Cadernos bestiais

Poemas inéditos, de Cadernos bestiais,

Por Claudio Daniel 

Sol
Breve história do fabricante de cerveja
Cabeça com tentáculos de harpia,
obeso como grávido
escaravelho, 
despreza (deliberadamente)
as leis
que o desagradam.
Contrata paraguaios, chilenos, peruanos,
hondurenhos, guatemaltecos,
haitianos
para trabalharem
em sua fábrica,
sem identidade, passaporte 
ou carteira de trabalho.
Tudo é número
no anguloso inferno fabril.
Multiplica as horas 
para a moagem do malte,
a maceração,
a fervura do mosto,
a adição dos lúpulos de aroma,
a decantação. 
Com olhar imóvel de um porco morto,
contabiliza os ganhos
de sua rapinagem
clandestina,
como quem conta cordeiros 
ou estrelas.
Um dia, cinco musculosos haitianos
pegaram o pilantra
pelas orelhas,
surraram-no
e jogaram-no
no meio da fervura.
Após o expediente,
reuniram todo o pessoal
no quintal da fábrica
e beberam muita, muita cerveja.
 
Fim do mundo
À memória de Jakob van Hoddis
 
Loba ensandecida rumina vermes de escuro escárnio.
Alguém-ninguém atravessa a rua
e em todos os cantos 
ouvem-se gritos 
feito guinchos
de um porco amarelo.
Cai um aguaceiro
na cidade esquálida
e os bairros alagados atingem as estrelas. 
Banqueiros obesos caem do telhado 
e se despedaçam.
Numa placa de rua, 
lemos: cuidado.
Quase todos têm secreções nasais;
os ônibus correm nas avenidas 
a toda velocidade,
entram nos viadutos
e se chocam contra as paredes.
 
Todas as palavras não são mais que uma superfície de cacos de vidro à entrada de uma cidade maldita.
 
Antimídia
 
Tunisiano de cabeça nervurada assenhora-se
da unha mínima 
da história
enfurece letras que são bichos
de um minucioso horror
quando a morte engole manápulas
e adensa paisagens-vértebras
daqueles que não têm nome daqueles que 
não têm nome nenhum nada além 
de ninguém 
tudo é um jogo desjogado de lacraus
letras que são bichos no escuro letras que
são lepras de lorpas no escuro 
tateando entre os tufos da fome tateando 
entre os húmus da usura tateando entre 
assemelhar-se anfíbio 
assemelhar-se reptante no asco 
da rachadura no asco do desvão
em que se obliteram as anfetaminas 
da desmemória
linhas incisivas num crescendo menos o focinho
menos a mandíbula menos as
tíbias esmagadas no 
fosso monocromático do não – 
há uma caixa torácica que canta 
sozinha no deserto de Mojave
onde marines enrabam desvestidas traqueias
antes de matarem qualquer coisa viva –  
dentes-de-leão ressonam numa tarde esfumada de setembro
em que um poeta (tunisiano?) soletra a sub-reptícia 
sombra da vivissecção.
 
Jamais
Para Fabrício Slaviero
 
bichos de verde-muco proliferam
nos entalhes do tapume;
antiaranhas deslizam
nas ramagens,
tramam teias e resíduos
de uma dor vermelha,
recíproca.
há um plasma em cada fenda,
em cada vão
de madeira apodrecida.
há um acre açafrão
em cada veio
do reboco, com seu ácido.
tateiam algo, quem, aqui –
ou apenas arrulhos, crostas, escaras,
ninguém com óculos de aro fino,
breve gravata lilás e uma refinadíssima
sensibilidade no olfato; não, ninguém,
nunca houve, jamais.
 
Arames, retalhos
 
esqueletos do nunca
onde o áspero da palavra,
brutais de dezembro.
porque esta não é a minha língua:
retorcidos de mistério,
caranguejo onagro.
onde se desdobra a pedra, onde se
desdobra o nojo desse nunca,
que se anuncia indesejoso:
são palavras em seu verde, em seu asco;
são vértebras de escárnio,
entulhos-de-orelhas à procura da mulher-dos-gatos.
porque nada faz sentido, eu sei,
neste reverso em que me falas,
primitiva, reverberante,
com a nudez que me calam os arames, os retalhos;
com a nudez de um estuque de plantas,
ruidosa, em expansão — e só me resta confessar
os fumos de aranha, inconcluso,
quando indagas sobre o meu labirinto.
 
Paisagem
 
Árvores saqueiam o arco-íris.
 
Três banqueiros atiram-se
ao rio e morrem afogados.
 
Nuvens piscam o olho para o sol,
que enfurece os dentes-de-leão.
 
Ninguém me oferece uma estrela.
 
Quando eu morrer, me enterrem
na tua voz.
 
Juiz
 
Cabeça de fungo 
reptilizada
olho-de-corvo
e coluna inclinada
calvo como um imperador
romano, sorriso áspero
e lustrosos sapatos italianos
toga escura como o medo
(enterra-te no escuro,
enterra-te no medo).
 
Juiz (II)
 
“Tu, pessoa nefasta”
— Gilberto Gil
 
Fúria,
palavras afiadas 
em fúria, para fustigar 
a esfarrapada justiça
e sua voz estorricada 
que absolve os roubos dos ricos
e condena os insubordinados, 
ladrando trevas.
 
Cantiga
 
Penso em você eroticamente.
Até a fabulação
de outra margem,
na estranha habitação onde os números,
pares e ímpares, enlouquecem.
 
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Um minúsculo leão branco habita a sua fenda.
 
***
A ferocidade
no limiar da noite,
quando a pele —
desmedida, irremissível,
se projeta em outra pele:
nenhum destino além do nervo tumultuário.
 
(Estes poemas publicados aqui (exceto Cantiga e A ferocidade, foram escritos em 2014 e fazem parte do livro que se chamará Cadernos bestiais.)