Haroldo Lima: Sou patriota consequente, marxista-leninista

O hoje dirigente do Partido Comunista do Brasil, Haroldo Lima iniciou sua militância política no movimento de juventude, e entre 1961 e 1963, foi um dos fundadores da Ação Popular (AP), movimento revolucionário armado que fez oposição ao regime militar. Preso pela ditadura, fez com muita coragem sua defesa política no Tribunal Militar que o julgou e condenou em São Paulo. Segue abaixo a argumentação apresentada no dia 15 de junho de 1977.

Exmos. Srs. do Conselho de Justiça da Primeira Auditoria da 11ª Circunscrição Judiciária Militar.

“Procura-se estabelecer que os operários, os camponeses, os funcionários e todos os trabalhadores só devem trabalhar; os estudantes, estudar; os intelectuais, se especializar; os religiosos, rezar; os políticos, optar por um dos dois partidos criados pelo regime, ou outros identicamente artificiais que venham a ser inaugurados e, dentro deles, fazer retórica ou mímica política. Todos cuidando, ordeiramente, de suas funções específicas, os militares, ou melhor, alguns generais cuidariam da política efetiva, da que diz respeito aos destinos do país e dos brasileiros.”

“A política não é privilégio de ninguém. Todas as classes e camadas de classes, em uma sociedade como a nossa, tem necessidade de pugnar pelos pontos de vista que correspondam aos seus interesses. A sociedade deve dispor de instrumentos apropriados para fazer fluir esses diferentes pontos de vista, até o nível da política nacional. O instrumento por excelência, que viabiliza a manifestação política das classes é, justamente, o partido político livremente organizado, a partir da iniciativa de seus interessados.”

“O artigo 43, (da Lei de Segurança Nacional) rigorosamente, não me alcança. Alcançaria, sim, de modo irrefutável, se capitulasse, claramente, como crime, participar de qualquer partido ou grupo socialista, marxista-leninista, pois que, sem sobra de dúvida, socialista, marxista-leninista, o PC do Brasil é, e AP Marxista-Leninista do Brasil foi, enquanto existiu.”

“Não há nada que provoque tanto pânico no regime vigente quanto a presença marxista-leninista no Brasil. Os detentores do poder não compreendem como a oposição no Brasil tanto cresce e, com ela, a influência dos marxistas. Privados de uma ideia positiva fizeram do anticomunismo a sua ideologia. E batem-se contra a marcha dos acontecimentos, reprimem a torto e a direito, veem, em tudo, o espectro do comunismo.”

“Politicamente, a ditadura apresenta, ao cabo de treze anos, espantosa incapacidade. Não conseguiu resolver nenhum dos males crônicos da Nação.

Levou o país à beira da falência. Tornou-o, mais do que nunca, dependente do exterior. Aprofundou, a um nível sem precedentes, o fosso entre ricos e pobres. Rebaixou à cota mais ínfima, o padrão de existência dos trabalhadores. Pisoteou leis, direitos, Constituição, liberdade. Engordou uma ávida e perdulária camada de superburocratas, elevando a corrupção a alturas olímpicas. Como, no rescaldo de tanta incompetência, desmando e corrupção, veio o protesto, reprimiu tanto que chega hoje à esdrúxula situação de não contar com o apoio de qualquer setor social de importância no país, inclusive daqueles que apoiaram o golpe de 1964. Unindo-se contra o grupo dos generais que detém o poder, estão os trabalhadores de uma maneira geral, os estudantes à frente da intelectualidade, os advogados à frente de uma gama de profissionais liberais, os políticos que se organizaram no Movimento Democrata Brasileiro, a imprensa, o empresariado nacional, a Igreja Católica, a Protestante, demais religiões, setores da Arena e, finalmente, diversos setores militares.”

“O Partido não esconde o seu parecer de que a humanidade caminha no sentido do socialismo, primeira e longa fase histórica que precede ao comunismo. O Partido considera que só a perspectiva socialista representa alternativa verdadeira, viável e provada, do povo brasileiro resolver seus problemas mais profundos e construir um futuro grandioso.”

