Julius e Ethel: Uma tragédia americana

Na noite de 19 de junho de 1953, centenas de pessoas se concentravam do lado de fora da prisão de Sing-Sing. Portavam faixas e cartazes exigindo a libertação dos condenados, que em poucos minutos deveriam ser executados. Alimentavam esperanças de que as mãos dos carrascos não cumpririam a sentença e que o indulto viria. Mas, às 20h04 as luzes do presídio fraquejaram. Era o anúncio da tragédia. Julius e Ethel Rosemberg estavam mortos.

Por Augusto C. Buonicore*, no Portal Mauricio Grabois

Pelas páginas do Liberation, o filósofo Jean-Paul Sartre gritou sua indignação: “Vocês americanos são coletivamente responsáveis por esse assassinato. Alguns por o terem patrocinado, outros por tê-lo consentido. Vocês permitiram que a América se tornasse o berço de um novo fascismo”.

A Guerra Fria e o Macarthismo

Aqueles eram anos difíceis para as correntes pacifistas e socialistas nos Estados Unidos. No plano externo, a política do imperialismo estadunidense era marcada por uma febril preparação guerreira contra a União Soviética; no plano interno, pelo incremento de um clima de terror favorável à guerra, fazendo surgir uma lucrativa indústria do anticomunismo.

Em 1947 foi estabelecida a Ordem de Lealdade, e o obscuro senador Joseph McCarthy apareceu na cena política reativando o famigerado Comitê de Atividades Antiamericanas. O objetivo desse órgão era investigar a vida de cidadãos suspeitos de possuírem ideias progressistas ou de manterem relações com entidades que se posicionavam contra os interesses da política imperialista desenvolvida pelo governo Truman.

Pelo Comitê, dirigido por McCarthy e seus sequazes, passaram nomes como Charles Chaplin, Bertolt Brecht (ambos expulsos dos EUA), Tenesse Willians, Orson Wells, Elia Kazan e outras centenas de artistas e intelectuais, muitos dos quais processados apenas por demostrarem simpatias pelas causas mais avançadas ou se posicionarem contra a histeria anticomunista e os preparativos para uma nova guerra mundial. Em 1948 o Partido Comunista dos Estados Unidos foi colocado na ilegalidade e seus dirigentes processados e presos. A democracia liberal norte-americana mostrava ao mundo a sua verdadeira face.

O caso Rosemberg: O processo e a farsa

No dia 29 de agosto de 1949 a União Soviética explodiu o seu primeiro artefato nuclear, quebrando o monopólio dos Estados Unidos e limitando assim o poder de coerção que este país exercia, desde 1945, sobre os povos do mundo. No mesmo ano o povo chinês, comandado pelo líder comunista Mao Tse-tung, derrotou o imperialismo, instaurou a República Popular e iniciou o processo de construção do socialismo. Em 1950 teve início a Guerra da Coreia, na qual o imperialismo estadunidense investiu todas as suas fichas e acabou não conseguindo a vitória esperada. Os EUA se viram assim enfraquecidos e desmoralizados por essas sucessivas derrotas.

Deste modo, foi sendo forjado um plano diabólico para jogar toda a responsabilidade pelos graves problemas que vinham atravessando sobre as costas dos comunistas locais. E quem melhor para assumir a culpa da quebra do monopólio nuclear, e pelos reveses na China e na Coreia, senão dois jovens cientistas, filhos de trabalhadores imigrantes judeus, com ligações com o Partido Comunista? Os homens do Pentágono e da Casa Branca já haviam encontrado os seus culpados: Ethel e Julius Rosemberg.

Eles, quando jovens, haviam participado ativamente da campanha de apoio à República espanhola e se envolvido em atividades antifascistas. Julius já havia sido vítima de perseguições e acabou demitido de seu emprego por suspeita de ser membro do Partido Comunista.

Em 17 de julho de 1950, Julius Rosemberg foi novamente detido e menos de um mês depois seria a vez de sua esposa Ethel cair nas mãos da polícia. O processo contra o casal rapidamente se transformou numa peça de propaganda anticomunista das mais primárias. As bases da acusação se reduziam a duas únicas e frágeis evidências: a declaração incriminatória de David Glenglass, irmão de Ethel e ex-funcionário do Centro de Energia Atômica de Los Alamos; e uma velha escrivaninha, encontrada na casa deles, que se afirmava ter vindo da URSS. O móvel serviria para guardar os planos roubados – demonstração “inequívoca” de sua ligação com o comunismo internacional. Durante o processo, várias provas contra o casal foram falsificadas pelos agentes do FBI, comandados pelo reacionário Edgar Hoover.

