Vaqueiros, agora com a proteção da lei
Foi aprovada, pelo Senado, nesta terça-feira (24) a regulamentação de uma das mais antigas e populares profissões em nosso país: a profissão de vaqueiro. O Projeto de Lei da Câmara (PLC) 83/2011, agora transformado em lei, protege aqueles que, sendo responsáveis pelo trato, manejo e condução de animais como bois, búfalos, cavalos, mulas, cabras e ovelhas, tem agora sua atividade profissionais regulamentada por lei. PPeA saúda, aqui, estes milhões de brasileiros!
Por Joan Edesson de Oliveira (*)
Publicado 27/09/2013 17:13

qui cantano um dia intêro nun menajo todos não.
(História de Vaqueiros, Elomar)
Mestre Costa na fazenda
hoje só abre cancela
mocidade deixou ele
ele também deixou ela
a "véice" montou nele
ele desmontou da sela
(Bom Vaqueiro, João do Vale / Luiz Guimarães)
A imagem me pegou feito quixabeira rasgando o gibão. Na tela à minha frente, o aboio da vaqueirama, encourados, no Senado da República. Meus olhos, cacimba funda no mais das vezes, marearam maravilhados, orvalho da manhã na folhinha miúda da unha-de-gato.
Lembrei de Pedro Duarte, aquele avô cego de um olho, pelo coice de um cavalo quando menino, que menino ainda se amontou e só apeou do seu cavalo ruço quando a doença lhe obrigou, às vésperas da morte, na pontinha de fazer oitenta e um anos.
Encourados, terno completo, peitoral, gibão, perneira, chapéu, alpercatas, tudo em couro, arabescos medievais nas costuras, pespontos antigos, trazidos da Península Ibérica e de lá, de mais longe ainda, dos dentros da Europa, dos confins do Oriente. Encourados vieram, rasgaram o sertão, o sertão lhes rasgou, as pontas de pau, as juremas, as unhas-de-gato, os xique-xique, os rompe-gibão, os chifres dos bois pé-duro.
Encourados vieram, nestes sertões que ainda há, para construir riquezas alheias. Na mestiçagem se fizeram ladinos, sabidos, os sentidos apurados de brancos, índios, negros. Na imensidão da caatinga o olho treinado reconhece o casco da rês, sabe de quantos dias o rastro, fareja a bebida, assunta o rumo do boi tresmalhado.
Não lembra o herói épico, grandioso. Por vezes miúdo, franzino, um cavalo de pernas finas. Não parece um herói. Na lida diária, tangendo o gado manso, tirando o leite, curando bicheiras, é apenas um qualquer. Ah! Mas quando solto na caatinga braba, sol a pino, o boi valente na frente e o cavalo magro resfolegando nas suas ancas, aquele sertanejo miúdo, todo em couro, colado ao pescoço do cavalo, é um gigante. Na cabeça apenas um pensamento: onde passa o boi, passa o vaqueiro. A carreira desafia a física, impossível que aquele corpo caiba em tão minguado espaço, entre duas pontas de pau prontas a lhe furar o olho, rasgar-lhe a carne; improvável que boi, cavalo e cavaleiro hajam transposto aquela grota, a pedra afiada a lhes espreitar no fundo do barranco.
Na amplidão da caatinga, solta o aboio. De onde vem esse som? Do muezim árabe? Que oceanos transpôs esse canto dolente, de improvável notação musical? Na amplidão da caatinga reboa o aboio, pra tanger, pra chamar o gado, pra orientar o bezerro perdido, ou pra cantar o amor perdido, quem sabe? Esse aboio dói na alma da gente, no mais fundo. Não é apenas o canto de um homem, mas a voz de um povo inteiro, que ressoa naquele canto vocálico, macio, sem a aspereza das consoantes.
A imagem, já disse, me pegou no flanco esquerdo, rasgou o invisível gibão que me cobria o peito, arrancou dali a dor antiga, sertaneja. Quanta inveja daqueles vaqueiros, por não ter sido um deles. É quase como se eu tivesse sido e não fosse mais. Como na voz de João do Vale, sertanejo do Maranhão: “Quem foi vaqueiro que vê/ outro vaqueiro aboiar/ fica lembrando dos "tempo"/ que vivia a vaquejar/ sofre igual quem ama alguém/ e vê com outro passar”.
(*) O comunista Joan Edesson de Oliveira é sertanejo, neto de vaqueiro, e sonha, ao menos uma vez na vida, vestir um terno completo de couro costurado pelo mestre Expedito Seleiro.
Ouça;