Mazé Leite: A Luz, o princípio da Cor – parte I
Tudo o que vemos do mundo, vemos por causa de um único fenômeno físico: a Luz. A frequência de ondas do espectro eletromagnético numa determinada escala nos permite perceber o mundo e todas as coisas que fazem parte dele.
Por Mazé Leite*, em seu blog
Publicado 10/01/2014 18:49
Ao contrário disso, tudo seria a mais completa escuridão, o Nada mais intangível. Portanto a Luz cria a matéria, da qual somos parte, da qual temos consciência e com a qual percebemos tudo ao nosso redor. E o mundo se abre em cores para todos nós.
Sem Luz não existe Cor. Tudo o que podemos ver do mundo, é possível de ser visto por causa dessa relação estreita entre as cores e a Luz, uma relação de caráter tão profundo que ainda hoje nos esforçamos para compreender que as diferenças entre os azuis, os amarelos, os verdes e os vermelhos acontecem nessa sintonia direta com a Luz, com a proximidade a ela ou com o distanciamento dela. Um Azul mais próximo da Luz tem um VALOR mais alto, ou seja é um Azul como o Celeste. Por outro lado, o Azul mais distante da Luz, mais próximo da sombra mais profunda, tem seu VALOR mais baixo, como o Índigo, o Ultramar, os azuis profundos, escuros, quase negros.
Um quadrado azul pode ser visto porque há uma fonte luminosa que ilumina mais um de seus lados, e vai perdendo luminosidade em outros, gerando outros valores de azuis, até que em algum ponto de contato com a terra, a ausência de luz gere a sombra maior.
Isso tudo parece óbvio. Mas seu estudo é das coisas mais profundas que há no mundo! Como este é um dos temas do meu mais amplo interesse nos dias atuais, tenho lido e estudado bastante sobre o tema. O resultado dessa pesquisa, irei colocar aqui neste Blog, dividido em partes, para que não seja um texto longo e cansativo demais.
Em 1987 comprei, e li todo de uma vez, um livro muito importante sobre o assunto das cores, o “Da cor à cor inexistente” de Israel Pedrosa. Fiquei fascinada com minhas descobertas, através dele, de que as cores se comportam de forma diferente, de acordo com a vizinhança, com o contexto. Não só pelo contexto luminoso, da fonte luminosa, mas pelo contexto da matéria presente e em interação.
Em 1998, fiz um curso de Cosmologia com o astrônomo Amâncio Friaça, da USP. Acompanhei as aulas do professor durante quatro anos e boa parte delas se dedicaram ao estudo da Luz, trazendo as mais novas descobertas da ciência sobre o assunto, mas também os mais antigos textos e tratados sobre a Luz, que vem desde os antigos gregos, entre eles o principal, Aristóteles.
Mas Amâncio Friaça também nos apresentou estudiosos do século XIII, em especial Robert de Grosseteste, um monge franciscano que foi professor da Universidade de Oxford. Em sua obra “De Luce”, Grosseteste apresenta a Luz como a origem de todas as coisas: a luz visível, o calor, a matéria. Ele se interessou muito pelo estudo do arco-íris e estudou os raios solares diretos e indiretos, com o uso de espelhos e pequenas lentes. Estudou também o fenômeno da refração da luz através de um recipiente esférico cheio de água. Mas o monge franciscano foi mais longe e escreveu um tratado intitulado “De colore”. Foi ele um dos primeiros a distinguir o Branco do Preto, no sentido de Branco como “Luz Clara” e de Preto como “Luz Escura”. Além disso, para cada Cor – e ele falava de 7 cores fundamentais – Robert de Grosseteste observava uma relação direta com a luminosidade no sentido de haver um azul escuro e um azul mais claro. Mais uma vez: a isto se chama Valor.
Mas os estudos sobre a Luz e a Cor vêm de ainda mais longe: da Grécia antiga e seus grandes filósofos, os pais da filosofia ocidental. Entre eles Aristóteles, que influenciou o pensamento europeu durante toda a Idade Média. Ele falava sobre uma “qualidade sensível” como uma atividade da sensação: por exemplo, a vista enxerga a cor, o ouvido ouve o som… Ou seja, a sensação “afirma” a verdade sobre cada coisa: a visão não se engana sobre o Branco. O erro só começa a existir quando a inteligência afirma que tal ou qual objeto é branco. Porque ao conhecimento sensível – advindo dos sentidos – se junta o “conhecimento intelectual”, que vê além da forma do objeto, vê “com a mente”.
Em seus estudos sobre Claridade e Obscuridade, Aristóteles já assentava as bases para o estudo da Cor. Em sua época, as cores eram classificadas por sua luminosidade variante entre o Branco e o Preto. E esse pensamento foi dominante durante todo o período da Idade Média, influenciando profundamente os pintores, inclusive os da Renascença. Essa relação Claridade X Obscuridade era tema muito mais importante do que estudar as outras cores de forma particular, inclusive porque adquirir pigmentos de cores diversas era coisa muito difícil até o Renascimento. Ainda na Idade Média, conceitos como “Lux” e “Lumen” eram o centro do interesse dos estudiosos sobre a Luz. Se dizia que a Luz, em sua dupla natureza, se dividia em: LUMEN – a fonte luminosa de origem divina (a luz do Sol era um símbolo de Lumen); e LUX, a luz no sentido mais sensorial e perceptivo (como a luz emanada pela chama do fogo). Umberto Eco também escreveu sobre o tema no livro “Arte e Beleza na Estética Medieval”, do qual também falarei nesta série sobre as cores.
