O rei, o complexo de vira-lata e a questão da "brasilidade"

Craque do futebol, conservador, pouco espírito crítico. Pelé conserva até hoje o mesmo discurso sobre a relação entre Brasil e esporte de quando ganhou sua primeira Copa. Ao longo das décadas, nem o penteado mudou

Por Nashla Dahás

 

Pelé

Certa vez o poeta português Fernando Pessoa afirmou que “uma criatura de nervos modernos, de inteligência sem cortinas, de sensibilidade acordada, tem a obrigação cerebral de mudar de opinião e de certeza várias vezes no mesmo dia”. Ele acompanhava uma longa tradição de filósofos, intelectuais das mais variadas áreas e escritores em geral – de Friedrich Nietzsche ao popular Paulo Coelho -, que defenderam o direito de mudar de opinião como processo imprescindível a qualquer aprendizado pessoal ou teórico. Mas eis que Edson Arantes do Nascimento, o brasileiro coroado rei do futebol mundial talvez discordasse de todos eles sem sequer pensar duas vezes. Pelé, como ficou conhecido pelo menos desde os 17 anos, quando já era herói no Brasil, nunca mudou a aparência. Conserva o mesmíssimo corte de cabelo, nunca aderiu às inovações estilísticas próprias às décadas marcantes em que viveu, e chega ao século XXI com a mesma fisionomia de quando era atleta. O discurso é invariavelmente o mesmo em relação a sua autoimagem, ao envolvimento com a política, ou no que diz respeito à compreensão do lugar ocupado no imaginário social do país.


 
Mais do que curioso, a antropóloga Ana Paula da Silva considerou o caso digno de estudo e análise. Sobretudo, porque se trata, segundo a autora de Pelé e o complexo de vira-latas. Discursos sobre raça e modernidade no Brasil (recém publicado pela Editora da Universidade Federal Fluminense) de uma trajetória que se consagra em perfeita sintonia com os projetos oficiais de Estado viabilizados nos anos de 1930, e depois em 1950. Ou seja, ao lado do gênio que demonstrava em campo, Pelé teria surgido fora das quatro linhas como parte ou símbolo de um processo histórico em que a higienização, a disciplina e a vitória internacional foram impostas como bases para a inserção e ascensão social do negro, para a integração nacional e para a superação do chamado “complexo de vira latas”.
 

 

Nem Leônidas da Silva, o “Diamante Negro”, nem mesmo Garrincha no auge de sua criatividade e forma poderiam ameaçar o título do rei. Por um lado, suas características pessoais não coadunavam com aquilo que desde a copa de 1938 até a de 1970, o modelo econômico e político adotado pelo país anunciava como projeto cultural: resolver a questão internamente e definir para o exterior o que era a “brasilidade”. Vale dizer que projetos como esse, que dependem sempre do apoio imprescindível dos meios de comunicação, no caso específico do Brasil, incluiu-se ainda a censura como arma fundamental do Estado. Por outro lado, Ana Paula da Silva lembra que a academia de maneira geral, e os debates no campo das ciências sociais tiveram participação fundamental não apenas na construção desse sentimento de nacionalidade, também despertado pelo futebol e capitalizado pelo Estado ao longo do tempo. Mas também embasaram toda a questão “racial” que nesse período era tema central de políticas públicas nacionais, imagem representativa da relação do país com o futebol, e a marca que o ídolo do esporte carregava em sua pele.
 
O livro é resultado de sua tese de doutorado e tem objetivo de analisar os discursos raciais nas últimas cinco décadas a partir de algumas passagens da trajetória de Pelé. Desde que despontou como craque do futebol, ele teria falado de si mesmo através de uma estratégia em que se divide entre Pelé e Edson. O primeiro é o atleta, o homem público, e o segundo é o homem comum. Ao longo de sua vida ele teria sido ao mesmo tempo o alvo e o protagonista do debate sobre o tipo nacional necessário e aceitável, capaz de superar aquilo que Nelson Rodrigues definiu como “complexo de vira latas”.
 
Leônidas da Silva havia sido o destaque da Copa de 1938, mas nem por isso deixou de vivenciar denúncias que o acusavam de "roubo de joia", "rebelde", "mau comportamento", e "mercenário". Garrincha teve a vida afetiva apropriada pela mídia. Foi sempre visto como um jogador que divertia as massas com seus dribles e cuja principal característica era a ausência de preocupação com a técnica. Foi acusado de bigamia, tinha fama de assinar contratos em branco e ainda de ter o órgão sexual avantajado, tema até de marchinha de carnaval. Morreu esquecido aos 49 anos. Apenas Pelé foi capaz de se enquadrar perfeitamente, dentro e fora de campo, na imagem que o Brasil idealizara para si. E é esta a imagem que as empresas publicitárias compram e vendem, tornando o ídolo inesquecível e imune às transformações dos tempos.
 
