Publicado 01/04/2014 10:25 | Editado 04/03/2020 16:27
Como militante das lutas pelos direitos femininos, leio o noticiário sobre a recente pesquisa do Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea) com desalento e indignação. Intitulado Tolerância Social à Violência Contra as Mulheres, o estudo foi apresentado no último dia 27 de março e logo recebido com espanto por amplos setores, particularmente o movimento de mulheres. Não por acaso, pois, nos últimos tempos, nós mulheres lutamos muito e conquistamos importantes vitórias. Usar a palavra presidenta é uma das provas dos muitos avanços da luta feminina por mais espaços em todos os sentidos nesta sociedade que ajudamos a construir. Porém, vimos a cada dia a necessidade de consolidar essas conquistas e lutar ainda mais para combater todas as formas de violência, preconceito e discriminação contra nós.
Mais indignação me causaram as respostas constantes nos gráficos 24 e 25 do documento. Os 3.810 entrevistados e entrevistadas (sim, 66,5% eram mulheres!) foram estimulados a concordar ou discordar com frases que afirmavam que mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas e que seriam menos estupradas se soubessem como se comportar. Antes de qualquer reflexão, bom lembrar que estupro é crime e NUNCA uma escolha da vítima. Ninguém escolhe ser estuprada e nem tampouco isso é particularidade de quem anda nua, menos ou mais vestida. 65% dos que foram questionados/as no caso da relação entre vestimentas e merecimento dos ataques e 58,5% dos/as confrontados/as com a frase relacionando o comportamento feminino à quantidade de estupros, não se colocaram no lugar de quem já viveu a violência intolerável de um ataque dessa triste natureza. Devem não ter conhecimento ou não dão importância aos casos de pais e mães que tiveram seus filhos e filhas violentados e mortos. O pior e talvez mais grave são as muitas sequelas desse resultado, o ódio contra as mulheres propagado por um punhado de covardes nas redes sociais, as ameaças de estupro via internet pós-pesquisa e outros reflexos que só confirmam o muito que há por fazer. A condenável repercussão parece revelar uma finalidade ainda mais absurda: naturalizar a cultura do estupro.
Quem acredita que o comportamento feminino induz ao estupro está optando pelo lado do agressor e, consequentemente, validando um crime perverso, covarde e hediondo. Culpar a vítima é fazer uma opção. Quando estávamos lutando por leis que barrassem a violência contra a mulher, o discurso era parecido. Diziam que mulheres apanhavam por opção, que “em briga de marido e mulher não se mete a colher” (outra frase constante na pesquisa do Ipea, com a qual 78,7% dos/as entrevistados/as concordaram total ou parcialmente). Mas, com nossa luta, conseguimos aprovar a Lei Maria da Penha, como mecanismo para combater a violência de gênero cujos resultados também podem ser vistos em outros resultados do estudo em questão (caso, por exemplo, dos 78,1% que concordam que homem que bate na esposa tem de ir para a cadeia).
Agora não será diferente. Vamos nos unir novamente para mostrar que o nosso corpo não é objeto e nenhuma de nós merece ser estuprada. Nossos corpos pertencem unicamente a nós, assim como nos pertencem nossos comportamentos e nossas escolhas. Faço uma saudação especial às jovens da União da Juventude Socialista (UJS) de todo o Brasil, que não descansam um dia sequer na luta para mostrar ao País um contraponto à pesquisa. O que elas reivindicam é o desejo de todas nós: direito pleno ao nosso corpo.
O corpo feminino, independente das vestes ou da conduta de sua dona, não deve ser visto como um convite, muito menos tomado à força. Sejamos simplesmente humanos/as neste debate. Não precisamos ensinar ninguém a se vestir, mas precisamos garantir que as pessoas possam ir e vir com segurança, com respeito ao seu gênero e suas orientações. É o que determina a Constituição de 1988. É o que estamos sempre dispostas a defender.
*Eliana Gomes é presidenta da Habitafor e vice-presidenta do PCdoB de Fortaleza