Tratar o problema econômico sem reconsiderar o economista?

“Se desejam enforcar alguém por causa da crise, enforquem-me a mim, e aos meus colegas economistas”, constrangeu assim aos seus pares Victoria Bateman em recente conferência no Downing College, Cambridge, a propósito da crise econômica, mea culpa cuja aparência de mera retórica apenas engana.

Por Rilton Primo*, para o Vermelho

“Tal como eu a vejo, a profissão de economista sofreu um profundo desaire porque os economistas, enquanto grupo, confundiram a beleza e a sofisticação da matemática com a verdade”, redarguiu o Nobel Paul Krugman, no The New York Times. Até a estudantada está se levantando em diferentes pontos do planeta. Sinais dos tempos:

 

Um pouco por todo o mundo, grupos de estudantes de economia estão a organizar-se e a erguer a sua voz exigindo uma reforma nos programas curriculares da disciplina. Questionando a hegemonia da teoria neoclássica, a excessiva utilização dos modelos matemáticos e a desconexão entre “economia” e questões econômicas reais, os estudantes em causa, apoiados por um número crescente de acadêmicos e economistas de referência, divisaram estratégias variadas de ação e estão a começar a atingir sucessos reais. […].A 6 de abril último, um grupo de estudantes da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), uma das mais reconhecidas instituição de ensino de ciências sociais em França, realizou uma assembleia geral para discutir alternativas à ortodoxia corrente que caracteriza o ensino da economia no século XXI. Em Setembro do ano passado, mais de 400 estudantes alemães participaram num “evento de alternativa pluralista” organizado pela Associação Econômica Alemã, com o objetivo de debaterem, num fórum organizado para o efeito, ideias econômicas fora do âmbito mainstream. Em finais de Junho do corrente ano, estudantes, acadêmicos, profissionais e cidadãos juntaram-se em Londres para repensar a economia e o seu ensino enquanto disciplina na denominada Rethinking Economics Conference. Estes são apenas alguns dos exemplos que, através de iniciativas aparentemente separadas, se estão a transformar num movimento global de estudantes – e também de professores – cujo objetivo principal é alterar a forma como se olha para a economia enquanto disciplina e enquanto ciência, não exata, mas antes plural e “humana”.
Esta notícia logo se difundiu inicialmente pelas mãos de Helena Oliveira veiculando-a pelo Portal VER: Valores, Ética e Responsabilidade (Portugal) em 21 de Novembro de 2013, no dia seguinte reproduzido pelo Jornal de Negócios (Portugal) e, em 30 de novembro de 2013, pelo portal Carta Maior (Brasil). Mas esta luta é muito, muito antiga e ensaiada e, por isto mesmo, hoje se pode repensar se não é um sintoma. Para atacar o problema pela base, basta considerar a atualidade desta pergunta: o debate entre o acadêmico e o gestor de policy tem motivação ainda?… questão implícita nas sumárias palavras de Paul Krugman:

 

O papel do economista que se preocupa com política pode vir a ser desalentador: podem-se passar anos delineando elaboradas teorias ou cuidadosamente confrontando ideias com as evidências para depois descobrir que os políticos se voltam repetidamente para ideias que pensava terem sido desacreditadas décadas ou até séculos atrás, ou que eles fazem declarações em claro desacordo com os fatos. A vontade de desistir é tentadora – ou se recolher à torre de marfim ou começar a fazer o jogo do empresário de políticas.

Certa vez, J. Galbraith assinalara que, em especial nestas matérias,
 

[…] os interesses investidos na disputa de jeito nenhum são exclusivamente intelectuais. Derivam também de uma apreciação inteligente de problemas relacionados com dólares e centavos. Num assunto como política agrária – de maneira alguma um caso extremo – há centenas de pessoas influentes e articuladas cuja existência depende da duração de uma divergência de opinião. […]. Mas a existência de interesses na controvérsia é uma das razões por que a polêmica tem vida e dinâmica que não se confundem com as questões em jogo. Esta é uma das razões por que, na discussão econômica, a difamação se prolonga.
 
