Perdemos Reginaldo, Wando e o brega segue como um estereótipo

Aos 69 anos (como se houvesse planejado esse número meticulosamente) morre o Rei do Brega – o imensurável Reginaldo Rossi. Um cara arretado que sabia como ninguém cantar o amor, suas incongruências e traições. Dizia que detestava bossa nova por ser 'música de metido a besta'. Em 2012, perdemos Wando e o culto às calcinhas. Em agosto do mesmo ano, o documentário 'Vou Rifar Meu Coração', de diretora Ana Rieper, bem que tentou abordar a música brega relacionando a alguns acontecimentos cotidianos, mas manteve o estereótipo de música de corno, segmentada.

 

Foto: Ariel Martini/ Revista Vice

Apesar de ter declarado em entrevistas de que teve como base o livro Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, publicado em 1933, a diretora manteve o brega na senzala, limitando-se a depoimentos rasos, com poucos nomes do brega – uma das ausências sentidas é a do próprio Reginaldo Rossi – e de entrevistas mal contextualizadas como a de Odair José, que chega a tocar no ponto central da questão. "Primeiro, a MPB que eu entendo é a Música Popular Brasileira. E a Música Popular Brasileira é a do Luiz Gonzaga, do Roberto Carlos é a minha é a do Vinícius de Morais, a do Tom Jobim, do Ataulfo Alves. Agora, tem a música popular de Ipanema, isso aí é a música do público de Ipanema, a música popular brasileira não tem diferença nenhuma. É todo mundo igual", relatou Odair no filme. O depoimento é interrompido por uma frase óbvia de Nelson Ned, que nada acrescenta e que nem vale a pena repetí-la aqui e, na sequencia, entra uma música entitulada "Quando tudo começou" para introduzir a origem do brega. Sobre a afirmação de Odair, faltam imagens e falas para comprovar a afirmação, que está corretíssima. Onde está o argumento do documentário? Fiquei com a sensação de que faltou uma pesquisa sobre o que pensam as demais classes sobre esses cantores nos dias atuais? E as novas gerações?

Outro ponto que mantém o brega marginalizado e que alimenta, ainda mais, um preconceito regional, é o foco da narrativa ser completamente no nordeste, como se não houvesse o brega em outros lugares e como se o nordestino não estivesse também em outras regiões, como no Sudeste. Aliás, será ainda o nordestino o que mais se identifica com o estilo musical? Fiquei com essa dúvida ao deixar a sala de cinema.

Há também o relato irônico de Lindomar Castilho falando sobre o ciúme como causador de tragédias sem citar sua própria história. Lindomar foi julgado e considerado culpado, em 1981, pela morte de sua sua ex-mulher, a cantora Eliane Aparecida de Grammont, morta a tiros. Castilho justificou o crime afirmando que Eliane tinha um caso com um primo do cantor, que também saiu ferido do episódio.

O documentário, no entanto, tem depoimentos impagáveis e memoráveis como o de Agnaldo Timóteo, que desnuda os relacionamentos amorosos homossexuais; o de Wando, falando sobre suas inspirações; e o de três mulheres do sertão nordestino que contam o quanto as músicas lhe fazem lembrar de suas vidas: "Eu sou uma mulher sofrida. Dentro de mim tem uma cicatriz que não vai fechar nunca. Tem uma música da Roberta Miranda que sempre que toca eu lembro da minha vida", diz uma delas. E outra retruca, quando ela diz que tem medo de amar: "Amiga, esqueça esse negócio de gostar, você tem o seu corpo, porque o corpo também tem suas necessidades".

"O filme analisa essas relações. Afeto, dependência, dominação, decepção, revolta", justificou a diretora em uma entrevista ao Estado de S. Paulo, que completou: "Não me propus a uma análise do país. Peguei um recorte".

Rossi odiava o rótulo e pregava a igualdade na música mundial em seus shows

Como bem lembrou Xico Sá em seu artigo, publicado no dia 20 de dezembro na Folha de S. Paulo, sobre a morte de Reginaldo Rossi, "Rossi, romântico, odiava o rótulo brega". E destacou: "Brega? Esse rótulo que a classe média pregou nos cantores românticos brasileiros como forma de diferenciá-los e separar os talheres da CasaGrande & Senzala", citando o historiador baiano Paulo César de Araújo, autor de “Eu não sou cachorro não” (ed. Record), para reforçar sua afirmação. 

No livro, Paulo Cesar de Araújo compila uma pesquisa que fez durante sete anos sobre a história da 'música cafona' no período de 1968 e 1978, anos de chumbo da ditadura militar brasileira, onde constatou que músicos como Odair José e Agnaldo Timóteo foram ignorados por estudos e livros sobre o período e, além de tudo, marginalizados da história cultural. Eles foram tão vitimados pela censura quanto Chico Buarque, Gilberto Gil ou Caetano Veloso. Odair José, que fez um show memorável na Virada Cultura de 2013, no Teatro Municipal de São Paulo, interpretando o célebre álbum "O filho de Maria e José", de 1977, uma ópera-rock inspirada no gênero que surgiu na década de 1970 – como David Bowie e The Who – foi um dos mais censurados pela ditadura. Como sua música "Pare de tomar a pílula" que foi proibida de ser executada nas rádios brasileiras e em toda a América latina. “Desde 1977 meu sonho era tocar aqui, agradeço a sociedade por estar realizando esse desejo", declarou Odair durante sua apresentação. A frase reflete a discriminação e segregação que o gênero musical sofreu e ainda sofre.

Outro aspecto abordado no livro são o teor das letras, que trazem denúncias sobre o autoritarismo e à segregação social. Como Odair José, Reginaldo Regi também refletiu em suas entrevistas e em seus shows essa divisão das classes sociais a partir da música. E fazia questão de provar a plateia em suas apresentações de que o brega é também a música cantada pelos Beatles, ou por as francesas como "Ne me quitte pas", de Jacques Brel em 1959. Lembro ainda de ouvi-lo dizer que a música clássica também é brega por refletir a vida, que é o que Reginaldo fazia em suas canções. Vai muito além da dor de corno, como insiste em rotular alguns críticos. E ele não só dizia: ele pedia para sua banda tocar e cantava, comprovando sua teoria e levando todos a loucura.

Que a música brega se tornou um gênero, isso é fato. Mas, é preciso enxergá-la em sua totalidade e refletir sobre a origem humilde dos músicos classificados como tal e de que maneira foram sendo engavetados e classificados pela opinião pública burguesa. O estilo musical que vem reconquistando o país, com o tecnobrega do Pará – Gaby Amarantos que chegou a emplacar faixas de seus discos em novelas globais – precisa se autoafirmar como tal. Porém, levará tempo para ser enxergado sem descriminação. Por trás do rótulo, escondem-se o racismo e o preconceito social, os mesmos elementos que tornam o Brasil um dos países campeões em desigualdade. E para isso, não há Bolsa Família que resolva. Só há um caminho: investimento em educação e fazer valer as políticas afirmativas das cotas raciais e socias nas universidades, no serviço público e onde mais for necessário. É preciso que se faça cumprir a legislação que pune o racismo e que busca desfazer o acúmulo de injustiças durante séculos. Como a Lei 10.639 de 2003, que obriga que todas as escolas públicas e particulares da educação básica devem ensinar aos alunos conteúdos relacionados à história e à cultura afro-brasileiras, o que não acontece até então.

Deborah Moreira
Da redação do Vermelho, inspirada na matéria publicada na revista Vice "A triste perda de Reginaldo Rossi é um revés para as calcinhas brasileiras", de onde pegou emprestada as primeiras frases do texto.