José Luís Fiori: História de um naufrágio
É preciso olhar de frente e sem ilusões: a social-democracia e o socialismo europeus acabaram. Acabaram como utopia, como ideologia e como projeto político autônomo.
José Luís Fiori*, na Carta Maior
Publicado 22/04/2014 08:50
De forma inglória, na Itália, Grécia, Portugal e Espanha, e de forma desastrosa, na França de Françoise Hollande, com sua xenofobia e seu “belicismo humanitário”; e na Alemanha, dos governos de coalisão e da submissão social-democrata, ao conservadorismo de Angela Merkel, com sua visão “germanocentrica” e hierárquica da União Europeia, e da sua relação com o mundo islâmico. Este espetáculo terminal, entretanto, inscreve-se numa longa história que começou no fim do século 19, e atravessou várias “revisões” teóricas e estratégicas, e inúmeras experiências parlamentares e de governo, que foram alterando, progressivamente, através do século 20, os objetivos e a própria identidade do socialismo europeu, até chegar ao desastre atual.
Tudo começou em 1884, com a defesa de Eduard Bernstein, da necessidade de modificar ou reinterpretar algumas teses marxistas clássicas sobre a “luta de classes” e a “revolução socialista”, à luz das grandes transformações capitalistas das últimas décadas do século 19, e das necessidades da luta eleitoral do partido social-democrata alemão, que era o mais importante da Europa, naquele momento. Segundo Bernstein, o progresso tecnológico e a centralização e internacionalização do capital haviam mudado a natureza da classe operária e a própria dinâmica do sistema capitalista, cujo desenvolvimento histórico já não apontaria mais na direção da “pauperização crescente”, da “crise final” e da “revolução socialista”.
Como consequência, Bernstein propunha que os social-democratas abandonassem a “via revolucionária”, e optassem pela via eleitoral e parlamentar de transformação continua, reformista e endógena do próprio capitalismo. As ideias e propostas de Bernstein privilegiavam incialmente a questão parlamentar, e foi só mais tarde que tiveram um peso importante na decisão dos social-democratas de participar dos governos de “união nacional’ ou de “frente popular”, junto com outras forças políticas mais conservadoras, para enfrentar os efeitos devastadores da I Guerra Mundial, e da crise econômica da década de 1930.
Os problemas que estavam colocados sobre a mesa, eram o colapso econômico, o desemprego e a inflação, e os social-democratas seguiram a cartilha dos conservadores, até porque não tinham uma visão própria de como enfrentar estes desafios concretos, dentro do próprio capitalismo. Neste contexto, entretanto, destaca-se a originalidade do governo social-democrata sueco que respondeu à crise utilizando-se de uma política heterodoxa de incentivo ao crescimento econômico e pleno emprego. A despeito que seu sucesso deva ser atribuído ao atrelamento da economia sueca ao expansionismo bélico da economia nazista, mais do que as virtudes da própria política econômica do governo social-democrata.
De qualquer forma, o modelo sueco de “pactação social” foi reproduzido mais tarde, com sucesso, pelos governos social-democratas da Áustria, Bélgica, Holanda, e dos próprios países nórdicos, que seguiram sendo governados pelos social-democratas, depois da guerra. Seja como for, o caso sueco foi uma exceção no meio de vários fracassos social-democratas no comando das politicas econômicas rigorosamente ortodoxas e conservadoras dos governos de que participaram, na Alemanha, entre 1928-30; na Grã Bretanha, entre 1929-31; na Espanha, entre 1928-30; e na França, entre 1936-37.
Logo depois da Segunda Guerra Mundial, os alemães lideraram outra grande revisão doutrinária e estratégica do socialismo europeu que culminou no Congresso do Bad Godesberg, realizado em 1959. Foi neste momento que os socialistas e os social-democratas europeus abandonaram a ortodoxia econômica e aderiram às teses e às políticas keynesianas, como forma de gerir a economia capitalista com objetivo de multiplicar os empregos e os recursos necessários para o financiamento de suas políticas distributivas e de proteção social. Dava-se como certo que no médio prazo, as políticas favoráveis à acumulação de capital também teriam efeitos favoráveis para o mundo do trabalho e da igualdade social.
Neste sentido, do ponto de vista lógico e político, a partir deste momento, o sucesso do capitalismo passou a ser uma condição indispensável do sucesso reformista dos socialistas europeus, completando-se um giro de 180 graus, com relação à sua tese clássica de que a liberdade e a igualdade seriam um produto necessário da eliminação da propriedade privada e dos “estados burgueses”. Depois de Bad Godesberg, a nova proposta passou a ser: “liberdade política = igualdade social = crescimento econômico = sucesso capitalista”.
