Emir Sader: A esquerda e o golpe de 1964

Após o golpe, os grupos mais radicalizados se deram conta de que a defesa da democracia era um valor fundamental e que deveriam ter se mobilizado na sua defesa.

Por Emir Sader*, em seu blog

Ao longo de quase todo o período prévio ao golpe de 1964, a força política da esquerda estava quase que concentrada apenas no Partido Comunista e nos movimentos sociais ligados a ele, especialmente o movimento sindical. À sua esquerda existia um pequeno grupo trotskista – de origem posadista – e alguns setores heterogêneos, no Partidos Socialista e no PTB.

A orientação predominante era nacionalista, que centrava a luta basicamente contra o latifúndio e o imperialismo, considerados os obstáculos para que o Brasil superasse o pré-capitalismo em que se encontrava e pudesse abrir espaço para o desenvolvimento pleno do capitalismo industrial. Especialmente durante o governo de Joao Goulart, essa orientação predominou.

O Plano Trienal, formulado por Celso Furtado, se centrava politicamente na reforma agrária e em medidas de controle do capital estrangeiro no país. A reforma agrária permitiria combater o latifúndio, expandir um mercado interno para a indústria, ao mesmo tempo que estenderia a sindicalização dos trabalhadores rurais. As medidas de limitação do capital estrangeiro – como, por exemplo, a limitação da remessa de lucros –, favoreceriam as indústrias nacionais e o desenvolvimento autônomo do país.

Era uma concepção segundo a qual o Brasil precisaria se livrar dessas travas para poder se desenvolver em termos capitalistas. O país teria ainda pela frente todo um período de desenvolvimento industrial, liderado pela burguesia nacional – que teria profundas contradições com o imperialismo e com o latifúndio –, como objetivo fundamental daquele período político.

No começo da década de 1960, sob o impacto da vitória da Revolução Cubana, mas também do maoísmo, foram fundadas outras organizações radicais na esquerda brasileira. Primeiro a Polop – Politica Operária –, marxista, que levantou, pela primeira vez, a proposta de um programa socialista para o Brasil. Em seguida o PCdoB, a primeira cisão maoísta no mundo. Depois a AP – Ação Popular –, radicalização da JUC e da JEC, organizações cristãs de juventude.

Elas tinham em comum a crítica do reformismo do governo e do PCB, à sua concepção de “revolução por etapas”, à sua confiança – e ilusão – no caráter anti-imperialista e antilatifundiário da burguesia nacional e na própria existência desta. Denunciavam os riscos de golpe militar contra o governo e propunham formas de luta radical.

Conforme se aproximava a perspectiva de golpe militar, as posições na esquerda também foram se extremando. Francisco Julião começou a organizar um esquema de resistência no campo. Sargentos, tenentes, marinheiros, começaram a se organizar e reivindicar direitos políticos. A direita se mobilizava, com apoio dos EUA, entidades empresariais, políticas, midiáticas e religiosas, se articulavam ativamente, com mobilizações populares, a favor do golpe.

As posições eram diferenciadas dentro da esquerda. O PCB e os outros setores nacionalistas confiavam na oficialidade progressista dentro das FFAA e no apoio popular ao governo. Subestimavam o golpe e, caso viesse, confiavam na capacidade de resposta tanto dessa oficialidade, quanto do movimento popular organizado.

O PCB e os setores que apoiavam praticamente de forma incondicional o governo Jango deixaram o movimento popular desarmado diante do golpe e não foram capazes de organizar a resistência quando o golpe veio. Sua estratégia havia fracassado e ficaram desconcertados.

Os grupos radicais consideravam o golpe praticamente inevitável (devido às “ilusões do reformismo na via pacífica e na existência de uma burguesia nacional e democrática”), o viram como uma confirmação das suas previsões. Mas tampouco defenderam a legalidade existente, não se dando conta no brutal retrocesso para todos – a começar pelos movimentos populares – que o golpe representava.

A posição mais correta foi a de Brizola, que propôs a organização popular mediante grupos dos onze, que congregasse militantes partidários, militares e setores dos movimentos populares, para resistir ao golpe e, caso ocorresse, se constituíssem em organizações da resistência democrática à ditadura. Dispunha de uma rádio – Mayrink Veiga – e criou um jornal, dando início a um poderoso movimento popular alternativo (ao qual aderiu a Polop). Combinava a resistência antes do golpe a um desdobramento já na ditadura, caso o golpe triunfasse.

Veio o golpe e nada foi poupado pela repressão: intervenção em todos os sindicatos e arrocho salarial; repressão impiedosa a todos os militantes de esquerda, sem importar o partido; a universidades, entidades culturais, movimentos populares, entidades jurídicas, o próprio Parlamento e o Judiciário.

Houve um brutal retrocesso nas condições políticas e sociais do pais, assim como nas condições de luta popular.

Os grupos mais radicalizados se deram conta de que a defesa da democracia era um valor fundamental, que deveriam ter se mobilizado na sua defesa, mesmo com posições críticas diante do governo Jango. Apesar das propostas positivas que tinha formulado, Brizola saiu do país e ficou eclipsado politicamente por um bom tempo. O PCB perdeu sua força fundamental – a estrutura sindical – e foi envolvido em profundos debates internos.

A primeira publicação que fez um balanço do golpe militar foi a revista francesa Le Temps Modernes, dirigida por Sartre. Nela havia uma quantidade de artigos – incluso do FHC – que nada acrescentavam sobre as razões do golpe e as perspectivas com a ditadura militar. Celso Furtado se arriscou a um prognóstico: como associava estreitamente desenvolvimento econômico – e particularmente industrial – e democracia, previa que o Brasil retrocederia a um modelo primário exportador.

As análises mais pertinentes e que, por isso, foram as que mais circularam na esquerda, foram as de Ruy Mauro Marini – dirigente da Polop naquele momento. "Contradições do Brasil contemporâneo", um dos seus artigos, diz que o desenvolvimento do capitalismo brasileiro estava num impasse: o país vivia um processo de democratização que se chocava com os interesses do grande capital, a quem interessava desenvolver não setores da economia vinculados ao consumo popular, mas aqueles ligados à exportação e ao consumo de luxo.

O golpe fez triunfar esta possibilidade, reprimindo o consumo popular – com o arrocho salarial –, ao mesmo tempo que favorecia o ingresso de capitais estrangeiros, facilitava a remessa de lucros e a obtenção de empréstimos para as empresas privadas. O “santo” do “milagre econômico” foi o arrocho salarial e a intervenção nos sindicatos. Os textos de Marini circularam amplamente na esquerda como a melhor explicação do golpe e do que sucederia no país durante a ditadura militar.

O outro texto que circulou amplamente foi "Revolução na revolução", de Regis Debray, uma versão simplificada e tentadora do que havia acontecido em Cuba, que contribuiria de forma importante para que a visão militarista triunfasse na esquerda. Depois da derrota desta, em 1971, o campo ficou aberto para que as correntes liberais se tornassem hegemônicas na oposição à ditadura, definindo o caráter conservador desta.

*Sociólogo e cientista político