A defesa dos Rosemberg foi assumida pelo advogado progressista Emmanuel Bloch. Este, de maneira brilhante, desmantelou todas as provas contra os acusados. A carta-denúncia de David comprovou-se ter sido escrita sob ordens diretas do FBI. Quanto à escrivaninha, demonstrou ter sido comprada em Nova Iorque por 21 dólares. Uma nova desmoralização para Hoover e seus homens.

Enfurecido, o governo passou a acusar e a perseguir todos aqueles que apresentassem simpatias pelo casal e por tudo aquilo que eles representavam. “Quem defenderia comunista senão comunistas?”, afirmava McCarthy.

Os cientistas Einstein – o maior físico contemporâneo – e Harold Hurey, ambos familiarizados com as pesquisas atômicas, apresentaram-se como testemunhas de defesa, propondo-se desfazer o mito do segredo atômico. Afirmaram que a URSS já possuía todas as condições para construir, com suas próprias forças, a bomba atômica. Propuseram-se testemunhar sobre a incapacidade do casal em trabalhar com tal nível de tecnologia e, portanto, transmiti-la a quem quer que fosse. Os seus testemunhos foram recusados e Einstein entrou para a lista dos inimigos dos EUA.

A brilhante defesa de Bloch e todas as provas da inocência dos acusados de nada valeram. A sentença já estava pronta, desde o primeiro dia, nas mãos do juiz conservador Irving Kaufman. E em 1951 os Rosemberg foram condenados à morte na cadeira elétrica.

Uma justiça de assassinos

“Nestes últimos dias, é necessário que o protesto contra esta bárbara injustiça atinja vulto sem precedentes na História. Só assim é possível deter os carrascos que a esta hora confabulam nas sombras, temendo a opinião pública mundial”, afirmou o editorial do jornal comunista brasileiro Notícias de Hoje, de 14 de junho de 1953.

Diante da condenação, o mundo inteiro se consternou e se solidarizou com os jovens encarcerados. Até mesmo o papa conservador Pio XII intercedeu junto ao governo dos EUA por suas vidas. A mesma coisa fez o arcebispo de Paris e o presidente da Assembleia Nacional da França. Milhares de religiosos e personalidades de todo o mundo enviaram solicitação de indulto. Intelectuais como Einstein, Brecht, Picasso, Sartre declararam seu apoio ao casal e organizaram uma campanha internacional de solidariedade. A Casa Branca, de repente, viu-se inundada por centenas de milhares de cartas e telegramas de protesto.

As grandes manifestações se sucederam. Em 11 de junho de 1953, duas mil pessoas se reuniram em Nova Iorque; no dia 14 foi a vez da Casa Branca ser cercada por 10 mil manifestantes, que exigiam a libertação dos Rosemberg. O centro das atenções nestas manifestações eram os dois filhos do casal, Robert e Michael, de 12 e 6 anos de idade. No dia 15, o povo inglês realizou o seu protesto em frente à embaixada norte-americana, onde deixaram uma grande faixa que dizia “Para que o ideal dos Rosemberg sobreviva, os Rosemberg não devem morrer”.

Por quatro vezes o pedido de revisão do processo foi-lhes negado, o indulto presidencial também não viria. Mas a firmeza dos Rosemberg continuava a espantar a todos, inclusive seus inimigos, aumentando o respeito mundial pelo casal.

Então, o governo dos Estados Unidos, desesperado e isolado, apresentou a sua última proposta: “digam-se culpados de espionagem, mas arrependidos e serão perdoados, escapando assim da morte na cadeira elétrica”. Foi Ethel que respondeu aos seus carrascos:

“Somos inocentes (…). Esta é a absoluta verdade. Renegar a esta verdade seria pagar um preço demasiado alto (…) porque com uma vida assim comprada não poderíamos viver com dignidade e respeito. Não somos mártires, nem heróis e nem aspiramos a sê-lo. Não queremos morrer. Somos jovens, demasiado jovens para morrer”. Na sua última mensagem ainda afirmaria: “Não estou só, e morro com honra e dignidade, sabendo que meu esposo e eu seremos reivindicados pela História”.