“O ponto de vista básico que orienta toda a atuação dos marxistas é o de que as massas, e somente as massas, são os verdadeiros heróis da história, e de que, sem as massas, nada de profundo e duradouro pode ser construído.”

“Por outro lado, o regime tanto fez e desfez constituições, atos institucionais, adicionais e complementares que mergulhou o país em uma ilegalidade completa, em um verdadeiro e profundo caos jurídico. Ilustração acabada da absurda situação do arbítrio a que chegamos, dá-nos Aliomar Baleeiro, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, ao observar: "O presidente… poderá fazer o que quiser. Por exemplo, revogar dispositivo que veda emendas com o fim de abolir a República e a Federação e, em seguida, instituir a monarquia e coroar um dom Fulano I, Imperador absoluto". O Próprio Baleeiro adverte: “Pela letra do artigo 182, combinado com o AI-5, essa aventura seria constitucionalmente possível”.

“Não será livre uma Constituinte eleita sob a égide do AI-5, da chamada Lei Falcão, de decretos como o 477, da censura à imprensa etc…, por que tais instrumentos são o oposto da liberdade.”

“A elaboração de nova constituição e a convocação da constituinte não poderão ser atos formais, sem prévio confronto de ideias. Será imprescindível o debate aberto, não apenas depois de instalada a constituinte, mas desde a convocação de sua eleição. O povo deverá levantar suas ideias nas ruas, pelos jornais, rádios e televisões. Na verdade, será precisamente esse amplo, irrestrito e fecundo confronto de ideias que se refletirá na constituição, fazendo-a ser a expressão da média dos anseios concretos do nosso povo. Portanto, todo obstáculo à livre exposição do pensamento, todo estorvo à manifestação soberana do povo, todo ato de exceção deverá ser afastado preliminarmente à convocação de assembleia constituinte que se pretende livremente eleita.”

“Para que a manifestação popular no sentido da reorganização da República possa contar com todos os brasileiros; para que nenhum brasileiro seja impedido, por razões políticas, de falar, votar e ser votado, é absolutamente imprescindível a vigência de uma anistia ampla, geral e irrestrita a todos os atingidos pelos atos de exceção.”

“E agora eu lhes pergunto senhores desse Tribunal: de que ponto de vista é prejudicial ao país a exigência da Assembleia Constituinte, da Abolição dos Atos de Exceção e da Anistia Ampla e Irrestrita? Não é do ponto de vista da Nação brasileira. O povo do nosso país, contra todos os mecanismos de cerceamento de suas possibilidades de manifestação vêm, exatamente, engrossando o caudal da oposição popular que clama pelo Estado de Direito. Olhem os estudantes, policiados pelo decreto 477. Foram contidos oito anos até que, às dezenas de milhares, em todo o país, quebram as cadeias das proibições e ganham as ruas, reconquistando, na luta, liberdade perdidas, golpeando o sinistro instrumento 477 do governo. Reparem o MDB. Foi um partido criado pela própria ditadura para contracenar com ela a farsa da democracia. Entretanto, apesar disso, o instinto popular e o valor de alguns de seus membros estão transformando esse partido em força de oposição e a farsa se transforma em tragédia para o regime. Considerem a consciência jurídica nacional. Pisoteada pelo regime que retirou as prerrogativas do judiciário, reduzindo-o a um subpoder, levanta-se agora, pela voz de suas mais categorizadas figuras, em briosa resistência, refazendo o caminho civilista peregrinado por Rui Barbosa, em defesa de uma Constituição sem “bastardia de origem”. Observem as Igrejas, os artistas, os empresários, os jornalistas, bancários, professores, para já não falar dos operários e camponeses, e que verão? A insatisfação generalizada, o medo se transformando em coragem, e o silêncio em surdo reclamo contra a situação, pelo retorno das liberdades democráticas, pelo fim da ditadura, pela volta dos militares aos quarteis”.