De qualquer maneira, este novo consenso durou pouco, e já na década de 1980, teve início uma terceira grande “rodada revisionista”, quando os socialistas e social-democratas europeus abandonaram o “barco keynesiano” e aderiram às novas teses e políticas neoliberais promovidas em todo mundo, pelos governos conservadores de Margareth Thatcher e Ronald Reagan. Esta mudança de rumo avançou como um rastrilho de pólvora – a partir de 1980 – na Espanha de Felipe Gonzalez e na França de François Mitterand, e também na Itália de Bettino Craxi, e na Grécia de Andreas Papandreu. E logo em seguida, na Inglaterra de Tony Blair, onde foram formuladas as principais teses da “terceira via”, patrocinada pelos trabalhismo inglês, e que era na prática uma repetição dos mesmos argumentos que Eduard Bernstein havia apresentado um século antes. Segundo os trabalhistas ingleses, teria ocorrido uma mudança do capitalismo e de suas classes sociais que limitava a eficácia da política de classe tradicional e da própria intervenção “keynesiana’ do estado, fazendo-se necessário uma nova adaptação das ideias e programas socialistas a este mundo desproletarizado, desestatizado e globalizado.
No início do século 21, entretanto, já estava claro que estas políticas e reformas tinham tido um efeito social extremamente negativo, provocando redução simultânea dos postos de trabalho, dos salários, dos gastos sociais e da segurança dos trabalhadores, junto com uma enorme concentração e centralização do capital e da renda, em todos os países do continente. Mesmo assim, os socialistas e social-democratas europeus mantiveram e radicalizaram suas novas posições, transformando-se nos defensores mais intransigentes – dentro da União Europeia – dos princípios e políticas ortodoxas e neoliberais que os levaram ao “beco sem saída” em que se encontram na conjuntura desta segunda década do século 21.
O problema agora é que já não se trata mais de uma simples crise conjuntural ou circunstancial, se trata do esgotamento de um projeto que foi sofrendo sucessivas mudanças estratégicas até o ponto em que perdeu todo e qualquer contato com suas próprias raízes históricas. Primeiro, os partidos socialistas e social-democratas abriram mão da ideia da revolução socialista, e depois do próprio socialismo como objetivo final da sua luta política.
Mais à frente, deixaram de lado o projeto de socialização da propriedade privada, e de eliminação do estado, e no final do século 20, passaram a atacar as próprias políticas de crescimento, pleno emprego e proteção social que foram suas principais bandeiras depois da Segunda Guerra Mundial, e que talvez tenha sido sua principal contribuição ao século 20. Por isto, hoje, os socialistas europeus estão transformados numa caricatura de si mesmos, sem horizonte utópico, e sem nenhuma capacidade de inovação política, social e intelectual. Um triste fim para uma utopia e um projeto que fizeram da Europa do século 19, a vanguarda revolucionário do mundo.
Segunda Parte
[Enquanto se aproximava o fim do século 20, socialistas não podiam fazer outra coisa senão reexaminar, novamente, o quadro da sua doutrina. Eles o examinaram como sempre o haviam feito: de uma forma confusa e descoordenada, impulsionados pela contingência da política cotidiana e a pressão da considerção eleitoral. Eles não podiam fazer diferente. Avançar não é garantia de sucesso. Permanecer imóvel oferece a certeza da derrota.] Donald Sassoon (1997), Cem anos de Socialismo, Fontana Press, Londres, p. 754. (Tradução do Vermelho)
1) A sua identidade doutrinária foi sendo desmontada pelos próprios socialistas, através de sucessivas revisões teóricas, ideológicas e políticas de sua matriz originária, de inspiração marxista, feitas sempre em nome das “transformações do capitalismo”, e das exigências da “luta eleitoral”. Mas a lenta e progressiva “desconstrução” desta matriz não deu lugar à nenhuma outra teoria com a mesma capacidade marxista de definir objetivos, atores e estratégias, a partir de um diagnóstico de longo prazo das tendências críticas do capitalismo. Pelo contrário, estas sucessivas revisões foram criando uma verdadeira “colcha de retalhos”, que foi sendo tecida de forma pragmática, como resposta aos desafios imediatos, e como justificativa de decisões políticas conjunturais, cada vez mais contraditórias, com relação aos objetivos iniciais dos socialistas.
Como vimos no artigo anterior, a primeira “rodada revisionista”, do final do século 19, foi uma opção política pela “via eleitoral” que acabou tendo um enorme impacto estratégico e de longo prazo, porque significou, na prática, o abandono do projeto revolucionário de ruptura e superação do capitalismo, através da eliminação da propriedade privada, das classes sociais, e do estado. A segunda “rodada revisionista”, da década de 1950, por sua vez, implicou no abandono definitivo da própria ideia de uma sociedade e uma economia socialistas, e no longo prazo, significou uma opção pelo “aperfeiçoamento” ou “humanização” do próprio capitalismo De forma que se pode considerar que a terceira grande “rodada revisionista” e neoliberal, dos anos 1980 e 1990, foi apenas uma culminação da decisão anterior de se adequar periodicamente às “exigências e inovações do Capital”.
Pouco depois, no início do século 21, o socialismo europeu já estava transformado numa “torre de Babel” irrecuperável.
