O leviatã de Hobbes e os black blocs

A sociedade padece as dores da banalização da violência. As colunas que abrigam as Cartas do Leitor e os comentários fulminantes da internet estão repletos de opiniões que sugerem o fim dos debates acadêmicos “estéreis” e propõem a “solução final”, leia-se a volta imediata à Idade da Pedra, após milênios de processo civilizatório. 

Por Luiz Gonzaga Belluzzo*, na Carta Capital

Na banda dos politicamente corretos, ouço frequentemente que a violência dos privados não pode ser resolvida pela violência legítima do Estado. Seria um problema das injustiças da sociedade. Entre outras mazelas, a ditadura nos legou a deplorável confusão entre o exercício da autoridade amparada na lei e as arbitariedades dos esbirros do poder sem freios. A República e a Democracia dobram os joelhos, submetidas ao contubérnio entre bonzinhos e déspotas pés de chinelo que vociferam pelos Facebooks da vida. Um achincalhe aos princípios que deveriam governar as ações do Estado de Direito Moderno.

Observador das turbulências que assolaram a sociedade inglesa no século XVII, Thomas Hobbes imaginou que o terror disseminado pelos bandos privados na luta religiosa só poderia ser contido pela concentração do poder e da força no Leviatã. Para ele, a visão do estado de natureza como um estado em que os homens conviviam pacificamente, em que o homem era naturalmente bom, só pode surgir em uma sociedade em que o Estado está consolidado, em que a sociedade civil já está submetida às leis emanadas do Soberano.

A visão do bom selvagem, do homem predisposto ao contrato com o outro, como Locke a formula, pressupõe o Estado organizado. Hobbes surpreende a sociedade dos indivíduos no momento em que o Estado submergiu na voragem da guerra religiosa, soçobrou na crise da sociedade governada pelo desejo e pelo medo. Para Hobbes, é permanente a possibilidade de o Estado, o Deus Mortal, ser destruído em uma crise desencadeada pelas rivalidades “particularistas”.

O Leviatã é uma criatura engendrada pelos indivíduos livres, atormentados, porém, pela cobiça e pelo medo, sempre prestes a lançar a sociedade nos torvelinhos da morte e da destruição. É o medo que os obriga a abrir mão de sua liberdade sem peias para concentrar o poder na soberania do Estado.

O soberano tem o dever primordial de garantir a segurança dos cidadãos contra as ameaças de violência. O medo da morte induz o homem a refugiar-se no Estado. Por isso a suprema obrigação moral do Estado é a de dar proteção ao cidadão.

Hobbes considerava a polícia o órgão vital do Estado moderno, a encarnação de sua essência. Mas a segurança do cidadão estaria garantida apenas mediante a imposição de controles e limites à função de polícia, determinados pela lei. A função policial deve ser exercida com vigor para conter impulsos destrutivos dos indivíduos, mas submetida às restrições necessárias para impedir que a soberania do Estado se transforme em arbítrio, ou seja, no exercício de um poder privado pela burocracia estatal encarregada de vigiar e punir.

Nas repúblicas modernas, se é que temos aqui algo parecido com isso, figuram entre as cláusulas pétreas aquelas relativas à representação legitimada pelo voto, à impessoalidade na administração pública, à constituição de um sistema de poderes e garantias fundados na lei.

O sistema de poderes e garantias ancorado na lei é o núcleo central do Estado contemporâneo. É isso que o obriga a punir, no exercício do monopólio da violência, as tentativas de opressão arbitrária de um indivíduo sobre o outro. Não há como pensar a sobrevivência da sociedade dos indivíduos-cidadãos sem imaginar a presença do poder repressivo do Estado. O descumprimento do dever de punir pelo ente público termina por solapar a solidariedade que cimenta a vida civilizada, lançando a sociedade no desamparo e na violência sem quartel.

Os códigos da cidadania moderna foram concebidos como uma reação da maioria mais fraca contra o individualismo anarquista e reacionário dos que se consideram com mais direitos e poderes. Esses, no Brasil, invariavelmente imaginam uma sociedade sem a presença de um Estado democrático e forte, capaz de intimidar aqueles que, ricos ou pobres, pretendem se impor por meio da intimidação.

A omissão do poder público diante da escalada da criminalidade e da violência tem produzido efeitos inesperados. Só fez aumentar a desesperança, a descrença e a desorientação da população desprotegida. Pior ainda, favorece a confusão entre o exercício da autoridade legitimado pela lei com o autoritarismo arbitrário das ditaduras.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.
**Título original: Invasores e black blocs