Ives Gandra e o "mensalão": contra a teoria do domínio do fato

O advogado e jurista de direita, Ives Gandra Martins, acaba de se juntar aos inúmeros jornalistas, comentaristas, militantes democráticos e de esquerda que denunciaram a Ação Penal nº 470 (o chamado “mensalão”) como um julgamento político e arbitrário.

Por José Carlos Ruy

Ives Gandra Martins

Na entrevista que deu à jornalista Mônica Bergamo, publicada neste domingo (22) pela Folha de S. Paulo, Martins foi enfático e chegou a considerar que o resultado do julgamento criou uma situação de “insegurança jurídica monumental”.

Professor de direito em inúmeras instituições universitárias, entre elas a Universidade Mackenzie, em São Paulo, renomado tributarista, advogado de empresas e empresários, ele está livre de qualquer suspeita de simpatia pelo PT ou pelas forças de esquerda. É um advogado muito respeitado pelos conservadores, sendo crítico frequente, em artigos para a imprensa, das medidas e políticas tomadas pelo governo. Nos últimos meses, por exemplo, ele se manifestou contra as cotas, contra a contratação de médicos cubanos, e por aí vai. É também conhecida sua ligação com a organização da direita católica, a Opus Dei, da qual foi um dos fundadores no Brasil e é um de seus principais porta-vozes. Portanto, nenhuma simpatia ou complacência em relação às políticas dos governos, seja de Lula, seja de Dilma.

Foi do alto desta longa (de meio século, pelo menos) folha corrida de serviços prestados à direita que ele deu a entrevista na qual manifestou posições de jurista democrático semelhantes às defendidas pela esquerda e também contidas no voto pelo qual o ministro Celso de Mello, do STF, acatou – contra o cerco da mídia e dos conservadores – a vigência dos embargos infringentes, naquela que foi uma histórica derrota da direita.

Seu argumento está organizado em torno da contradição entre o tradicional princípio in dubio pro reo, que até então prevaleceu no STF, e a novidade introduzida no julgamento da Ação Penal nº 470, a chamada teoria do domínio do fato.

Martins garante que leu todo o processo, e concluiu não existirem “provas contra ele [José Dirceu]” que, em consequência, disse, “dificilmente será condenado pelo crime de quadrilha".

Admitiu também, embora amenizando a argumentação, que aquele foi um julgamento político transcorrido sob pressão da mídia golpista e da direita. Isso ocorreu, disse, "indiscutivelmente graças à televisão”, que colocou o STF “na berlinda".

Ele investiu, com vigor, contra a aplicação da teoria do domínio do fato, que pode gerar condenações com bases frágeis. "Com ela, eu passo a trabalhar com indícios e presunções. Eu não busco a verdade material”.

O desenvolvimento óbvio de seu argumento desmente tudo o que foi dito, no tribunal ou na imprensa, a favor da aplicação na Ação Penal nº 470 daquela teoria que surgiu na Alemanha na década de 1930, sob o nazismo . “Você tem pessoas que trabalham com você. Uma delas comete um crime e o atribui a você (…). Como você é o chefe dela, pela teoria do domínio do fato, está condenada, deveria saber”.

E tirou a conclusão lógica, que talvez ajude a entender os motivos de sua argumentação: “Todos os executivos brasileiros correm agora este risco". O absurdo da aplicação daquela teoria revela seu caráter profundamente antidemocrático ao permitir condenações sem a comprovação material do delito, como exige a lei. É o que se conclui do argumento do jurista: "Se eu tiver a prova material do crime, eu não preciso da teoria do domínio do fato para condenar".

É nessa teoria que está a raiz da insegurança jurídica gerada, disse. Ela permite a condenação de inocentes a partir do diz-que-diz-que, trazendo riscos para altos executivos e empresários.

Ele vê, claro, aspectos positivos no julgamento que abriu, disse, “uma janela em um ambiente fechado para entrar o ar novo, em um novo país em que haveria a punição dos que praticam crimes”. O lado negativo fundamental foi a aplicação da teoria do domínio do fato, uma “novidade absoluta no Supremo”. Com base nela José Dirceu foi condenado, sem provas, “como chefe de quadrilha” do mensalão, disse. E fez defesa, semelhante à feita por Celso de Mello, do respeito aos direitos individuais dos réus.

À pergunta sobre se o princípio do in dubio pro reo não serviu sempre para justificar a impunidade, sua resposta foi direta: a acusação feita pela polícia e pelo Ministério Público precisa ser clara e sólida. “É mais difícil”, admite. “Mas eles têm instrumentos para isso”, podendo evitar “muitas injustiças diante do poder”. E lembrou: “a Constituição assegura a ampla defesa – ampla é adjetivo de uma densidade impressionante”.

Foi além: “todos pensam que o processo penal é a defesa da sociedade. Não. Ele objetiva fundamentalmente a defesa do acusado”. Em caso contrário ocorrerá um verdadeiro linchamento – como se pode concluir do que se assistiu, pela televisão, durante o julgamento da Ação Penal nº 470. “O que nós temos que ter no processo democrático é o direito do acusado de se defender. Ou a sociedade faria justiça pelas próprias mãos”. São palavras fortes pronunciadas por um jurista de posições ideológicas tão claramente à direita.

A entrevista de Ives Gandra Martins foi encerrada com uma frase que, se denota a convicção jurídica em torno da “ampla defesa” garantida pela Constituição, dá uma indicação das razões do jurista para rejeitar a teoria do domínio do fato: ela “traz insegurança para todo mundo”.

Não se pode imaginar que Ives Gandra Martins tenha se convertido num advogado progressista, menos ainda simpático à esquerda. Talvez o fundamento de suas declarações seja o temor de que, virando moda, a teoria do domínio do fato se transforme em uma ameaça concreta e crescente para membros da burguesia nos tribunais. Foram longe demais, parece dizer; nessa rota, criaram ameaças “para todo mundo”. Isto é, para todos os que, podendo usar os serviços de advogados desta estatura, geralmente em julgamentos que ocorrem em instâncias superiores, enfrentem o risco de condenações sem provas, seguindo o princípio que norteia aquela tese medieval: sendo chefe ou dirigente, era impossível que não soubesse!