Trajetória de lutas revolucionárias marca homenagens a Mandela

Em 2004, o Centro Nelson Mandela de Memória foi lançado pelo ex-presidente sul-africano, que morreu aos 95 anos, nesta quinta-feira (5), após uma vida inteira de luta contra o regime de segregação racial que o levou à liderança de um povo e à admiração mundial. Sua trajetória de vida e empenho na reconciliação nacional e no diálogo pela justiça social, com influência direta na luta global pelos direitos civis e sociais, temas do memorial, são também o foco da mídia internacional nesta sexta (6).

Diversos líderes mundiais, personalidades variadas, movimentos sociais, meios de comunicação e afins já têm prestado a sua homenagem e afirmado a grande perda representada pela morte de Madiba, nome pelo qual o líder era chamado por seu povo. Ele recebeu o nome de Nelson aos sete anos, ao entrar na escola. Rolihlahla Dalibhunga Mandela precisava ter um nome cristão, segundo a sua professora.

É a primeira grande mudança na vida do ícone da luta pela justiça social, que cresceu em um dos mais brutais sistemas racistas, na África do Sul. O regime de “apartheid”, palavra africâner para a segregação racial, ficou marcado na história mundial graças à liderança ativista e decisiva de Madiba e que, após décadas de cumplicidade ocidental – já que os africâneres no poder eram descendentes de europeus germânicos –, acabou por ser condenado e derrotado.

Mandela cresceu em um contexto determinado pelo colonialismo, mas também pelo sincretismo. Um dos 13 filhos de um casal analfabeto, mas cheios de valores edificantes, de acordo com uma das muitas biografias publicadas, ele cresceu na comunidade do clã Madiba, falando a língua africana xhosa, e foi influenciado pelas histórias sobre reis lendários e líderes africanos, pela Igreja Metodista e principalmente pelos ideais marxistas-leninistas, a partir da década de 1950.

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Desde o princípio, criticava o domínio dos brancos, especialmente ao questionar a figura dos chefes tribais como agentes cooptados pelo regime, assim como os missionários. Numa África devastada e configurada por estratégias colonialistas que deixarão para sempre a sua marca, Madiba cresceu para desafiar a dominação, mas ao mesmo tempo, para empenhar-se pelo diálogo em detrimento da confrontação.

Entre as suas principais citações, Mandela disse: "Ninguém nasce odiando outra pessoa por causa da cor da sua pele, do seu histórico ou da sua religião. As pessoas têm que aprender a odiar, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar, porque o amor vem ao coração humano mais naturalmente do que o seu oposto."

Trajetória ativista e política de resistência

Madiba entrou na Universidade de Fort Hare, uma das poucas instituições de ensino superior para negros à época, mas foi expulso em 1939 por organizar um boicote com Oliver Tambo, que se tornaria um de seus melhores amigos e ativista contra a segregação racial.

Em 1944, Madiba torna-se membro do Conselho Nacional Africano (CNA), lançado em 1923 e derivado do Congresso Nacional Nativo Sul-Africano, de 1912, que lutava pelos direitos dos negros no regime colonialista. Ainda na década de 1940, Mandela e alguns companheiros criam a Liga Jovem da CNA, buscando chacoalhar a velha guarda do partido e aprofundar a luta antiapartheid. Ele também chega a ser membro do Partido Comunista Sul-Africano e a integrar o seu Comitê Central.

Em 1952, Madiba passa a liderar a Campanha de Desafio às Leis Injustas lançada pelo CNA, estabelecendo o movimento massivo de resistência não violenta que inspira, até hoje, diversas lutas por libertação e justiça social em todo o mundo. Ele foi então acusado pelo governo com base no Ato de Supressão do Comunismo, aprovado pelo Parlamento sul-africano em 1950, no contexto da chamada Guerra Fria. Em 1956, Mandela é acusado de traição e seu julgamento dura cinco anos, mas resultou na suspensão da acusação.

Madiba havia se casado, em 1944, com Evelyn Ntoko, com quem teve quatro filhos, mas depois do seu divórcio, casa-se com Nomzamo Winifred "Winnie" Madikizela, uma jovem assistente social, em 1958, com quem tem duas filhas.

Em 1960, 69 homens negros, desarmados, foram mortos pela polícia enquanto protestavam, na cidade de Sharpeville. A reação do governo foi o banimento do CNA, que leva Mandela e seus companheiros à clandestinidade, para a formação da Umkhonto we Sizwe (Lança da Nação), uma ala paramilitar, em 1961, em cooperação com o Partido Comunista Sul-Africano, com diversas viagens pela África e pela Europa, para a formação em métodos de guerrilha.

