CPDOC: Memória curta

Tradicional instituição de ensino do Rio, CPDOC/FGV demite funcionários ao completarem 65 anos e levanta discussão sobre critérios de avaliação de professores

Por Alice Melo

Angela Castro Gomes

Há livros que todo estudante de história deve ler. A invenção do trabalhismo (1989), por exemplo, é um deles.Clássico da historiografia sobre o Brasil republicano, bibliografia básica de processos seletivos em pós-graduação na área e dos cursos de graduação, sintetiza as transformações políticas e sociais pelas quais passamos entre as décadas de 1930 e 1940. O livro é apenas uma das quase 40 obras assinadas pela historiadora Ângela de Castro Gomes, professora titular aposentada da Universidade Federal Fluminense e uma das fundadoras do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro. Mas parece que isso não é o suficiente para a Escola de Ciências Sociais da FGV, mais conhecida pela sua antiga sigla CPDOC. Em maio deste ano, a historiadora foi demitida ao completar 65 anos, no auge de sua produção acadêmica.

A dispensa, que tem por critério a idade, é uma regra não escrita, mas muito conhecida no CPDOC. Ângela não foi a primeira nem a última a ser convidada a recolher seus pertences após décadas de dedicação à instituição. Antes dela, as funcionárias Marly Motta (historiadora), Lúcia Lippi (cientista política) e Dora Rocha (revisora de texto), por exemplo, foram cortadas da folha de pagamento no ano em que cruzaram a linha imaginária da velhice. Já a socióloga Helena Bomeny, aderiu ao quadro de dedicação exclusiva no Departamento de Sociologia da Uerj e se demitiu, segundo ela, por conta própria, às vésperas do aniversário, assim como fez a cientista política Maria Celina D’Araújo, que desde 2009 é professora titular de Sociologia da PUC-Rio. A situação é incômoda e causa tensão inclusive entre os pesquisadores mais jovens: muitos estão procurando emprego em outras instituições acadêmicas, temendo o futuro incerto.

Apesar de latente, o mal-estar só veio a público com a recente demissão da historiadora Dulce Pandolfi, três meses antes de completar 65 anos. Nacionalmente conhecida por seus estudos sobre memória, cidadania e movimentos sociais, e ex-diretora do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), Dulce recebeu o aviso do desligamento, sem chance de diálogo, numa sexta-feira de setembro, no meio do semestre letivo. Desta vez, não foi apenas a certidão de nascimento que pesou na decisão da direção. Ela conta que recebeu nota baixa numa avaliação de produtividade, cujos critérios não são claros. A notícia se espalhou pelos corredores da instituição e correu pela internet. Na semana seguinte, alunos da escola fizeram greve por dez dias, com direito a cartazes e vídeos de protesto. Além disso, uma petição pública virtual arrecadou 2 mil assinaturas, pedindo a recontratação da pesquisadora, assim como a do colega Claudio Pinheiro, antropólogo demitido pela mesma razão. Instituições acadêmicas nacionais e estrangeiras reforçaram o coro dos colegas e o CPDOC voltou atrás em parte, e recontratou Dulce.

Mas os critérios de cortes do CPDOC, instituição que completou agora 40 anos, permanecem alvo de críticas. A Congregação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, por exemplo, manifestou solidariedade aos colegas demitidos, afirmando que a decisão “mostra desrespeito” em relação a pesquisadores cuja trajetória intelectual deveria ser motivo de orgulho, e “causa insegurança aos pesquisadores mais jovens”. A nota acrescenta que, “mais uma vez, observa-se que gestão autoritária e critérios estreitos de produtividade não constituem modo adequado de conduzir instituições devotadas à produção de conhecimento livre e independente em Ciências Humanas”.

A FGV nega que haja demissão compulsória aos 65 anos – um critério que, aliás, é inconstitucional. De acordo com a Carta promulgada em 1988, é proibido adotar “critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”. O mesmo critério serve para demissão. Mas, desde 2005, ao menos oito funcionários foram dispensados aos 65 anos, enquanto outros institutos da própria FGV mantêm acadêmicos setentões trabalhando normalmente, como é o caso do ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, emérito da FGV, mas livre-docente no Instituto de Economia.

