No tempo das tangerinas

O que define pátria para um imigrante? O onde se nasce, ou os laços de sangue que unem ao passado? Este é um tema de No Tempo das Tangerinas, de Urda Alice Klueger, que chega à sétima edição (a primeira saiu em 1983). Prosa Poesia e Arte publica um trecho da dissertação de mestrado Migração, exílio e nação: No tempo das tangerinas e Um rio imita o Reno, onde Neiva Andrea Klagenberg analisa o romance.  

Por Neiva Andrea Klagenberg  

Urda Alice Klueger
O romance No tempo das tangerinas apresenta as personagens principais exiladas no Brasil de forma voluntária, que tecem uma série de considerações a respeito da nação e do nacionalismo aguçado. Entretanto, por parte de algumas personagens, como a matriarca da família, a ideia de nação é totalmente voltada à Alemanha, o que estabelece diálogos e indagações sobre a pátria distante, principalmente, no contexto da Segunda Guerra Mundial. Essas perguntas expressam um painel dos dois países, a abundância que os imigrantes desfrutam no Brasil, a pobreza e a guerra enfrentadas em solo alemão.
 
 
Além disso, percebe-se como as famílias alemãs que vivem no Brasil na época do conflito são por ele afetadas. Assim, a família Sonne tem um filho convocado para guerra, contra a Alemanha. As vidas individuais, os costumes da época, ou seja, dos anos 40 do século passado, com toda sua atmosfera social, política, econômica e cultural, através de situações de conflito e, diferentes posições ideológicas, são contempladas pela narrativa em estudo.  
 
Desse modo, o tempo da história narrada relaciona-se a um outro tempo, real, histórico. Não fica clara a temporalidade exata coberta pela história narrada, mas é possível perceber seu princípio através de menções à perseguição aos judeus na Alemanha, desencadeada na década de 1940. O narrador reconstrói esse período ficcionalmente, por meio das famílias que vivem no Brasil, mas ligadas à Alemanha, por laços afetivos e de sangue. Muitos membros da família Sonne partem às frentes de batalha, movendo-se no cenário da ditadura de Hitler e do Holocausto. Essas referências ao tempo real constituem um pano de fundo para as ações relatadas na obra literária, permitindo que o leitor acompanhe não apenas a vida familiar das personagens, mas as situe numa época determinada. 
 
O romance se desenvolve de maneira linear, sendo que a família não passa por grandes conflitos. Seus membros são unidos e trabalhadores, prósperos e bem estruturados, deixando evidente o sucesso de sua migração para o Brasil. O êxito se observa na descrição da casa e inclusive da energia elétrica da qual dispõem, além de um rádio, artefato de luxo nos anos de 1940: 
 
"Era uma sala grande e aconchegante. Havia um grande tapete persa cobrindo todo o chão Rebilhante de tão encerado… duas ricas iluminaduras com letras góticas, uma com bons votos aos visitantes, e a outra contendo uma oração de agradecimento a Deus…, mas, indubitavelmente, a peça mais importante, mais luxuosa de todas era o rádio. Colocado sobre um móvel especialmente feito para ele, o grande rádio era orgulho de filhos de Humberto Sonne e de toda a sua família. Com aquele rádio eles podiam saber de tudo que acontecia no mundo."
 
Através do rádio, a família e os vizinhos se reúnem para ouvir notícias da guerra, as quais refletem muito em quase todos os habitantes do Vale do Rio Itajaí, cuja maioria é composta de imigrantes alemães. Para eles, principalmente para Lucy, mãe de Guilherme, pátria quer dizer Alemanha. Essa personagem é a que mais sofre, pois enquanto o marido e os filhos nascem no Brasil, ela nasce na Alemanha e sente na pele os dissabores da guerra, sobretudo, as consequências da derrota alemã na primeira Guerra Mundial, como a miséria e a fome.  
 