Também Joan Robinson tomara parte ativa na análise do fenômeno:
 
Cada um recusa-se a entender os outros, por medo de, ao compreender, ser compelido a fazer alguma concessão. Cada um persiste em seus erros, pois mesmo quando é convencido, contra sua vontade, continua com a mesma opinião. Cada um recusa-se a considerar suas premissas, com o receio de sentir-se obrigado a admitir que elas não correspondem à realidade. Cada um vê apenas a evidência incompleta a seu favor. As controvérsias, em Economia, persistem, não porque os economistas sejam necessariamente menos inteligentes ou mais mal humorados do que o restante da humanidade, mas porque os assuntos discutidos levantam sentimentos fortes. Um mau argumento, que pareça favorecer uma política desejada, é obstinada e apaixonadamente mantido contra um argumento melhor que pareça contrariá-la. […]. Todos esses conflitos são levantados até mesmo por uma simples questão de política de obras públicas. Imaginem-se quantos mais não surgirão em questões implicando reduções da desigualdade das rendas.
 
Já a aprovação do Novo Currículo Mínimo (NCM) para o Bacharelado em Ciências Econômicas por parte do Conselho Federal de Educação (CFE), em 6 de junho de 1984, através do Parecer nº 375/84 relatado pelo Sr. Cons. A. Mendes e homologado pelo Ministério da Educação e da Cultura em 26 de junho do mesmo ano, segundo alguns, teria aberto uma “nova era no ensino da economia” no Brasil. Este foio entendimento ao menos do Colegiado do Curso de Ciências Econômicas (CCCE) da Universidade Federal da Bahia (Ufba), a rigor, quando da apresentação do seu Novo Currículo Pleno para o Curso de Ciências Econômicas, através do Ofício nº 04/85 de 08 de janeiro de 1985 firmado pelo Prof. O. Sepúlveda, então Coordenador do CCCE, correspondência final dirigida ao Prof. P. Sarno, Presidente da Câmara de Ensino de Graduação da Ufba – Reitoria, após discussão com o conjunto de professores da casa e outros departamentos daquela universidade. Mas aquela nova era não parece ter se firmado na sequência dos acontecimentos.

Ano após ano a Associação Nacional dos Cursos de Graduação em Ciências Econômicas (ANGE) promove um Congresso que conta com a participação de professores, alunos e profissionais que debatem, à luz dos novos resultados epistemológicos, o que devem aprender os economistas, mas a maior parte dos temas é mais antiga do que à primeira vista se supõe. Aquele NCM tinha enfatizado nada menos que quatro princípios básicos orientadores da definição de Currículo Pleno (CP), 1º obrigando os cursos de economia a comprometer-se com o estudo da realidade nacional, “sem prejuízo de uma sólida formação teórica, histórica e instrumental”; 2º obrigando os cursos a se caracterizarem pelo “pluralismo metodológico” de forma que nenhuma “estrutura curricular não deve instrumentalizar uma única corrente do pensamento (ou ideologia) em Economia”. Os dois outros princípios obrigavam que, “no ensino das várias disciplinas do curso deverá ser enfatizada a importância fundamental das inter-relações ligando os fenômenos ao todo social em que se inserem” e, por fim, que “deve-se transmitir ao estudante ao longo do curso, o sentido ético da responsabilidade social que deverá nortear o exercício futuro da sua profissão.” Alguém poderia perguntar sobre quem atirará a primeira pedra da ética. Sem ela, porém, a ideia “todo social” é mero artefato anticomunista, ou discurso nobre.

