremos a concorrência com essas coisas da China e de outros países. Nossa importação de produtos industrializados cresceu de uma forma avassaladora. Nós temos mercado de consumo para colocarmos produtos nacionais, mas em 2002 nós importávamos US$ 40 bi de industrializados; em 2012 importamos US$ 194 bi. Isso significa que a China está ocupando o nosso mercado de consumo.
A forma de recuperar não é produzir mais automóvel ou bicicleta, mas investir em indústria que tenha ciência e tecnologia e que possa agregar valor nos produtos básicos que temos que é uma vantagem comparativa enorme no mundo. Temos de tomar a decisão política de produzir produtos que hoje não são da classe média e alta, dos ricos, temos que produzir tablet, celular, etc etc. É fácil de copiar. A China faz isso, a Coréia copiou copiou e copiou. Você começa copiando e depois passa a inventar e a inovar.
É preciso ter uma decisão política para que a nossa industrialização seja retomada nessas bases. Isso tem um componente econômico e social muito importante. Nós não podemos ser uma economia grande, mas sem indústria. Porque nosso salário médio será baixo. Nós precisamos de indústria com tecnologia, que significa mão de obra qualificada com salários mais elevados. Esse é um ponto importantíssimo.
Nós crescemos muito no rendimento médio do trabalho, mas está batendo num teto. Qual teto? O da nossa estrutura econômica, que não exige que tenhamos trabalhadores altamente qualificados nas indústrias. Pessoal reclama muito que faltam trabalhadores qualificados, é verdade, em alguns setores de fato faltam. Mas, em compensação, você vai conversar com os caixas dos bancos, todos são formados, têm terceiro grau.

E a integração com os países vizinhos?
Sobre a integração, a questão da indústria e da infraestrutura são os pontos decisivos. Basta copiarmos as experiências, temos de fazer o que a Ásia fez. O comércio intrarregional na Ásia é muito alto, eles não dependem do mundo. O mundo vai mal, eles não vão mal, porque estão transacionando entre eles. O que precisamos fazer é essa integração econômica, que passa por uma revitalização da indústria na Argentina, no Brasil e até em outros países.
Eu estive no Equador, quando estava no Ipea, para discutir a política econômica de lá. Foi uma experiência muito curiosa, porque o FMI chegou lá, colocou a receita até a última gota. Sentei com os ministros e tal, eu dizia as fórmulas tradicionais, fazer isso e aquilo, coisas que aprendemos no primeiro ou segundo ano da faculdade. Só que lá eles acabaram com toda a indústria que existia. Eles tinham indústria que produz cerâmicas, boa indústria têxtil, móveis, acabaram com tudo. Então, eu dizia “tem que gastar mais”, e eles “isso dá problema no balanço de pagamentos”, porque tudo o que havia naquela sala que eu estava era importado, da mesa à lâmpada. O vidro da janela era reforçado porque naquela sala em que ficávamos reunia-se a equipe do FMI e eles pediram para blindar a sala. Eu dizia “tem que baixar os juros” e eles “não temos títulos de dívida pública, nós não temos nem mais moeda”. As políticas tradicionais não cabiam lá porque eles não tinham moeda, não tinham como administrar juros, eles pedem por favor aos bancos que reduzam os juros – 60% dos bancos são informais. Muito difícil de fazer uma regulação sobre esses bancos. O Banco Central foi desmontado.
Houve um desmonte com os programas do FMI e o Consenso de Washington da indústria em diversos países da América do Sul e da América Latina. O Equador é um exemplo disso, lá acabaram com tudo de indústria, até com a moeda. Então o Brasil precisa fazer programas de industrialização e de comércio com esses países, de troca de ciência e tecnologia, e precisamos construir uma boa infraestrutura interligando esses países. Senão as mercadorias não circulam, nem as pessoas. Os capitais circulam facilmente, basta apertar uma tecla num computador que eles se movimentam, agora, as pessoas e as mercadorias precisam de infraestrutura. Esse é um programa essencial para nós montarmos um bloco de desenvolvimento na América do Sul que dependa cada vez menos dos humores e das oscilações da economia internacional. São países que têm semelhança. O Brasil, mais diferente de todos, tem semelhanças de formação, de possibilidades no mercado de trabalho, essa é uma questão muito importante do ponto de vista do desenvolvimento e também da sobrevivência política de um projeto progressista e de esquerda na América do Sul.