Lucy e a irmã sobrevivem, pois são resgatadas por um tio e trazidas ao Sul do Brasil. Talvez por causa de seu sofrimento pela pátria. Ela defende a Alemanha com todas as forças e, até mesmo, o ditador nazista, salientando inúmeras vezes que: “era um homem assim que estava faltando para a Alemanha, em 1918 – ela não escondia a admiração pelas ideias arrojadas de Adolph Hitler”. À luz da teoria de Renan, o sentimento nacionalista se fundamenta a partir da alma, constituindo-se de um princípio que se estrutura através de vários fatores oriundos de um passado de esforços, sacrifícios e devoções. Para os alemães que emigraram ao Brasil, o passado volta-se à Alemanha, a seus ancestrais, sua cultura, suas tradições. Blumenau, no Vale do Rio Itajaí, pode servir de exemplo, já que passou a imitar a arquitetura alemã, manteve língua, cultura e hábitos germânicos, até mesmo, consentindo matrimônios apenas entre alemães.
 
Renan afirma que uma nação se constitui através de um rico legado de lembranças que pertencem ao campo imaterial da mentalidade. Nesse caso, a personagem Lucy, sob hipótese nenhuma aceita outra cultura e, para ela, o Brasil é apenas um lugar para viver, mas o coração continua alemão. O exagero da matriarca frente às tradições provoca acaloradas discussões em família, pois o sogro e o marido defendem e entendem o Brasil como sua pátria e nação. Seu esposo, Julius Humberto, deixa os filhos escutarem rádio quando as transmissões são dadas em português; os filhos menores frequentam a escola e o processo ensino-aprendizagem se fundamenta na língua portuguesa. Julius acredita que, escutando os sons desse idioma, todos os integrantes da família podem se familiarizar, porque os lugares que frequentam e na casa onde moram só se fala o alemão. Inclusive, é frequente o pai pedir que os filhos lhe ensinem o pouco do português que sabem. 
 
Julius sabe que, se o Brasil entrar na Guerra, eles terão problemas por causa da língua alemã, como já havia vivenciado antes:
 
"Eu me lembro bem do que aconteceu na última guerra. Eu era garoto ainda e a nossa escola foi fechada só porque não ensinava português. O alemão foi proibido, as pessoas evitavam falar qualquer coisa, a não ser que fosse em casa, com medo de serem presas. Você vai ver o que acontecerá se a guerra que você tanto espera vier: vão proibir o alemão de novo."
 
O pai sempre deixa evidente que a família deles é a terceira geração de brasileiros, mas a mãe pensa que seus filhos têm puro sangue alemão e isso é o que importa para ela. Lucy sente-se como uma exilada no Brasil, necessita manter a cultura alemã a todo custo. O sentimento nacionalista, de amor à pátria, é realizado em devoção à Alemanha, sua família, suas raízes são daquele chão. Por outro lado, Julius defende que seus filhos são brasileiros e que essa é sua pátria. Ele inclusive faz premonições para o futuro, salientando que, se a guerra persistir, ocorrerá uma nacionalização obrigatória, a qual se fará responsável pela mudança de costumes dos alemães e, principalmente, da língua. O medo de perder a tradição cultural se agrava quando os efeitos da guerra atingem os habitantes do Vale do Rio Itajaí.
 
No conturbado período abordado por Klueger, há uma grande preocupação das personagens que habitam a região representada com a língua. Existe uma preocupação geral em falar o português, porque militares de outras regiões do país instalam-se no Vale do Itajaí com ordens de promover a nacionalização e evitar que o povo demonstre simpatia pela Alemanha. Também a polícia tem as mesmas ordens, há instruções do governo Federal ordenando a nacionalização. Se o Brasil esteve contra a Alemanha na outra guerra, ninguém sabe como será dessa vez: 
 
"Os militares que vinham do Norte não aceitavam a tradicional hospitalidade daquele povo pacífico. Não faziam amizades, não se interessavam em namorar as moças loiras da cidade, o que teria sido natural, sendo eles recém chegados e na sua grande maioria, solteiros, mas o que encheu de alívio inúmeros pais: misturar o sangue com aqueles estrangeiros e escuros homens não agradava nenhum alemão."
 