“Do ponto de vista do povo, prejudicial é o AI-5, a lei anti-greve, o 477, a tortura, os assassinatos políticos e de criminosos comuns, o arrocho salarial, o crescimento avassalador do custo de vida, a censura prévia, a transformação dos sindicatos em órgãos assistenciais, a política de submissão às multinacionais, o enfraquecimento de empresariado nacional, o rompimento do monopólio estatal do petróleo, a política habitacional de suntuosidade para alguns e de miséria para a maioria, a corrupção desenfreada, as mordomias, a apologia do técnico que não pensa o monopólio do poder pelo Executivo e do Executivo por alguns generais.”

“Argui-se, amiúde, contra o que se considera ser alguns métodos de ação dos comunistas. Especialmente condena-se o apoio que dão a luta armada. Mas, o povo francês erigiu o seu lema de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, na base de uma cruente guerra civil. O povo norte-americano lançou as bases de sua democracia através do recurso às armas. Os povos latinos americanos libertaram-se de seus colonizadores porque tiveram coragem de apelar para as armas. A nossa própria independência não pôde prescindir da luta arma patriótica em alguns estados, particularmente nas terras do recôncavo baiano.”

“Além disso, os comunistas não apoiam indistintamente, qualquer luta armada. Consideram uma questão de princípio apoiar todas as lutas, armadas ou não, que sejam verdadeiramente feitas pelo povo. Criticam o voluntarismo de pessoas ou grupos que optam por atos armados isolados das massas, atos que refletem desespero, impaciência, embora exista, em muitos deles, impulso revolucionário e boa intenção. Criticam, também, energicamente, as guerras de agressão, os golpes militares, ações estas feitas contra o povo.”

“No futuro, quando se recontar a história de luta do povo nessa quadra difícil de sua existência, ao Araguaia estará reservado lugar de destaque e de respeito. Os nomes das dezenas de combatentes ali tombados, à frente dos quais, Maurício Grabois, aqui processado para ser punido exemplarmente, ganharão a auréola de heroicos filhos do povo, lutadores da liberdade e dos direitos dos pobres. Ao seu lado estarão os demais mártires e heróis da luta atual.”

“Senhores, os que estão hoje no poder, dele um dia cairão. Só lhes resta a variável do tempo, que pode ser mais curto ou mais longo. Seguramente será mais curto, porque longo já foi demais.”

“O fascismo está sendo derrotado na Espanha, na Índia, na Grécia. Em Portugal foi derrubado. Na América Latina, as ditaduras militares vivem sua fase crepuscular. Ante elas levanta-se, vencedor, o gigante popular, libertando anseios represados. A ditadura do Peru cuida de marcar data para a entrega do poder aos civis. A da Bolívia segue o exemplo. As do Chile, do Uruguai e da Argentina debatem-se à cata de uma saída. A do Brasil contempla, perplexa, a avalanche de protesto que cresce, selando o seu futuro.”

“Nego, peremptoriamente, que algum ato meu, ou plano, ou intenção ou fala, ou seja o que for, tenha causado a mais leve ameaça à soberania nacional ou aos sagrados direitos do povo brasileiro. Portanto, nego, cabalmente, a denúncia que me é feita de ter ameaçado a segurança nacional.

Sou, sim, patriota consequente, democrata intransigente, marxista-leninista convicto.”

“Ser patriota e democrata, para mim, não tem sido fácil. Por isso fui preso arbitrariamente; por isso fui covardemente torturado, conforme já relatei a esse Conselho; por isso estou sendo julgado. Mas o sacrifício vale, a Pátria e o povo merecem.”

“Neste julgamento não está em questão nenhum ato meu. Em questão estão as minhas ideias. E eu as proclamo justas e as reafirmo.”

“Estou convencido de que não tardará o dia em que o povo dará a última palavra sobre o acerto ou erro dos pontos de vista que esposo e que aqui apresentei.”

“Enquanto esse dia não chega, julguem essas ideias, agora, os senhores”.