Eis que a percepção da importância fundamental das inter-relações complexas, ligando os fenômenos ao todo social, seguem sendo essencialmente afetadas pelo incipiente e nem sempre refletido pluralismo metodológico que de início, ao sabor da Guerra Fria, apenas fez com que os marxismos e os neoclassicismos, casos extremos, coexistissem fechados em si mesmos ou, nas palavras de P. Singer, com relativamente poucas ou mesmo “nenhuma menção à existência de outra análise completamente diferente e oposta”. Como a vida não pode esperar as gestações das sínteses, até agora não concluídas, os resultados pela linha pragmática foram a instrumentalização das teorias às carreiras profissionais, com flagrantes descuidos dos conceitos, modelos compreensivos e sua história, com diferentes graus de tecnicismo a-político, ecletismo inescrupuloso, desenraizamento das realidades regionais, esvaziamento ético, em uma palavra: reiteração e não enfrentamento da crise das alternativas ao status quo do capitalismo oligopólico, desplanejamento e algazarra epistemológica, argumentos ad baculum travestidos em sistemas de equações não-lineares. É o neo-liquidacionismo crítico. O próprio neo-desenvolvimentismo está enclausurado, insuspeitamente, no marcos da original teoria quantitativa da moeda, anacronicamente abstraída das múltiplas influências simultâneas das variáveis.

A Teoria do Desenvolvimento [salientou certa vez o Prof. Fernando Pedrão] formada no marco do marginalismo incorre em duas contradições fatais que são as de não reconhecer a pluralidade do mundo contemporâneo e a de não registrar os desenvolvimentos da Ciência. A teoria ortodoxa do desenvolvimento, isto é, a dos marginalistas, revelou-se surpreendentemente indiferente ao conhecimento científico, atendo-se apenas a uma matematicidade artificiosa que acaba funcionando como um bloqueio da historicidade e da crítica da ideologia. A crítica da matematização não pode ser vista como uma negação do uso das técnicas matemáticas, mas como um alerta à substituição do raciocínio social pelo da matemática, à presunção de que as estratégias de simplificação representadas pelos modelos sejam válidas para excluir as análises de interesses e de conflitos de interesses.

 

Em um movimento pendular pós-crise, hoje se repetem os ecos das ponderadas e sanguíneas palavras de há trinta anos, quando rebramiam os libelos engajados e as apologéticas do golpe militar; ecoam, todavia quase ocas de institucionalidades, satisfeitas de suas próprias cátedras quando muito a serviço das ações cíclicas, anticíclicas, na eterna dança das cadeiras governamentais entre o mercado e o replanejamento. Sim, hoje ensaiam um discurso ainda incompleto, mas já há muito ensaiado, do retorno à Economia Política, conforme preconizado à pp. 31-32 do Parecer nº 375/84 sobre o Novo Currículo Mínimo de Ciências Econômicas, emitido pelo Ministério da Educação e Cultura (Conselho Federal de Educação), Brasília, em 1984:
A Ciência Econômica tende a reincorporar o seu adjetivo política, relegado nos manuais e nos comportamentos de grande parte do mundo ocidental há quase meio século, com a revalorização de postulados ‘clássicos’, até pouco desprezados, necessariamente recuperados à luz das novas realidades. O reconhecimento da imperiosidade desse retorno transfigurado é o primeiro passo para um outro, de maior humildade, no sentido de reinserir a Ciência Econômica no contexto mais amplo das Ciências Sociais – e, até, mais ambiciosa e realisticamente, no campo das Ciências Humanas e Sociais. Suas interligações com outras disciplinas desse abrangente campo voltam a ser exploradas, por vezes tateadas, numa busca instintiva da (re)constituição de uma interdisciplina menos exclusivista, capaz de repor no terreno da investigação científica o complexo tecido social que nunca é estanque. A vida econômica, enfim, não se processa in abstractu, mas no intrincado da vida do homem em sociedade – e o seu ser, o seu modo de ser e estar, o seu comportamento, a sua ciência e consciência não são propriedade exclusiva da economia, como não o são da Sociologia, da Antropologia, da Psicologia, da ciência política e assim por diante. Naturalmente, essa revisão há de se fazer sem prejuízo das conquistas científicas e técnicas avançadas no período. O mundo assistiu […] ao vertiginoso desenvolvimento da informática e dos métodos quantitativos, inclusive os aplicados à economia. Algumas correntes de economistas fazem uso tão abundante e cada vez mais predominante, da econometria, que parecem, conscientemente ou inconscientemente, pretender transformar a economia em Ciência Exata. Nada mais enganosos, se considerarmos a complexa teia de relações que o homem constrói no dia-a-dia do seu viver e no seu conviver, que no plano pessoal, que no plano social em todas as suas dimensões (local, regional, nacional, mundial – enquanto produtor, distribuidor, consumidor – envolvendo suas faculdades de ordem física, mental, intelectual, moral, espiritual…). É nesse quadro que o ensino da economia ou das Ciências Econômicas deve ser pensado. […]. O novo ensino da Economia não poderá, portanto, murchar até o ponto de preocupar-se em formar apenas “técnicos” em Economia, profissionais capazes de utilizar as categorias do pensamento econômico e os instrumentos da política econômica [….], mas por outro lado totalmente esterilizados no que diz respeito ao correto entendimento da interação de forças, suas inspirações e origens, seus benefícios e perversões. Os economistas para os dias de hoje não pode ser apenas um refinado matemático formulador o operador de modelos econométricos, mas deve ser, sobretudo, um competente cientista social – que, por vezes, é certo, precisa lançar mão de instrumentos matemáticos sofisticados, conquanto que deles não se torne servo inconsciente. […]. O desafio é, por conseguinte, sensivelmente, mais complexo do que há duas décadas [e hoje do que há trinta anos], e a resposta há de ser suficientemente segura e esclarecida para não cair em nenhuma das tentações: as extremas, de uma “ciência” meramente discursiva, desarticulada, inconsciente, ou de outra “ciência” que já não diz respeito ao homem real, porque reduzida a abstrações numéricas dispostas em elaboradas fórmulas matemáticas e em modelos computadorizáveis. Não pode ser, também um tipo de ciência não caracterizada, que procura encontrar um forçado equilíbrio ou ecletismo artificial.
 

A artificialidade dos propósitos das policy, projetos e programas, e dos mercenários dos avessos a riscos, vem de longe e oferecerá seus mais amargos frutos no futuro, já antevisto por muitos, como por J. Mello em seu A Contra-Revolução Liberal-Conservadora e a Tradição Crítica Latino-Americana – Um Prólogo em Homenagem a Celso Furtado:
 

Estou convencido de que vivemos por assim dizer um momento inverso ao período do imediato pós-guerra, que Polanyi denominou a Grande Transformação. Aquela altura do século, o capitalismo parecia ter sido domesticado pela sociedade. Agora que ele rompeu a carapaça que o submetia e protegia as populações, podemos falar de uma vingança do capitalismo contra a sociedade. Tudo se passa como se as tendências fundamentais do capitalismo reemergissem com intensidade redobrada. O desenvolvimento monstruoso do capital financeiro revelou uma verdade incontestável. Ou por outra, verdade bem conhecida de Marx e Keynes, de Braudel e Polanyi – nós é que andávamos meio entorpecidos pelas décadas de capitalismo domesticado, esquecidos de que o capitalismo é um regime de produção orientado para busca da riqueza abstrata, da riqueza em geral expressa pelo dinheiro. Esta abstração destrutiva aparece com toda a sua força nua e crua no atual rentismo especulativo. Mas aparece por assim dizer encoberta pelo véu tecnológico das forças produtivas desencadeadas pela Terceira Revolução Tecnológica, sob a qual também se camufla o conflito entre o capital produtivo e o capital especulativo. Daí a enorme disparidade do crescimento dos últimos anos – medíocre, se comparado aos anos 30 anos ditos gloriosos do pós-guerra – e o imenso potencial de desenvolvimento que a aplicação da ciência moderna poderia oferecer à humanidade, não fosse ele bloqueado pelas forças predominantes da propriedade capitalista. Resta a crescente redundância do trabalho vivo. Outra tendência fundamental – a desvalorização do trabalho – que retornou com força total. O desemprego estrutural, a precarização do trabalho, a intensificação da disparidade dos rendimentos, a heterogeneidade do mercado de trabalho e o agravamento da pobreza estão aí para quem quiser ver, e reconhecer enfim no capitalismo o que ele sempre foi, uma gigantesca máquina de produzir desigualdade.
 
Enquanto a nossa capacidade de análise crítica da realidade e de autocrítica profissional forem duas variáveis da função das crises cíclicas que recriamos, os anúncios sazonais de uma nova era no nosso pensamento econômico são como bolhas especulativas das ideias.

*É economista