As personagens que moram na região temem esses homens, que se aproximam de qualquer grupo que estiver conversando para ouvir o que falam, e quem ousa desrespeitar as normas sofre sérias consequências. Os soldados vão às escolas fiscalizar se os alunos estão aprendendo português. Eles agem como senhores da terra e despertam o ódio nos habitantes de Blumenau. De tudo, o mais constrangedor são as piadas para com os alemães que se esforçam para falar o português com seu sotaque carregado. 
 
Nessa época de conflitos, Guilherme entrega produtos do sítio na cidade; leite e seus derivados, além de legumes e frutas. A nacionalização forçada também o atinge, pois ele é obrigado a usar todos os seus conhecimentos da língua portuguesa dos quais dispõe para atender seus fregueses em locais públicos. Quando completa dezoito anos e serve ao exército, sofre muito com as brincadeiras dos outros soldados por causa do sotaque. Torna-se motivo de zombaria, assim como grande parte dos rapazes que não falam fluentemente a língua portuguesa. 
 
O fato de os alemães serem proibidos de falar sua língua natal demonstra que as personagens vão perdendo uma parte da cultura germânica, uma vez que a língua é um dos meios de caracterização da imagem nacional. Assim, a nacionalização obrigatória deixa marcas profundas nas personagens germânicas que povoam o romance de Klueger, comprovando as reflexões de Edward Said (SAID, Edward. Reflexões sobre exílio e outros ensaios. São aulo: Schwarcz, 2003, p. 46) o qual afirma que o exílio é um extravio de algo deixado no passado para sempre. Desse modo, o personagem Julius preocupa-se em preservar suas origens, mas sabe a importância de valorizar a pátria que os abriga, buscando integrar as duas culturas, quando demonstra interesse em aprender a língua portuguesa. 
 
Contudo, na região representada, de colonização alemã, a maioria das personagens não altera a ideia que tem da Alemanha como nação-mãe. Mesmo que sejam descendentes dos alemães vindos para o Brasil no século XIX, e nascidos no Brasil, vários personagens se esforçam por manter os costumes e as tradições culturais germânicos. Elas não aceitam outra cultura, formando comunidades nas quais a única língua falada é a alemã, e a religião, evangélica protestante. O Brasil representa a terra para sobreviver, mas o coração está na antiga pátria. Contudo, a partir da nacionalização obrigatória, os teutos não se dão conta da realidade e, aos poucos, se integram à nova cultura, tornando-se brasileiros de forma involuntária. Também os poucos casamentos que ocorrem entre diferentes etnias, provocam integração, representados no romance através do enlace de Guilherme e Teresinha. 
 
O imigrante é obrigado a se adaptar ao novo espaço, ocasionando uma troca cultural por meio da qual os imigrantes e seus descendentes desenvolvem formas variadas de integração, alterando a própria ideia de nação no país em que se inserem. No tempo das tangerinas, mesmo estabelecido no Brasil, o imigrante tem essa terra como pátria, mas sua memória se volta à terra-natal. Há uma defasagem entre o país real e o das lembranças. Outra manifestação da busca do reforço de referências nacionais, por parte de seres afastados de seu país, diz respeito às receitas de cozinha e outros elementos culinários. 
 
A comida é descrita como abundante, farta e variada: “Naquele domingo, a mãe assara dois gordos marrecos recheados com farofa e miúdos moídos. Havia um pastelão de galinha, arroz branco, purê de batatas com bastante manteiga derretida escorrendo de cima, couve flor em vinagre, beterrabas com açúcar branco”. Ou ainda: “Guilherme trouxe para fora dois tabuleiros de cuca de farofa e dois de cuca de banana, e voltou para buscar as tortas de queijo e a massa de bolo”.
 
A culinária, segundo abordada no romance em análise, faz vir à tona aspectos significativos da terra natal: “A referência à cozinha (às lembranças de sabores e odores e os mistérios, dessas ‘artes de fazer’) não poderia ser gratuita em textos de migrantes, pois além de fazer parte do patrimônio cultural de um povo, a cozinha constitui um lugar privilegiado de misturas, de reciclagens, de transformações em aberto que remetem ao devir dos próprios imigrantes” (PORTO, Maria Bernadette. “Negociações identitárias e estratégias de sobrevivência em textos de migrações nas Américas”. In: BERND, Zilá (Org.). Americanidade e transferências culturais. Porto Alegre: Movimento, 2003. p. 47-63. p. 59). 
 