No CPDOC, as mudanças são encaradas como renovação. Celso Castro, diretor do Departamento, diz que “todo processo de renovação institucional está sujeito a dificuldades e incertezas de várias ordens”: “ao longo desse processo, perdemos quadros importantes, mas também incorporamos novos professores-pesquisadores e técnicos de grande talento”. Questionado sobre as demissões por idade, Castro foi evasivo. Também não explicou quais os critérios que norteiam o processo de avaliação dos docentes, um ranqueamento que deveria incentivar o progresso de funcionários dentro da instituição. “O CPDOC sempre manteve o máximo respeito para com seus colaboradores, podendo, por exemplo, indicar como motivo de orgulho o fato de, nos seus 40 anos de existência, jamais ter havido qualquer ação judicial envolvendo pesquisadores”.

Ângela de Castro Gomes, por outro lado, diz temer a saúde do CPDOC, já que o clima que se instaurou com a crise não é positivo. “Há 30 anos o CPDOC foi sinônimo de inovação, rotatividade de poder, debate e construção de pensamento crítico. Foi o que fez com que ele crescesse. A mudança desses preceitos nos preocupa”. Para a historiadora, que trabalhou na casa durante 37 anos, é fundamental renovar, mas o ponto é apenas como isto é feito. “Nas Ciências Humanas, há a acumulação do saber, do conhecimento. E isso é chamado de experiência”. A troca de experiência entre gerações é o que garante a excelência deste tipo de instituição.

Ultimamente, tanto os engessados critérios de avaliação aplicados nas Ciências Humanas quanto o teto de idade para a aposentadoria, inclusive de professores de universidades públicas, vêm sendo questionados. No que diz respeito às avaliações, hoje se critica o modelo que preza a quantidade e não a qualidade da produção; publicações curtas em revistas científicas bem avaliadas, por exemplo, têm peso similar ao de livros no currículo acadêmico. Quanto mais publicações, melhor o pesquisador é avaliado pelo CNPq (o que reflete em maior possibilidade de bolsa) e, quanto mais pesquisadores bem avaliados, maior é a nota dada pelo sistema da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) ao programa de pós-graduação em que ele trabalha. No que se refere à idade, tramita no Congresso, por exemplo, desde 2003, uma proposta de Emenda à Constituição que sugere o aumento da idade da aposentadoria compulsória do servidor público de 70 para 75 anos.

“A própria comunidade intelectual se torna desfalcada” com a aposentadoria compulsória, critica Luiz Costa Lima, crítico literário, professor emérito da Uerj, que também precisou se aposentar na PUC-Rio, onde hoje é livre-docente. Aos 76 anos, ele ainda é o autor com maior número de publicações em seu Departamento. “Seria indispensável que houvesse a possibilidade de o pesquisador emérito vir a pertencer a um centro de altos estudos, como na França, sendo discutível que o convidado receberia por essa participação, atrelada à continuação de sua atividade intelectual”.

Professor titular de História na Unicamp, Sidney Chalhoub foi um dos signatários da carta dirigida ao presidente da FGV em reprovação às demissões do CPDOC. Ele também concorda que, nas Ciências Humanas, “o acúmulo de erudição e a experiência” são essenciais à formação de pesquisadores, e sugere combinar experiência com a renovação. “Adotar critério automático de idade para dispensar pesquisadores é estupidez”, diz ele, que critica também os métodos escusos de avaliação: “A principal distorção está na prática, que se generalizou, de avaliar o trabalho intelectual sem que o principal critério seja a leitura do que se escreve. Há uma proliferação de publicações prematuras. A expansão da espécie acadêmica do Homo Lattes começa a comprometer a densidade da reflexão e dos escritos em nossa área”, critica o professor, fazendo referência à tentativa desesperada de pesquisadores em aumentar os próprios currículos na plataforma Lattes, onde são reunidas as informações do CNPq.

Estimular a quantidade de publicações ajuda a empobrecer a produção de conhecimento nas Humanidades. Este é um problema que vem sendo estudado dentro das próprias instituições que avaliam a produtividade de pesquisadores e a excelência de ensino, como a Capes e o CNPq. Reforçar estes parâmetros, num contexto justamente de crítica a eles, parece ir na contramão da história.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional