O pesadelo do 25º soldado

Certa noite, Antônio Assis de Ângelo, sargento aposentado da antiga Guarda Civil de São Paulo, teve um sonho. Sonhou que estava em sua casa, muitos e muitos anos depois de ter participado de um batalhão que lutou na guerra, na Itália.

Por Roniwalter Jatobá.

Roniwalter ilustração

A primeira coisa que ouviu foi o som de tambores: um desfile militar se aproximava. Apoiado em muletas de pontas de cobre – toc, toc, toc, toc –, saiu à rua, depois de transpor os degraus da porta. Era uma clara manhã de setembro, bonita manhã de setembro, mas ele sentia um opressivo aperto no coração.

Com dificuldade, deu meia-volta na calçada esburacada e voltou à casa, um sobrado de paredes descascadas e janelas grandes.

Na sala, deixou o corpo cair na poltrona, como um animal gravemente ferido. Estava cansado. Respirou fundo como se fosse a última golfada de ar no mundo, pensou em chegar pelo menos em alguma janela para ver a marcha dos militares, mas faltou-lhe vontade. Ia fazer 72 anos. Os cabelos já claros lembravam tufos de algodão, e o rosto, uma maçã assada. Tinha um semblante moldado em grossa argila, mas transfigurado pela amargura.

Não tinha amigos. Há anos, quando findara guerra, um homem o procurou naquele mesmo sobrado. Ao chegar, supondo um alegre reencontro, disse-lhe com afeto e animação: “Como na história do fabulista Hans Christian Andersen, o soldadinho de chumbo foi jogado fora de casa, caiu em um rio, foi engolido por um peixe, o peixe foi pescado e o destino o levou ao lar de origem. Aí está você. Aqui estou eu também. Venho reatar nossa antiga e inesquecível amizade.”

Fez de conta que não ouviu nada. Nem se dignou a olhar no rosto gordo do homem. “Por quê, filho?”, disse a mãe, logo depois. “Já me bastam as minhas lembranças”, respondeu com rudeza.

Agora, procura lembrar um pouco da mãe, já morta. Da rua, ecoa a passagem do desfile militar e humilham-no os passos fortes e a cadência dos soldados. Decide, então, penetrar mais nos labirintos da casa, quartos e corredores que ele conhece tão bem: as mínimas saliências do assoalho; os vãos das portas; os espaços entre os móveis e as paredes.

O som de suas muletas ecoa pela casa adentro, enquanto o barulho vindo da rua vai, pouco a pouco, diminuindo. Ele atravessa estreitos corredores, onde vasos guardam ainda ressequidas mudas de plantas. As paredes estão impregnadas de mofo e solidão.

Ali está o quarto, o seu quarto. Por hábito, passa o trinco na porta. A cama continua desarrumada. Sobre a penteadeira, tem uma fotografia emoldurada de uma bailarina, vestida em uma saia da mais pura gaze, num flagrante dela apoiada numa perna só. Parecem duas bailarinas gêmeas, pois a fotografia reflete, mesmo ao contrário, no espelho da penteadeira. Ao lado, tem uma caixinha triangular, também dupla, embrulhada em papel celofane.

– Soldadinhos de chumbo! – ele chama baixinho, muitas vezes, enquanto retira o papel e abre a tampa da caixa.

Era um batalhão de vinte e quatro soldadinhos de chumbo que, um dia, ele ganhara de presente de aniversário. Vestiam uniformes verde-oliva e capacetes de guerra. Portavam fuzis nos ombros. Eram todos iguaizinhos, feitos num molde só. Mas ele os diferenciava pelo modo de olhar; pelo jeito de sentir as reações às suas ordens; ou mesmo pela maneira como reagiam quando ele lembrava os horrores de uma guerra.

– Covardes! – gritava quando estava irritado.

Ele, então, colocou todos os soldadinhos de pé, sobre a cama. Deitou-se ao lado, com o rosto apoiado no amassado travesseiro. Dali, ele podia ver em detalhes as duas imagens da bailarina.

– Esta teria sido a mulher ideal para mim – pensa ele. – Mas foi impossível.

À noite, recolheu os soldadinhos à caixa. Apoiado na cabeceira da cama, despiu a túnica militar e, depois, toda a roupa. Sentia-se um homem incompleto. Então, lembrou com absoluta nitidez da última batalha, entre gritos e estampidos, quando pela primeira vez acreditou que tudo era obra do destino.

Apanhou a fotografia com mãos trêmulas, sentindo-se mais calmo. Releu a dedicatória no verso do retrato: “Para quando o coração esquecer, os olhos lembrarem. Com amor, Júlia”. E, como num pesadelo, viu a fotografia dela, seu grande amor, consumir-se no meio do inferno.

Ao baixar a fumaça difusa, viu Júlia, de cabelos longos e sexo coberto de pêlos claros e ralos, debruçar-se corpo coberto de sangue e segurar em seu membro inutilizado pela explosão de uma mina, em novembro de 1944, nos campos da Itália.

Nesse exato momento, Antônio, o sargento aposentado, acordou. Estava, como sempre esteve nas noites de inverno, na cama de sua casa, à Rua Pedro Soares de Andrade, em São Miguel Paulista, ao lado da mulher.