Adquirir ou produzir alimentos e receitas típicas consiste numa maneira de os imigrantes compensarem a saudade da pátria mãe, ou até de reforçarem os vínculos com seu país de origem. Além desses valores, é no plano linguístico que se manifestam as principais dificuldades dos textos: “A experiência do entre dois os impulsiona a explorar os recursos da atividade tradutória que, segundo muitos teóricos, supõe a criação de uma terceira língua, marcada por negociações plurais capazes de resolver impasses e impossibilidades (PORTO, Maria Bernadette, idem, ibidem, p. 60). Nota-se assim, que há uma grande preocupação para com a língua alemã, como visto, principalmente, por parte do personagem Lucy. Ela somente se dispõe a aprender o português devido a questões da política brasileira, demonstrando que o domínio da língua é indispensável à manutenção da consciência nacional, como afirma Anderson (ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989).
 
Ainda com relação às diferenças entre Brasil e Alemanha, a rotina da família Sonne é muito abalada com a Segunda Guerra Mundial, pois com ela vem a notícia da perseguição aos judeus, através de uma carta de Kurt Durrel, solicitando abrigo para a filha. Esse é descendente direto da família, filho dum francês com uma herdeira do pioneiro Humberto, a qual fora pianista famosa na Europa. A grande preocupação de Kurt é quanto a sua ascendência judia, por isso envia ao Brasil sua única filha, Cristina.
 
A chegada da prima torna-se motivo de orgulho, porém desperta curiosidade, pois como ela vem da Europa, tem um jeito bem diferente de ser, principalmente manifesto através do vestuário. Numa época em que poucas mulheres ousam vestir calças compridas, Cristina as utiliza para cavalgar. A roupa de banho que usa no ribeirão em nada se assemelha à que usaria uma moça da região, de boa índole. Demonstra ainda, ser uma mulher objetiva, prática, ao chegar da Alemanha com joias e dinheiro para adquirir terras no Brasil, o que pare ela, seria o método mais seguro de investir dinheiro. Além disso, naturaliza-se brasileira, em processo que considera natural.
 
Ao contrário de Lucy, que ignora o português, Cristina solicita aos primos que lhe ensinem tudo o que sabem dessa língua. Entretanto, a grande preocupação dela é com o pai, o qual fica na Europa e corre o risco de ter sua origem descoberta. Num dia de apreensão, chega a desabafar: “Por que ninguém tem a coragem de matar um animal como Hitler? O mundo tornar-se-ia melhor”. O desabafo é motivo de admiração para a família, principalmente para a mãe, para quem Hitler representa um ídolo. Ela considera Cristina louca por cogitar tal absurdo, seu patriotismo é tão grande que não existiria Alemanha sem o führer. Sua glória é imensa quando a Alemanha invade a Noruega, a Holanda, a Bélgica e também Luxemburgo, países neutros.
 
Lucy sempre encontra argumentos para defender sua terra, o que se torna motivo de grandes discussões em família, pois o pai e o avô são contra a guerra: 
 
"- Ah opa, a Alemanha precisa de espaço vital. O senhor não ouviu o discurso do FUHRER no rádio. 
 
-Ah Lucy, não há espaço vital que justifique a invasão de países que não queriam a guerra. 
 
Opa, o que eu acho é que vocês homens deveriam estar do lado da sua pátria e fazer parte do partido nazista. 
 
Lucy, você parece se esquecer que a nossa pátria é esta aqui- o pai rebatia.
 
A terra pode ser esta, mas o sangue de todos vocês é alemão! Vocês não podem negar o sangue que tem! Aqui é muito bom e tudo, mas vocês são alemães. 
 