2) A experiência governamental do socialismo europeu foi bem menos turbulenta e inovadora do que foi sua vida doutrinária. Durante os séculos 19 e 20, os “socialistas utópicos”, de todos os matizes, e os “anarquistas’, por razões óbvias, só participaram pontualmente de alguma experiência de gestão estatal, defendendo – até hoje – várias formas de economia comunitária, cooperativa ou solidária, e várias formas políticas de democracia local, direta ou participativa. E o “socialismo soviético” simplesmente eliminou o problema da gestão estatal do capitalismo, ao coletivizar a propriedade e se propor a construção de uma economia de planejamento central. Por isto coube aos partidos socialistas e social-democratas ( e de forma secundária, aos partidos comunistas) enfrentar o desafio de administrar democraticamente os estados e as economias capitalistas europeias.
Neste campo, entretanto, os socialistas europeus inventaram e inovaram muito pouco com relação às politicas ortodoxas, conservadoras ou convencionais, durante suas três grandes experiências de governo, depois da Primeira Guerra Mundial, nos anos 1960/70, e durante a “era neoliberal”. Se pode afirmar que nunca existiu um programa de governo específico e exclusivo dos socialistas, que pelo contrário, sofreram sempre uma forte influência e muitas vezes assimilaram, pura e simplesmente, as ideias e projetos dos partidos e governos conservadores.
No campo da política econômica, por exemplo, os governos socialistas foram quase sempre ortodoxos, como no caso clássico de Rudolf Hilferding, ao assumir o Ministério da Fazenda da Alemanha, em 1928. Mas também no caso do Partido Laborista inglês que optou em 1929 pela “visão do Tesouro”, contra a opinião liberal de John Keynes e David George, e o mesmo aconteceu com o governo social-democrata de Leon Blum, na França, em 1936.
Mesmo depois da Segunda Guerra Mundial, os social-democratas e socialistas seguiram ortodoxos, e só se “converteram” às políticas keynesianas na década de 1960. Mas assim mesmo, nas crises monetárias de 1966 e 1972, os governos de Harold Wilson e Helmut Schmid voltaram rapidamente ao trilho conservador da ortodoxia monetarista. Neste sentido, como já vimos, a experiência sueca da década de 1930 foi uma exceção dentro de uma história relativamente monótona e recorrente. E ainda mais, depois da década de 80, e da adesão entusiástica dos socialistas de todos os matizes ao novo ideário neoliberal liderado e popularizado pelos governos anglo-saxões de Margareth Thatcher e Ronald Reagan.
O mesmo aconteceu no campo da política externa dos governos socialistas e social-democratas do século 20. Foi por aí que começou sua primeira grande divisão interna, por conta de sua tomada de posição frente à Primeira Guerra Mundial.
Mas na década de 1930, as coalizões de governo com participação socialista ou social-democrata, também se dividiram frente à Guerra Civil Espanhola e aos primeiros passos da escalada nazista. E voltaram a se dividir durante a Guerra Fria, e foi só tardiamente que eles aderiram ao projeto da unificação europeia iniciado pelas forças conservadoras da França e da Alemanha. Em todo o século 20, uma das raras iniciativas realmente originais e autônomas de uma governo social-democrata, no campo da política internacional, afora a solidariedade genérica dos socialistas, com o “terceiro mundo”, foi a Ostpolitik do governo social-democrata de Willy Brandt, em 1969, que viabilizou os acordos de desarmamento, da década de 1970 e 1980, e iniciou o grande movimento na direção do “leste”, da Alemanha Ocidental, que acabou produzindo mudanças geopolíticas fundamentais, dentro e fora da Europa. Mas em geral se pode dizer que a política externa dos socialistas, e dos social-democratas, também se pautou pelas ideias e diretrizes dos partidos e governos conservadores, na Inglaterra, do nacionalismo gaullista, na França, e dos democrata-cristãos, na Alemanha.
Esta falta de “originalidade” talvez explique porque tenha sido durante seus próprios governos que o socialismo e a social-democraica tenham se dividido de forma mais profunda e radical. Uma divisão que chegou no limite da ruptura definitiva, depois da “virada revisionista” dos anos 1950, e durante os governos social-democratas que começam na década de 1960. Foi o período das grandes revoltas sociais e sindicais que questionaram a estratégia e a organização da “velha esquerda” e criaram as bases dos novos movimentos sociais, com sua proposta de volta às raízes anárquicas e comunitárias do “socialismo utópico”, e sua recusa da política partidária e da participação em governos.
3) Assim mesmo, no balanço final do século 20, é fundamental reconhecer que os partidos socialistas e os social-democratas europeus, na oposição ou no governo, mais na oposição do que no governo, e sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, deram uma contribuição decisiva para a diminuição da desigualdade social, e para a universalização de formas de proteção social e planejamento que haviam sido experimentadas durante a guerra. Mesmo quando estas políticas também tivessem sido apoiadas e incentivadas por vários partidos e governos conservadores.
De fato, os socialistas e os social-democratas europeus só perderam definitivamente o seu rumo e a sua identidade, depois do fim da União Soviética, que havia contribuído, no período anterior, para sustentar a imagem progressista do socialismo europeu, no cumprimento de sua função, dentro da Guerra Fria, de “alter-ego crítico” e de oposição de esquerda, ao socialismo soviético.
*José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e colunista da Carta Maior.
Fonte: Carta Maior