Nós precisamos de um banco para financiar essa infraestrutura além do BID, a proposta do Brasil de ter um Exibamk e da América do Sul de ter o Banco do Sul ficaram paradas…
Essas iniciativas dependem muito do Brasil.

Foi aqui que elas ficaram paradas, os outros países já indicaram… O Chávez, a pressão dele, fazia isso andar. Ele chegou a escolher a capital, quem seria o primeiro presidente, mas parou de novo. E o Exibank emperrou aqui.
Sim, depende da iniciativa do governo brasileiro. Todas as conversas que já tive com pessoas desses países em síntese dizem “nós queremos muito, mas o Brasil não dá nenhum passo”.

E a principal indústria beneficiada por exportações de serviços é a nossa.
Sobre o Banco do Sul, o Brasil faz corpo mole segundo o Equador, Venezuela. Penso ainda que o Brasil precisa melhorar sua imagem nesses países. A população desses países não vê com muito bons olhos as estatais brasileiras. No caso do Equador, que eu visitei, conversei na rua com as pessoas, elas veem a Petrobrás igualmente veem as petroleiras chinesas. Há uma aversão a essa relação com o poder econômico do Brasil que nós precisamos mudar. É uma questão simbólica que deveria ser repensada.

E a universidade hoje?
A política do Ministério da Educação durante os governos Lula foi exemplar. Reitores das universidades federais só fazem elogios. Ampliou muito o número de professores, é difícil encontrar um departamento que tenha falta de professores, as universidades têm recursos para fazer investimentos e ampliou muito o número de vagas. O número de matrículas dobrou entre 2003 e 2013: de 500 mil para um milhão.
Essa alta classe média reclama da política de cotas, dizendo que as cotas estão tomando lugar dos seus filhos. Isso não é verdade porque as vagas que são disputadas pelos filhos desta alta classe média continuaram as mesmas, porque nós ampliamos o número de vagas.
Nós temos que dar um passo adiante agora nas universidades. O primeiro passo foi dado, falta de professores, investimentos, ampliação de vagas. Agora, a universidade tem de cumprir outro papel que é o de se relacionar de uma forma mais contundente, ampla e mais importante com a sociedade. Pensemos em dois canais. Um é transformar as invenções, os artigos, em patentes e inovações empresariais. A universidade não pode inventar para ela mesma, tem de fazer o que acontece em outros países. A universidade serve a economia para a economia oferecer produtos e serviços de qualidade à sociedade. Há muita coisa inventada, muito artigo produzido na universidade que não é repassado para o mundo empresarial e, portanto, para a sociedade. É preciso fazer esse link.
Outro caminho do qual a universidade está afastada é o debate sobre os rumos do país, sobre a sociedade. A universidade não é só para formar estudantes e fazer pesquisa. É para participar do debate nacional e as universidades estão fora do debate nacional, ou estão de uma forma muito limitada. Quando as universidades ou professores e pesquisadores vão para o debate, quando têm oportunidade de ter alguma visibilidade, a opinião deles tem impacto. É preciso colocar professores e pesquisadores, estimulá-los para isso também; e do outro lado, ter alguma oferta de infraestrutura para que suas opiniões, seus trabalhos, suas pesquisas tenham influência no debate nacional.
Este é o salto que a universidade precisa agora. É o equivalente do que aconteceu na economia. Nós precisávamos de base material nas universidades, hoje nós temos. Agora precisamos pensar no próximo passo: mundo empresarial e disputa de ideias na sociedade. É a mesma coisa que aconteceu no mundo do trabalho, o trabalhador passou a ser consumidor e agora ele quer viver a vida plena. A vida plena da universidade não se resume a formar estudantes, fazer pesquisas e se voltar para ela mesma. Esse é o segundo passo que precisamos dar agora e que também depende de iniciativa política e de recursos. Os recursos aparecem se houver iniciativa política; se não houver, não tem recursos.

Fonte: Blog do Dirceu