Ora Lucy, se nós não fossemos brasileiros, Humberto- Gustav não estaria servindo o exército! 
 
-Que sirva já que é dever dele por haver nascido aqui. Mas você não vai querer negar que seu filho é tão alemão quanto qualquer soldado dos que estão agora na Holanda ou na Bélgica."
 
Essas discussões mexem com a opinião dos filhos. Humberto-Gustav, soldado brasileiro, diariamente doutrinado no quartel, sempre apoia o argumento dos homens da família e aconselha a mãe a mudar. Guilherme não opina, não tem ideia formada sobre qual lado defender, entretanto, conforme vai avançando sua idade, e observando o mundo a sua volta, os argumentos do pai e do avô parecem-lhe mais convincentes. A cada nova informação, sua opinião vai se formando, principalmente no que se refere às invasões alemãs e à perseguição aos judeus.
 
Outro fato decisivo para Guilherme é saber de seu avô, porque a família não se relaciona com os Westarb, seus parentes próximos. Descobre que sua mãe é responsável pela proibição, a qual, aos poucos, faz com que toda a família passe a ignorar esses parentes, já que, sob hipótese nenhuma, ela admite que seus filhos “de puro sangue alemão” se relacionem com “negros”. Apenas o avô continua se relacionando na clandestinidade com os parentes: “Guilherme sentiu um nó na garganta, uma coisa na sua vida, como se a mãe lhe tivesse roubado um direito inalienável: o de ser plenamente ele, o de participar plenamente da realidade de sua família” (o preconceito também foi abordado por Klueger em seu romance anterior, Verde vale, comprovando que a obra literária em análise é uma continuação daquele livro).
 
Conforme o rapaz amadurece, essas questões lhe perturbam, contudo, o fator determinante que lhe dá coragem para enfrentar sua mãe é apaixonar-se por uma moça muito bonita e trabalhadora, porém não adequada aos quesitos da família, principalmente, da matriarca, por ser brasileira católica e de outra etnia. 
 
Lucy tem seu orgulho ferido por causa da paixão do filho: 
 
"- Já lhe disse por que. Cabocla, católica, outro sangue, outro tipo de gente. Se você começa a sair com ela, acaba namorando, acaba casando-se, e aí, então? Não, nem quero pensar! Um filho meu misturando-se com uma brasileira! Não, Guilherme, pode esquecer! Ela não serve para você. Você precisa de alguém de sua raça, da sua gente! Acha que seria feliz ao lado de uma mulher desse tipo? Não, não e não!"
 
Nota-se novamente, nessa fala de Lucy, a preocupação com os laços sanguíneos. É inadmissível, para ela, ver o filho relacionar-se com alguém de outra “raça”. A preocupação com a Alemanha e seus costumes, os quais parecem inquestionáveis até aquele momento, são justamente ignorados por alguém de seu sangue. Sob os xingamentos da mãe, pela primeira vez, um membro da família ousa retrucar-lhe, inclusive, abandonando a mesa, verdadeiro ato de rebelião na casa. Com o desespero de Lucy, o pai e o avô mostram-se conscientes de sua situação no Brasil, tentam confortá-la, alegando que todos eles são brasileiros e que esses encontros podem acontecer, na verdade, o que vale é o amor entre o casal e não apenas os traços sanguíneos. 
 
Enquanto tais episódios ocorrem, a Segunda Guerra Mundial também avança. Todas as noites, escuta-se rádio na casa da família Soenne e a notícia do avanço alemão contenta a todos. O pai e o avô são contra a guerra, mas já que ela ocorre e a velha Alemanha faz um avanço meteórico no grande território, regozijam-se com a boa sorte do povo do qual provêm. Nessa época, uma surpresa para toda família á a gravidez de Lucy, contudo, seu fanatismo pelo líder alemão é tão grande que anuncia para toda a família: se nascer um menino, ela o chamará de Adolph, em homenagem a Hitler. 
 
