Uma paixão revolucionária

Os cinquenta anos do golpe militar têm favorecido discussões importantes, com uma intensidade excepcionalmente profícua. Acredito que também a crítica literária poderia contribuir para o debate e, nesses termos, comento brevemente aqui dois romances de Urariano Mota (Recife, 1950) que tratam da questão: Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997) e Soledad no Recife (SP, Boitempo, 2009).

Por Alcir Pécora
 

Urariano Mota

Em relação ao primeiro, que o próprio Urariano vê com reservas, não é livro a renegar. Há uma afetividade intensa nele ao tratar dos destinos de três amigos da periferia do Recife, mal chegados aos 20 anos, que se envolveram por diferentes formas e motivos na luta armada. E acho também que a orelha do poeta Alberto da Cunha Melo erra quando diz que se trata de “romance assumidamente linear e realista”, de linguagem “descascada” e sem “qualquer prurido experimental” – ainda que o diga como forma de elogio.

A presença ostensiva do narrador – que comenta o próprio relato, analisa e interpela as personagens, distende aqui a ação para apressá-la mais adiante, apostrofa o leitor, evoca a paisagem do Recife, constrói monólogos – deixa claríssima a construção literária empenhada.
 
Entretanto, o romance ganharia se deixasse de lado a reprodução de palavras de ordem que parecem didatismos pra quem conheceu a época, ainda que talvez sejam úteis para um leitor mais jovem que não as conheça, nem os assuntos ou grupos envolvidos. Também diria que o narrador se equivoca ao se colocar acima dos acontecimentos e das personagens, como se temesse cegar-se na mesma poeira que os deixava à mercê da ferocidade da repressão policial-militar.
 
Essa onisciência do narrador reduz as personagens, não no sentido de descoberta de seu tamanho real, mas de sujeição à leitura contemporânea dos fatos. É possível que explicar menos, deixar-se
arrastar pelo beco sem saída da situação favorecesse o romance. Falo de uma perspectiva narrativa: Machado, por exemplo, criou um narrador que solapa a própria autoridade o tempo todo, e é isso o que mais faz crescer a sua autoridade como autor.
 
Soledad no Recife recria ficcionalmente os eventos em torno do assassinato de Soledad Barrett Viedma e de vários de seus companheiros, conduzida, como se sabe, pelo amante e pai do filho que esperava, o famigerado Cabo Anselmo, ainda vivo e impune. É um livro emocionado e forte. Embora o narrador continue falando muito, perde o tom professoral que toma, por vezes, em Os corações futuristas.
 
Construído habilmente por Urariano como uma personagem secundária do movimento de resistência que se apaixona por Soledad, o narrador agora é chave no ritmo de contraponto da narrativa, que se passa entre o olhar amoroso que a vê, admira e deseja, e o desfecho implacável da traição que culmina na farsa montada pela repressão que ficou conhecida como “chacina da Chácara S. Bento”.
A criação desse “narrador amoroso” evidencia que a matéria ainda não pode ser contada como se o narrador estivesse à janela. Ao contrário, narrar é um encargo pesado, revisitar o acontecido é perder-se novamente na perturbação do passado.
 
Radicalizando essa questão, penso que existem dois dramas cruzados sustentando o romance. De um lado, o drama fatídico de Soledad, sob o signo da traição, de que o fluxo mental atribuído ao cabo Anselmo é o exercício mais difícil, a fim de não dar voz caricata à vileza absoluta. De outro, está o drama da narração que pretende encontrar a justa medida de um discurso sobre a paixão revolucionária, com sua coragem temerária, ingenuidade sensual e outros paradoxos.
O maior desafio dessa medida, entretanto, está no fato de que o narrador, que tem uma narrativa a fazer, não possui uma compreensão completa dela, e mais: a que tem leva-o à recusa do discurso. É, portanto, essa recusa que o narrador tem de enfrentar, é esse enfrentamento a base da narração, na qual prevalece o contraste trágico entre a abundância de sinais e presságios e a incapacidade de discerni-los, tanto de Soledad como dos demais.
Neste ponto, estamos numa espécie de epistemologia da história: como conhecê-la, em seu próprio tempo, se nele não era conhecida? Mas como narrá-la, sem traí-la, sem mergulhar nos dilemas e cegueiras de sua época? Como não desfigurá-la, quando ela é contada de frente para trás, com outros fatos que não estavam ali a dar-lhe uma configuração fácil, óbvia, que, por isso mesmo, é incapaz de enxergar o seu cerne dramático? 
 
Nesses termos, apenas como literatura o livro pode avançar na interpretação do episódio histórico. Foi preciso Urariano inventar para saber o que é real, pois os documentos são abundância morta, quando não são animados pela imaginação que os interroga.
Fonte: Revista Cult