Os pintores do Renascimento foram formados dentro destas concepções sobre a Claridade. Lembre-se que na época, as pessoas de maior destaque e que mais representam o espírito daquele tempo, tinham grande formação Humanista, tendo estudado inclusive as chamadas Artes Liberais, que eram divididas em dois graus: o Trivium e o Quadrivium (este também foi tema nas aulas do professor Amâncio Friaça). Do Trivium faziam parte os estudos de Gramática, Dialética e Retórica; e do Quadrivium: Aritmética, Música, Geometria e Astronomia. Então esses pintores pintavam com a compreensão perfeita sobre o conceito de Valor. Ou seja: utilizavam as cores não como matizes determinados que deveriam ser aplicados a um objeto, mas as utilizavam em SUA RELAÇÃO com a Luz, de proximidade ou de distanciamento (Valor Alto para a proximidade, Valor Baixo para a distância). É importante que fique claro este conceito de Valor e sua relação com a Luz.
Dentro daquela forma inicial de pensar – relação Claridade X Obscuridade – somente duas cores eram fundamentais: o Branco e o Preto. A partir delas, as outras cores nada mais seriam do que misturas muito precisas entre as duas primárias. Claro que hoje, como pensamos, o Branco e o Preto nem são considerados, a rigor, cores; mas na antiguidade o Branco era um Amarelo extremamente brilhante e o Preto era o mais escuro dos Azuis. Abaixo, uma primeira classificação das cores, tendo como base o pensamento de Claridade e Obscuridade. Do lado esquerdo o Branco, denominado “Luz clara”; do lado direito, o Preto, a “Luz escura”. Entre elas, uma escala de 5 cores. Esta classificação já tem origem em Aristóteles e se distingue pela sua variação em termos de luminosidade.
Esta escala de cores pode também ser comparada – e pode ter surgido desta observação – com a luz do dia: do ponto mais luminoso do sol, ao meio-dia, a luz vai se movimentando em direção à noite mais escura e a natureza vai assumindo essas colorações. Seria a ordem natural do movimento da luz no dia. Mais uma vez: o importante deste ponto de vista é que a noção de Claridade é mais importante do que a noção de diferença entre cores separadas.
No começo do século XIV, as teorias sobre a cor iam tomando corpo, com mais estudos que iam sendo feito, seja por artistas, por filósofos, por físicos. Os artistas, por causa de seu ofício, já tinham uma boa noção sobre a mistura das cores e logo se descobriu que todos os matizes poderiam ser obtidos a partir de 3 cores, 3 pigmentos primários: o Azul, o Amarelo e o Vermelho. Conta-se que Leonardo da Vinci usava uma palheta com as 3 cores primárias mais o Azul Índigo e o Verde.
As cores primárias para os pintores de hoje são as mesmas desde a Renascença e nosso círculo cromático, como o conhecemos, vem desse período. O Círculo Cromático básico para qualquer artista é formado pelas 3 cores primárias (Azul, Amarelo e Vermelho) e suas 3 cores secundárias (Laranja, Violeta e Verde).
As pesquisas de Newton
No século XVII, Isaac Newton (1643-1727) – físico, filósofo, matemático e astrônomo inglês – apresentou o primeiro círculo cromático baseado em seus estudos físicos da Luz. Observando a refração da luz branca ao atravessar um prisma de cristal ele viu sair do lado oposto raios coloridos como as cores do arco-íris. Ele demonstrou cientificamente que a luz branca, ao se decompor, se espalha em raios coloridos que, se forem novamente juntados, geram uma luz branca.
Isso foi uma grande revolução no pensamento da época. A partir daí, sabemos que as cores são elementos constitutivos da luz e uma diferença importante se estabeleceu: não mais classificamos as cores com critérios de Valor (Luminosidade) mas com critérios de Matiz (o nome da cor). Passamos a falar “Cor” como sinônimo de “Matiz”. E a tratar as cores de forma estanque, sem relação clara e direta com a Luz. Talvez fique mais fácil de compreender a diferença entre Cor e Matiz, para nós já tão viciados em confundir uma coisa com a outra, se buscamos estas palavras em outra língua. Vamos ao francês. Em francês, “Cor” é “Couleur”, que significa a impressão na retina da luz refletida pelos objetos. Já para “Matiz”, temos “Teinte”, que significa a nuance produzida pela mistura de pigmentos. Em inglês seria “Hue”, que tem a ver com a intensidade/saturação de uma determinada cor (color).
Isso parece pouco, mas trouxe grande influência nas artes e mais tarde os Impressionistas vão experimentar até o limite essas noções de relações entre os matizes. Podemos acrescentar que também influenciou as concepções a respeito da “cor local” de um objeto que sofre a influência não somente da relação Claridade x Obscuridade, mas também dos matizes do entorno do objeto. Vale ressaltar que o conceito Claridade x Obscuridade tem atravessado os tempos no mundo das Belas Artes – mesmo que perdesse importância durante alguns períodos – e hoje existe um movimento bastante interessante de retomada da pintura mais “valorista” – que tem relações com a Luz. Com a qual me identifico.
Voltando a Isaac Newton. Ele propôs uma classificação de cores sob a forma de um círculo cromático, com 7 cores: Violeta, Azul Índigo, Azul Celeste, Verde, Amarelo, Laranja, Vermelho. Ele escolheu as 7 cores para fazer uma comparação com as 7 notas da escala musical. Ele desejava que a harmonia, presente nas notas musicais, também estivesse presente na representação de seu círculo cromático. Mas sua intuição foi depois considerada uma escolha genial, pois permitiria todas as possibilidades de misturas de cores.
(Continua em breve)
*Mazé Leite é artista plástica, bacharel em Letras pela Universidade de São Paulo e faz pesquisa em História da Arte.