No mesmo ano, os Estados Unidos declaram guerra ao Japão e a seus aliados, Itália e Alemanha. Os estadunidenses na guerra e o frio na Rússia deixam Lucy apreensiva, mas ela não demonstra a menor dúvida sobre a vitória alemã. Em 28 de janeiro de 1942, o Brasil rompe relações com o Eixo. A Alemanha passa da condição de uma ameaça para a de inimiga. O exército que está na Rússia vai de mal a pior. A grande preocupação da família Sonne é para com o pai de Cristina, Kurt Durrel, que ainda está no país em guerra e, por sua parcela de sangue judeu, pode sofrer perseguições. A posição brasileira perturba a matriarca: 
 
"Não está certo isso de o Brasil se colocar contra nós! – Opinava ela. – O Brasil, que tanto recebeu da nossa gente, olhem, olhem só esta cidade, o progresso desta região! Se não fossem os alemães, isto aqui ainda seria puro mato, estaria cheio de bugres. Viemos, domamos a terra, a região se tornou rica, e agora o Brasil nos declara inimigos! Inimigos uma ova! Tem é que agradecer por tudo o trabalho do nosso povo!"
 
Nesse questionamento, observa-se a visão que Lucy tem do Brasil, principalmente, da região em que vive, responsabilizando apenas os alemães pelo progresso e pela pujança da terra. Fica visível a opinião do avô, sempre definido como “sábio”: “Tem outra coisa, Lucy. Tirando você e Cristina, ninguém mais nesta casa é alemão. Todos nós outros já nascemos no Brasil, somos filhos desta terra. – Opa, mas o sangue de todos vocês é alemão! Não importa onde tenham nascido, somos todos alemães”. Com esses conselhos, o avô tenta convencer a nora a ser mais discreta, a nunca usar argumentos desse tipo com pessoas estranhas, já que podem trazer grandes complicações. 
 
À época, procura-se nacionalizar o Vale do Itajaí com maior rapidez. As escolas são vigiadas para conferir se realmente estão ensinando a língua portuguesa. As pessoas nunca estão à vontade fora de casa, temendo que, quando abordadas por algum policial, não saibam expressar-se adequadamente no português. Inclusive, há uma mudança nos costumes dos Sonne: seu hábito rotineiro de ouvir emissoras alemãs de rádio é interrompido, pois, em caso de flagrante, poderão ter o aparelho confiscado e problemas maiores. 
 
Nota-se também uma atitude corajosa de Terezinha, a namorada de Guilherme. Quando Lucy dá à luz seu décimo filho “brasileiro”, aquela enche-se de coragem e visita a sogra no hospital, leva-lhe flores, mostra-se muito corajosa, provando que também pode ser uma pessoa de bom caráter e amar Guilherme. Ela surpreende quando afirma que seu pai também não aprova muito a ideia da mistura de raças e não gosta do namorado alemão: “De novo Terezinha criou coragem. Olhou para a sogra e disse: – é exatamente o que meu pai diz – que pena que meu namorado é alemão”. Jamais passara pela cabeça da matriarca da família Sonne que os alemães pudessem ser alvo de preconceito no Brasil. 
 
O medo na região torna-se eminente: “A 15 de fevereiro, ainda em pleno verão, o primeiro navio brasileiro havia sido afundado por torpedos alemães. E daí por diante, um atrás do outro, os navios brasileiros estavam sendo atingidos e afundados por submarinos alemães, criando no país uma total revolta a tudo que fosse germânico”. Nesse período, os alemães do Vale do Rio Itajaí ainda demonstram dificuldades com a língua portuguesa, priorizam a cultura alemã, ouvem constantemente notícias de seus ancestrais por emissoras radiofônicas, porém, já estão suficientemente nacionalizados para saberem que, se a nação brasileira entrar na guerra, eles com certeza apoiarão o país que os acolheu. Contudo, sempre existem exceções e, na região também há simpatizantes do partido nazista, os quais não passam de um grupo de idealistas obcecados pelo brilho dourado que vem do grande führer. Essa minoria desperta preocupações no governo federal e provoca atitudes drásticas, medidas restritivas para a população em geral. Com isso, bons e maus, culpados e inocentes, são tratados do mesmo modo. 
 