Na noite de 19 de junho de 1953, os Rosemberg, com dignidade e honra, foram executados na cadeira elétrica. Sob suas tumbas Emmanuel Bloch, traduzindo a opinião pública mundial, afirmou: “Não se fez justiça, devemos nos indignar (…). A justiça no caso dos Rosemberg foi uma justiça de assassinos”.

Um grito contra a injustiça

As notícias da tragédia causaram uma profunda indignação nas consciências progressistas de todo o mundo; em especial, entre as forças socialistas e proletárias. Na cidade de Paris, milhares de trabalhadores, convocados pelos jornais comunistas, realizaram um grande ato de repúdio diante da embaixada norte-americana. Nos choques que se seguiram, centenas de manifestantes foram presos e um caiu baleado.

Em Roma, duas mil pessoas manifestaram-se pelas ruas da cidade até a meia-noite, quando foram dispersadas pela polícia. No dia seguinte, os trabalhadores paralisaram suas atividades por alguns minutos. Era a última homenagem que a classe operária italiana prestava aos dois mártires da causa da paz e da liberdade.

Em Londres, milhares de pessoas se concentraram no Hyde Park, e quando o Big Ben anunciou uma hora da manhã a multidão dedicou-lhes dois minutos de silêncio, não havendo maiores incidentes. Mas, em Dublin, populares enfurecidos passaram a depredar as instalações das agências de notícias norte-americanas. A classe operária de vários países deu, mais uma vez, uma resposta à altura ao banditismo da justiça e do governo estadunidenses.

O exemplo dos Rosemberg resiste

Os Rosemberg morreram, mas o seu exemplo de vida e de luta continuou a iluminar o caminho de milhares e milhares de homens e mulheres, combatentes da liberdade e do socialismo.
O macarthismo, representante do velho contra o novo, graças à pressão da opinião pública mundial não pôde manter-se e teve de ser desmantelado, ainda que provisoriamente. O próprio McCarthy, desmoralizado, acabou sendo processado por abuso de poder e condenado à obscuridade da qual jamais deveria ter saído. Os senhores do império viram-se obrigados a se livrar de um incômodo aliado, que até então lhes servira tão bem.

Ainda hoje vivemos à sombra do renascimento do fascismo nos Estados Unidos e na Europa. Sob o manto do combate ao terrorismo se desrespeitam os direitos humanos e se arquitetam planos de dominação mundial e novas guerras de conquista. Por isso, afirmamos que, mais do que nunca, os ideais pelos quais viveram e morreram os Rosemberg continuam vivos. E um dia, mais cedo ou mais tarde, a História transformará em realidade a profecia que Ethel fez a seus filhos, pouco antes de sua morte: “Alegre e verde, meus filhos, verde e alegre será o mundo sobre os nossos túmulos”. Que assim seja!

Post scriptum

Recentemente, a abertura de arquivos estadunidenses nos dá conta da relação existente entre comunistas locais e a embaixada soviética. Nada mais natural (e justificável) durante o período da “guerra fria”, onde se confrontavam dois sistemas (o capitalismo-imperialista e o socialismo), e não cabia neutralidade da parte dos comunistas e revolucionários. Mas isso não prova que foi a espionagem que garantiu aos russos a possibilidade de construírem a sua arma atômica. O que ainda predomina é a versão, afirmada por Einstein e outros cientistas renomados, de que os soviéticos chegaram a esse resultado com recursos próprios.

Por fim – e o mais importante –, a quebra do monopólio nuclear estadunidense pelos soviéticos (e depois pelos chineses) foi fundamental para libertar o mundo da permanente chantagem do imperialismo ocidental. Inibiu, por exemplo, a utilização de artefatos nucleares contra os povos de China, Coreia e Indochina, que lutavam para se libertarem das garras do colonialismo e do neocolonialismo. Aqueles, homens e mulheres, que contribuíram para que isso viesse a acontecer, na verdade, são heróis da humanidade e não perigosos agentes soviéticos como são tratados na literatura e nos filmes produzidos nos Estados Unidos durante a chamada guerra fria.

* Artigo publicado originalmente no sítio Rebelion em 24 de julho de 2003.

** Augusto Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

Fontes:
Voz Operária
Imprensa Popular
Bibliografia
FERREIRA, Argemiro. Caça às Bruxas, Porto Alegre: Editora LPM, 1989
PEIXOTO, Fernado. Hollywood: episódios da histeria anticomunista, RJ: Ed.Paz e Terra, 1991