Prisão e suspensão do regime de apartheid

Em 1962, porém, ao voltar à África do Sul, Mandela é sentenciado à prisão perpétua por traição, após a “saída ilegal” do país. Ele é então enviado à prisão de Robben Island (Ilha de Robben), mas apesar das campanhas nacionais e internacionais pela sua libertação, permanece encarcerado na ilha por 18 anos, até ser transferido à prisão de segurança máxima de Poollsmoor.

Em 1988, Mandela completa 70 anos de idade, no mesmo ano em que foi internado por tuberculoso e, depois de se recuperar, é transferido para a prisão de segurança mínima Victor Verster, com melhores condições.

Em 1990, após uma grande pressão mundial, com movimentos de boicote, sanções e resoluções de condenação da Organização das Nações Unidas (ONU), o então presidente F.W. De Klerk, recém-eleito, começa a desmantelar o regime de apartheid, libertando Mandela, que ficou preso por 27 anos, e removendo a proibição do CNA.

As primeiras palavras de Mandela asseguravam aos seus apoiadores que ele não havia feito qualquer acordo com o governo, e também a sua intenção de trabalhar pela reconciliação com a população branca, uma posição que ficou reconhecida mundialmente pela oposição à de vingança e violência. A postura levou Mandela a ser comparado com pacifistas históricos como Mahatma Gandhi, cujo altruísmo e trabalho humanista pela aproximação eram determinantes.

O líder foi eleito presidente do CNA em 1991, no seu primeiro congresso após a volta à legalidade. Em 1992, Madiba divorcia-se e, no ano seguinte, 1993, recebe o Prêmio Nobel da Paz, em conjunto com o presidente De Klerk. Seis meses depois, já em 1994, o governo decide realizar as primeiras eleições presidenciais abertas a todos os cidadãos, brancos e negros, quando Mandela vence com uma maioria esmagadora. Foi também a primeira vez que ele votou.

Em 1998, casa-se com Graça Machel, viúva do líder revolucionário moçambicano Samora Machel. No ano seguinte, em 1999, seu mandato presidencial termina, mas o cargo continua sendo ocupado pelo CNA.

O partido governa o país com base em uma aliança com o Congresso das Centrais Sindicais Sul-Africanas (Cosatu) e com o Partido Comunista Sul-Africano (SACP), desde 1994, quando Mandela foi eleito presidente. Desde então, tem ganhado cada vez mais apoio popular, refletido no aumento de votos nas urnas.

Liderança mundial e homenagens

Madiba passa a representar diversas lutas humanistas em todo o mundo, enquanto continua a influenciar a resistência não violenta de vários povos subjugados ao redor do globo, na luta pela justiça social, pelos direitos civis, pela autodeterminação, pela libertação e pelo anti-imperialismo. Em 1998 e 1999, por exemplo, foi secretário-geral do Movimento dos Não-Alinhados.

Em 2003, participa da campanha mundial de conscientização sobre o vírus HIV/Aids, empenhando-se pelo ativismo desde que seu filho, Makgatho, morreu em consequência da doença.

           Foto: Christopher Furlong / Getty Images
     
        Sul-africanos comemoram o aniversário de 95 anos do ex-presidente Nelson Mandela, em 2013.

Em 2008, aos 88 anos de idade, Madiba anuncia a formação do grupo de líderes globais Anciãos, que incluía o ex-secretário-geral da ONU, o queniano Kofi Annan, que têm o reconhecimento mundial pelos trabalhos na construção da paz em todo o planeta. No ano seguinte, a ONU lança o Dia Internacional de Nelson Mandela, a ser comemorado todos os anos, em 18 de julho.

Ainda em 2009, o ator Morgan Freeman interpreta Mandela no filme Invictus, que retrata aspectos principais da vida do líder político e humanista. O filme se passa nos primeiros momentos da presidência de Mandela, na sua tentativa de unir uma sociedade amargurada no contexto pós-apartheid.

No ano seguinte, ele publica o livro Conversas comigo mesmo, uma crônica elaborada a partir dos seus diários nos tempos de prisão. Já em 2013, o filme sul-africano Mandela: Longa caminhada para a liberdade estreia no país depois de décadas de produção.

Nesta quinta-feira (5), depois de meses de luta contra o enfisema pulmonar, aos 95 anos, Madiba falece em casa, no subúrbio de Houghton, em Joanesburgo. Familiares e líderes mundiais e nacionais prestam homenagens, e o presidente sul-africano Jacob Zuma diz: “A nossa nação perdeu seu melhor filho. Nosso povo perdeu um pai.”

Por Moara Crivelente, da Redação do Vermelho