Ato exige que o antigo DOI-Codi seja transformado em memorial

A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva realizou um ato na 36º Delegacia da Polícia Civil da capital paulista, antigo DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), na manhã desta segunda-feira (31), em repúdio aos 50 anos do golpe militar. Os militantes exigem que o prédio – tombado em janeiro deste ano – seja transformado em um memorial em homenagem às vítimas, aos mortos e aos desaparecidos políticos da ditadura militar.

Ato no antigo Doi-Codi 01 - Mariana Serafini

O ato contou com a participação de militantes de movimentos sociais e familiares das vítimas da ditadura. “É importante que este espaço seja ocupado, é o lugar onde milhares de pessoas foram torturadas e muitas delas mortas, é muito simbólico os movimentos sociais e os familiares estarem aqui hoje”, disse um dos integrantes da Comissão da Verdade, Ivan Seixas. Aos 16 anos, Ivan foi o mais novo preso político da ditadura militar, permaneceu preso até aos 21, neste meio tempo foi torturado junto com o pai, Joaquim A. Seixas, morto sob tortura no DOI-Codi.

Em um dos depoimentos no Memorial da Resistência, onde era o Dops (Departamento da Ordem Política e Social), em São Paulo, um dos militantes diz: “Nós tínhamos uma predisposição para ser feliz”. Foi com essa energia que os militantes e familiares das vítimas ocuparam o pátio da delegacia. Com música, dança, teatro e bom humor, até onde é possível, para pedir o esclarecimento dos crimes e a punição dos torturadores.

O grupo de teatro popular União e Olho Vivo, tradicional por ser um dos mais antigos do gênero no Brasil, e criado em meados da década de 1970, plena ditadura, esteve presente com uma apresentação musical. O idealizador do grupo, César Vieira, se emocionou ao contar que foi preso cinco vezes no DOI-Codi. “Olhem essas janelas ali atrás, essas aqui ao lado também, é importante que vocês saibam, por essas janelas é que se ouvia os gritos de dor dos companheiros torturados. Eu fui preso aqui por cinco vezes, numa delas fiquei 90 dias incomunicável, esse prédio representa muita dor, é muito simbólico nós estarmos hoje aqui”, disse.


Os militantes dos direitos humanos presentes pediram a investigação dos crimes da ditadura

O ato contou com a participação de milhares de pessoas e centenas delas carregavam cartazes de desaparecidos políticos, ou de militantes mortos pela ditadura. Houve quem se emocionou muito ao reconhecer nas fotos em preto e branco amigos da época da resistência. Um integrante da Fundação Maurício Grabois segurava um cartaz com a foto do militante Antônio Guilherme Ribeiro Ribas, que despertou os olhos e o coração de uma antiga professora. “Nossa, o Ribas! Olha o Ribas aqui, meu aluno querido. Ele foi meu aluno!”

Antônio Ribas e o irmão, Dalmo, foram militantes do PCdoB. Ele foi um dos bravos combatentes a encarar a resistência armada e partir para o Araguaia, onde foi morto e desaparecido. Até hoje a família não tem notícias nem ao menos das condições da morte, quanto mais do corpo de Antônio Ribas. Assim como tantos outros, ele iniciou a militância política no movimento estudantil, foi presidente do Grêmio do Colégio Estadual Brasílio Machado, onde, como contou a professora, era um líder político de destaque e muito comprometimento, apesar da pouca idade.

Um dos tantos momentos emocionantes do ato foi o discurso inédito de Rubens Paiva. Soube-se recentemente que, dias antes do golpe, o deputado viajou de São Paulo para o Rio de Janeiro para gravar na Rádio Nacional um chamado ao povo brasileiro, que com a intervenção militar acabou só sendo divulgado agora, 50 anos depois. Veiculado durante o ato, o discurso parecia falar nos dias de hoje. “Desejo conclamar a todos os trabalhadores (…) que se unam em torno dos seus órgãos representativos, obedecendo a palavra de ordem dos seus comandos”.