Ana Paula localiza nas duas primeiras décadas do século XX a construção e a ordenação de elementos que mais tarde se configurariam como representantes da "brasilidade". As ideias de profilaxia e higienização promovidas nesse período, por exemplo, teriam produzido uma seleção dos aspectos culturais a serem permitidos na convivência e no espaço urbanizado. A prática do esporte e do futebol nessa época adquiria o significado e a responsabilidade da adequação dos corpos a essa nova modernidade que se buscava instaurar. O futebol teria especialmente incorporado o projeto de nação proposto por higienistas e intelectuais da época, difundindo na população um sentimento que até ali parecia ausente: o da nacionalidade.
 
Já na ditadura do Estado Novo estabelecida de 1937 a 45, os discursos raciais ganhariam dimensão impensável até então com o trabalho de Gilberto Freyre. No prefácio de O negro no futebol brasileiro, de Mario Filho, Freyre afirma que o futebol havia servido para criar uma identidade nacional amenizando conflitos raciais sem a necessidade de institucionalização dessa questão. Brilhante em cada jogo, Pelé sempre tentara passar a imagem de bom filho, marido e pai de família. Chegou a classificar suas traições como “fatos lamentáveis” e “breves escapadelas” devidas a “alguns hormônios” da adolescência que persistiram na vida adulta. Era vencedor na profissão, moralmente conservador e politicamente acrítico; o símbolo maior da miscigenação brasileira que o Estado e a sociedade civil idealizaram juntos.
 
Da década de 1950, Pelé e o complexo de vira-latas… traz uma discussão de raça liderada por novos grupos de intelectuais militantes, incluindo o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos e Abdias Nascimento, o artista plástico fundador do “Teatro Experimental do Negro”. Nesse contexto, todos pareciam buscar “soluções” para o problema da "integração do negro na sociedade brasileira". Empenhados nessa missão, os discursos em voga enfatizavam uma atitude profissional, disciplinadora e moderna que faria dos negros e dos brasileiros em geral sujeitos de sua própria história.
 
Os tempos eram então “desenvolvimentistas”, e ao estímulo à industrialização como forma de progresso do país, somou-se a abertura do Brasil para a entrada maciça de capital internacional, e, claro, em contrapartida, a necessidade cada vez mais emergente de ser visto de forma positiva no cenário mundial desenvolvido. Aceito e admirado por todas as classes sociais, Pelé havia escalado socialmente através de seu “ascetismo, profissionalismo e postura ética no trabalho”. Tornara-se o mais poderoso exemplo do abandono das tradições culturais brasileiras “atrasadas”; a perfeita superação daquele “complexo atávico” de inferioridade que teimava em acometer o brasileiro. Em 1958, conta Ana Paula, a Confederação Brasileira de Desportos chegou a contratar o psicólogo e professor João Carvalhaes para acompanhar os jogadores e cumprir a missão de pôr fim a essa “instabilidade emocional que costumava aparecer em momentos decisivos”.
 
Somente vinte anos depois do auge de seu sucesso, a imagem nacional e internacional de Pelé se encontraria ameaçada. Durante a fase tida como a mais violentamente repressiva da ditadura brasileira iniciada em 1964, a conquista da copa do mundo de 70 pode ter sido um importante instrumento de propaganda nas mãos do Estado. Mas foi um golpe para o tipo nacional que Pelé representava. A postura pouco politizada e o hábito de manter-se igual mesmo em tempos de exceção teriam começado a prejudicar a imagem do rei. Ao mesmo tempo, “o combate ao racismo passou a associar-se ao que era chamado de "mito da democracia racial", e as desigualdades de gênero e classe ganharam espaço no debate acadêmico da época, permeando o ressurgimento de entidades que lutavam pelos direitos das minorias”, afirma a antropóloga. Não era possível criticar o poder militar centralizado, mas tornava-se uma realidade a crítica direcionada a uma visão da unidade nacional que o Estado Novo havia criado e que os militares insistiam em preservar.
 
Apegado à história que construiu para si mesmo, nesse momento Pelé não foi capaz de romper com o passado. De acordo com Ana Paula da Silva, foi perdendo representatividade no imaginário social.
 
Resta-nos saber se, ainda hoje, Pelé não é muito mais popular do que a ditadura que supostamente o teria maculado.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional