Alice Portugal: A gênese do preconceito contra a mulher  

O preconceito contra a mulher é a mais antiga forma de preconceito que a humanidade tem notícia. Na comuna primitiva não existia diferença. A relação era horizontal, sem hierarquia: homens e mulheres eram pais e mães de toda a tribo. O homem, filosoficamente, com seu polegar opositor, transforma tudo que pega, observa e, em perspectiva, pensa em algo novo.

Por Alice Portugal* 

 Objetivamente, a disputa do homem caçador/coletor com seus pares gerou o sentimento da propriedade privada, a partir do momento em que ele passa a não querer trabalhar mais para o provimento do outro.

Essa compreensão de que cada um só deveria prover os seus consanguíneos fez com que a mulher fosse aprisionada na cerca da propriedade privada para ser a matriz dos herdeiros da riqueza do homem. Foi essa a ideia inicial que nos reduziu, diante da magnitude que é gerar um ser humano, a essa condição social secundária a que temos sido submetidas no curso de milênios.

O problema da discriminação da mulher, portanto, é um problema filosófico, sociológico, cultural e político que não se resolve apenas com a mudança dos sistemas políticos. Enquanto tivermos mais da metade dos seres humanos em um aprisionamento cultural não teremos a humanidade liberta.

É necessário que compreendamos que dois corpos não ocupam o mesmo lugar ao mesmo tempo. E nesse processo, enquadra-se a afirmação das mulheres. Por isso, é preciso que se tenha Lei de Cotas nos partidos. Tome-se a Bahia como exemplo: um estado do tamanho da França, que tem 39 deputados federais e, nesse grupo, a única mulher sou eu. Entre 513 deputados no Congresso, temos sós 46 mulheres. Nós oscilamos sempre entre 44 e 46 deputadas na Câmara. Lídice da Mata é a primeira senadora da Bahia, a terra de Ruy Barbosa.

Nós temos de enfrentar esse preconceito. O feminismo deve ser tratado como ciência. Temos de desenvolver a compreensão de que é necessário abordar esse tema de uma forma central. A discriminação da mulher não pode ser vista como algo secundário, mas como uma questão fundamental. É preciso mudar a forma de pensar.

Observem-se os contos infantis: eles são lindos, cor-de-rosa, mas reproduzem a submissão feminina. É preciso reinventá-los: temos de dizer que a Branca de Neve despertou, tomou o antídoto e, junto com o príncipe, derrotou a bruxa. Da forma como narramos os contos infantis, reproduzimos para as nossas meninas a ideia de que toda mulher precisa do braço redentor do príncipe encantado para se redimir de toda infelicidade. Rapunzel ficou aprisionada esperando o príncipe alpinista, a Bela Adormecida ficou esperando cem anos para que o príncipe passasse a cavalo e a acordasse, junto com todo o reino, com seu beijo encantado.

E assim nós vamos reproduzindo os valores. Vemos até mesmo mulheres conscientes que dizem que não são feministas, mas femininas. Mas onde está a diferença? Não existe nada mais feminino do que o feminismo. O feminismo moderno, com muita intensidade, afirma que não se deve pregar a “guerra dos sexos”. Nós queremos que homens e mulheres, lado a lado, construam um mundo diferente, melhor. Do meu ponto de vista, socialista.

*É deputada federal pelo PCdoB da Bahia e presidente da Comissão de Cultura da Câmara