Por que o Decreto da Participação Social fez tremer o Congresso? 

 Queria eu que o Decreto Nº 8.243, de 23 de maio de 2014, que institui a Política Nacional de Participação Social, tivesse a força de mexer com nossa democracia como andam alardeando por aí.

Por Nathalie Beghin*

Por que o Decreto da Participação Social fez tremer o Congresso?

 Fiquei perplexa ontem quando vi os depoimentos dos nossos nobres parlamentares, indignados com os marcos legais que eles e seus antecessores aprovaram. O que será que aconteceu? Deu tilt? Aplicaram o lema um dia proferido por um dos nossos presidentes da República: “esqueçam tudo que escrevi?”

Acho que nem Freud explica a reação patética de vários dos nossos congressistas. Com todo respeito à equipe séria e comprometida do Ministro Gilberto Carvalho, o Decreto em questão apenas organiza um conjunto de instrumentos existentes, sendo muitos deles resultado de leis aprovadas por nossos “indignados” parlamentares. É um decreto, pois trata-se de instrumento de gestão do Executivo para executar as normas vigentes de uma maneira mais coordenada e articulada. Trata-se simplesmente de – ao desenhar, implementar e executar políticas públicas – levar em conta opiniões de diversos atores da sociedade, por meio de uma miríade de instrumentos como consultas públicas, ouvidorias, 0800, conselhos, conferências, diálogos sociais, entre outros.

Surpreendi-me com o Senador Cristovam Buarque, que de certa forma emblematiza essa reação fora de proporção. Faço parte daqueles que o ajudaram a construir os núcleos temáticos na UnB, quando assumiu a reitoria dessa relevante instituição pública de ensino superior, em meados da década de 1980. A ideia era a de romper com estruturas arcaicas, arejar o pensamento, trazendo novos atores para dentro da universidade. Na ocasião, criamos o Prêmio Josué de Castro de Combate à Fome, que foi entregue ao Dieese e depois à Contag. Levamos os trabalhadores para dentro da UnB e discutimos com eles a fome. Hoje parece óbvio, mas era um debate inovador na nascente democracia brasileira. Como pode um magnífico reitor, tão ousado, apoiar discurso do Presidente do Senado, que restringe a democracia? Era sua obrigação defender o Decreto Nº 8.243.

Para além de possíveis explicações eleitoreiras, de aproveitar tudo o que aparece para condenar o governo em exercício, avalio que há algo mais profundo, do inconsciente coletivo dos nossos parlamentares. Sabem, lá no fundo, que não estão cumprindo sua missão a contento, que deixam muito a desejar. Mas, surpreendentemente, ao invés de aproveitar uma oportunidade como esta para se aproximarem da democracia, isto é, do povo, se afastam dela, esquecendo as suas diversas dimensões cunhadas na Constituição de 1988 para além da representativa: a participativa e a direta. Tal atitude revela um temor de perda de poder, uma incapacidade de empatia com as demandas das ruas.

O Decreto em pauta é importante, dá mais um passo na sistematização das diferentes formas de escuta por parte do poder público, mas não traz nada de novo. Queremos mais, muito mais. Queremos de fato mais democracia e para tanto precisamos urgentemente de uma reforma política. A recente atitude dos nossos parlamentares é mais uma prova de que profundas transformações são necessárias para que as vozes dos diversos segmentos da sociedade possam de fato se traduzir em ações do Estado por meio de distintas instâncias públicas de mediação. A reforma política desejada deve resultar na ampliação dos espaços de participação cidadã e dos sujeitos políticos, isto é, articulando a democracia representativa com a participativa e a direta. Enfim um novo modelo de democracia, que reconheça as diferentes formas de se fazer política e os seus diferentes sujeitos.

*É conselheira nacional do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e coordenadora da assessoria política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).