Gabriel Nascimento: Sou negro e Joaquim Barbosa não me representa

Cansado de toda a movimentação que se faz nas redes sociais a respeito de Joaquim Barbosa, demarcando sua cor, eu tenho enfrentado debates importantes em vários espaços e setores sobre a democracia, a distribuição de renda e a justiça. Essa última, injusta, sempre defendeu os mais ricos, donos e frequentadores dos grandes clubes do poder que têm endereço na Avenida Paulista, em São Paulo.

Por Gabriel Nascimento*, especial para o Vermelho

Depois de mais de 100 anos sem escravidão legal, com 5 quintos de nossa história nacional de enfrentamento a um processo legal de escravização de seres humanos negros e sua redução à desumanidade, definitivamente Joaquim Barbosa não me representa.

Joaquim Barbosa não me representa porque concedeu à mídia representante da grande burguesia brasileira o maior espetáculo midiático por qual passou a justiça brasileira, essa mesma que legitimou a extradição de Olga Benário Prestes e o golpe de 64. Indicado ainda na gestão de Lula, Joaquim Barbosa foi escolhido por ser negro, numa tentativa clara do governo de fazer reparação nos mais diversos setores, inclusive no judiciário. De lá para cá, uma barbárie: aliando-se a forças conservadoras e golpistas, o magistrado negro vem passando por cima de mais de 4 séculos de história da resistência afrobrasileira. Isso ficou expresso na tentativa do magistrado negro de transformar o tribunal na sessão fascista da Teoria do Domínio do Fato ao ignorar o in dúbio pro reo.

Esse princípio é resultado de um conjunto de políticas que, nos estados modernos, impede que um réu seja condenado sem provas. Passar por cima disso é esquecer que o ladrão de galinha é preso e condenado, na maioria das vezes, por um tribunal de exceção igual ou pior que esse da ação penal 470, que agora vai ter na defesa do magistrado “negão” o seu tão saboroso precedente, estampado na figura da jurisprudência. O ladrão de galinha é, na ampla maioria das vezes, “negão” igual ao magistrado.

Está sendo vergonhoso assistir na Internet uma verdadeira bandeira conservadora sendo hasteada em nome de Joaquim Barbosa contra qualquer política progressista que os movimentos sociais conseguiram, em uma década, com governos mais populares. Joaquim Barbosa tem representado esse atraso ideológico porque se posicionou politicamente ao lado daqueles que, historicamente, nos traficaram de África, nos jogavam ao mar amarrados em rede quando viam a Real Marinha Inglesa, depois da Lei Bill Aberdeen, sem direito à vida, sem nada. Joaquim Barbosa se posicionou ao lado dos que nos chicoteavam quando não trabalhávamos para gerar boa produção. Joaquim Barbosa pisou na democracia, a mesma que só veio a ser realidade porque as juventudes de esquerda sofreram as agruras de 21 anos de ditadura militar sangrenta, absurda, medonha. Joaquim Barbosa não honra o Valdir, “negão” do Araguaia, um dos mais de 100 comunistas mortos na Guerrilha do Araguaia, quando as Forças Armadas colocaram milhares de homens e usaram até Napalm para acabar com um projeto de resistência. Joaquim Barbosa repetiu o óbvio da justiça, o óbvio em que acreditávamos.

Não era necessário um negro para repetir o óbvio, e por isso sua presença nos envergonha. Envergonha a nós, os negros que diariamente lutamos em nossas universidades, escolas e demais setores com nossas armas democráticas de luta, contra o genocídio da juventude negra, a favor das Cotas, de maior investimento para a educação pública. Joaquim Barbosa não me honra enquanto estudante negro da zona rural, filho da senzala.

A partir daí Joaquim Barbosa passou a ser elogiado por sua história triste de menino negro que chegou aonde chegou. Sua cor, no entanto, está tentando ser usada para ir contra políticas públicas de Estado que vêm modificando o perfil da população negra brasileira. Ao usarem a imagem do magistrado negro ao lado da frase atribuída a ele “Cotas não, obrigado”, a direita reacionária tenta colocar uma exceção como regra. Num país de quase 200 milhões de pessoas, com mais de 50% de autodeclarados negros, Joaquim Barbosa representa uma minoria, uma exceção. Usar Joaquim
Barbosa como regra é, no mínimo, um dos equívocos mais grosseiros que se pode cometer. O próprio magistrado votou pela constitucionalidade das Cotas, amparado por seu caráter isonômico.

Não podemos concordar que, com a judicialização da política, o posicionamento ideológico definido e os desrespeitos aos princípios constitucionais que são resultantes da intensa luta dos movimentos sociais, Joaquim Barbosa execre séculos de luta. Como pode tal magistrado negro ter passado o que passou e ter arquivado um inquérito que cita o nome de um poderoso banqueiro chamado Daniel Dantas, só para o mesmo não ser réu no julgamento do Mensalão? Como pode esse mesmo sujeito filho da classe trabalhadora ter impedido uma prefeitura como a de São Paulo de diminuir o IPTU das periferias e aumentar o mesmo imposto para a elite? Aonde vai parar o juiz que se tornou a figura fantoche de quem há mais de 120 anos estava lhe chicoteando no tronco? Essas perguntas nos fazem refletir que talvez ainda falte muito de debate e tomada de consciência por meio dos movimentos sociais para que tenhamos de fato negros em todos os setores, mas negros que respeitem a história do movimento negro, dos movimentos sociais, do movimento de democratização contra uma sociedade autoritária.

*Gabriel Nascimento é membro da UJS e faz Mestrado em Linguística Aplicada na Universidade de Brasília.