Na ocasião, Rubens Paiva convocava o povo brasileiro a resistir ao golpe e defender a legalidade do presidente João Goulart. “O que se diz, que o governo pretende acabar com os direitos de propriedade, estabelecer o confisco de tudo o que existe como propriedade privada, é uma grande farsa. O que se pretende realmente, trabalhadores e estudantes de São Paulo, é tornar este governo incompatibilizado com a opinião pública sobre uma onda de mentiras e uma imagem deformada. O presidente João Goulart, em suas reformas, visa a tão somente dar ao povo brasileiro uma participação na riqueza deste país. É indispensável que se processe, de uma vez por todas, a divisão da riqueza brasileira por todos os seus habitantes.”

Em outro momento, os integrantes da Comissão da Verdade convidaram todos os presentes a lerem juntos o manifesto em repúdio à ditadura militar e em defesa da punição dos torturadores. Foram lidos também os nomes dos 57 militantes presos, torturados e mortos nas dependências do DOI-Codi. Para cada nome lido, um grito de “presente” e o punho esquerdo cerrado em homenagem.

Os nomes dos militares também foram lembrados, entre eles, o do general Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi, que os militantes e familiares presentes não hesitaram em chamar de “assassino”.

O manifesto exigiu o imediato cumprimento da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o Caso Araguaia e reinterpretação da Lei da Anistia; a localização e identificação dos corpos dos desaparecidos políticos e esclarecimento das circunstâncias e dos responsáveis por suas mortes; identificação e punição dos torturadores, estupradores, assassinos, mandantes, financiadores e ocultadores de cadáveres; desmilitarização das Polícias e rompimento do ciclo de violência perpetuado pelas corporações; que a atual instalação policial onde funciona a 36ª Delegacia da Polícia Civil de São Paulo seja imediatamente transformada em um memorial em homenagem às vítimas, mortos e desaparecidos políticos da ditadura militar; imediata abertura de todos os arquivos da ditadura, em especial da polícia técnico-científica do Estado de São Paulo.

Entre as tantas apresentações artísticas que aconteceram no ato, uma delas lembrou em especial a participação das mulheres na ditadura militar. A atriz Magda Baião fez a intervenção onde citava trechos de depoimentos de tortura sofridos nas dependências do DOI-Codi, onde centenas de mulheres foram torturadas com violência psicológica, física e sexual. “Eu sinto o cheiro do esperma do torturador, eu tenho nojo do meu corpo, eu sou um lixo, eu quero morrer.” Em outro momento relatou a resistência das tantas que estão vivas, entre elas, Amélia Telles, que estava presente no ato, “eu quero viver, eu quero levantar, eu quero gritar, eu quero justiça”. Esta foi a intervenção artística que mais emocionou os presentes, poucos foram os capazes de conter as lágrimas.

O coral Martin Luther King apresentou três canções, mas em uma delas pediu ajuda da plateia que prontamente se levantou para cantar a Internacional com o punho esquerdo cerrado em sinal de resistência.

O evento, organizado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva, teve adesão de mais de 150 entidades incluindo familiares de mortos e desaparecidos, ex-presos políticos, pesquisadores e ativistas de direitos humanos. Estima-se que só na gestão de Brilhante Ustra mais de 40 pessoas tenham sido assassinadas nas dependências do DOI-Codi e outras 500 torturadas. Durante os 21 anos de ditadura militar no Brasil, mais de 70 mil pessoas foram presas e perseguidas e 437 foram mortas e desaparecidas, isso sem contar o extermínio dos povos indígenas a mando dos governos militares. 

Pesquisa aponta que população é a favor da revisão da Lei da Anistia

Uma pesquisa divulgada nesta segunda-feira (31) pelo instituto Datafolha mostra que 46% são a favor da revisão da Lei de Anistia – atualmente protege quem cometeu crimes e quem resistiu à ditadura da mesma forma – 37% são contra e 17% não sabiam opinar. É maioria também quem defende a punição aos torturadores –  46%; já quem é contra contabiliza 41% e 13% não souberam opinar.

Em 2010 o Datafolha fez a mesma pergunta e o resultado era diferente: 45% dos entrevistados na época eram contra a punição dos torturadores e 40% a favor. A pesquisa atual foi realizada antes da onda de eventos e reportagens sobre os 50 anos do golpe e antes da repercussão do depoimento do coronel reformado Paulo Magalhães à Comissão Nacional da Verdade, onde ele descreve com riqueza de detalhes as técnicas de tortura na Casa da Morte, no Rio de Janeiro, durante a ditadura militar.

Da Redação do Vermelho,
Mariana Serafini