A situação atinge diretamente os Sonne: “Na casa onde Lucy defendia verbalmente a Alemanha idolatrada, mas onde também nada ela falou contra o Brasil que um dia a recebera, apesar do desgosto de ver os dois países como inimigos, pois bem, até na casa que não representava nenhuma ameaça para a segurança nacional, até lá as repressões anti-nazistas chegaram”. Não existe nada que possa incriminá-los por adesão ou simpatia ao nazismo: na parede, há apenas desenhos e panos brancos que representam cenas da vida rural e doméstica, nos quais se registram ditados ingênuos e singelos, de motivação para o dia-a-dia, como “Deus ajuda a quem cedo madruga”. Costume de famílias alemãs, essas frases nunca poderiam prejudicar a integridade brasileira, mas colocam a família, pela primeira vez, frente a frente com a polícia. 
 
Os panos são queimados e considerados como propaganda nazista. Enquanto os guardas agem, Lucy não consegue reagir e muito menos falar, pois a língua portuguesa lhe é totalmente estranha. Contudo, a partir desse episódio Lucy, de tão radical e preconceituosa, passa a se interessar pela língua portuguesa, talvez por medo. Além disso, a situação fica cada vez mais complicada para os alemães do Vale do Rio Itajaí porque, em 18 de agosto de 1942, cinco navios brasileiros são afundados em águas nacionais, ocasionando a morte de 600 pessoas, e causando revolta em todo o país. 
 
O Brasil declara guerra ao Eixo, situação que castiga e angustia os habitantes da colônia, devido às expectativas de os soldados irem ou não para a guerra. A circunstância ocasiona grande mudança em Lucy que, pelo medo de ver um filho morto ou infeliz na guerra, chega a aceitar o namoro de Guilherme e Terezinha, permitindo ao filho viajar com a namorada para conhecer os pais dela. O rapaz também sente na pele a diferença dos costumes, tanto na forma de comemorar o Natal quanto na religião: “Na igreja, permaneceu de pé, enquanto as outras pessoas se ajoelhavam, o que lhe valeu uma conversa com o sogro, no dia seguinte”. É possível constatar que o preconceito é recíproco: o pai de Terezinha revela-se tão, ou até mais, preconceituoso do que Lucy: “Eu não gostaria de ver minha filha casando-se numa igreja qualquer muito menos mudando de religião”.
 
Em seu romance No tempo das tangerinas, Klueger expõe dois tipos diferenciados de vida, em seus mínimos detalhes, desde a culinária ao jeito de cuidar da lavoura, da casa, dos animais. Entretanto, ao demonstrar um sentimento considerado tipicamente brasileiro, Guilherme responsabiliza-se por aproximar as culturas: “Apesar de estar se sentindo bem, queria voltar, abraçar a sua terra e a sua gente que morava no seu coração desde que se lembrava”. As objeções do futuro sogro à religião e às tradições do rapaz fazem com que esse fique apreensivo quanto à aliança de culturas tão diferentes.
 
À medida que a história avança, a situação dos alemães piora, por causa da nacionalização forçada. Como Guilherme está servindo ao exército, sua irmã Ema é quem distribui o leite da propriedade rural aos clientes na cidade. Pega em flagrante ao falar alemão com uma freguesa, algo expressamente proibido, ela é presa sob acusação de conspiradora. A família não mede esforços para libertá-la, tentando provar que se trata de uma boa cidadã brasileira. Um dos argumentos mais convincentes reside no fato de os irmãos servirem às Forças Armadas brasileiras. 
 
A prisão da filha modifica ainda mais as convicções nacionalistas da matriarca: “Novamente Lucy Sonne sentiu-se amedrontada e, talvez pensando na sua própria segurança, ou mais provavelmente, na segurança dos filhos, capitulou e passou a querer aprender o português. Guilherme achava assaz estranho ver a mãe entremeando palavras portuguesas no seu alemão clássico, com jeito indiferente de quem não se sentia humilhada”.
 
Começam a ocorrer grandes mudanças nessa personagem, conforme o andamento da Guerra que, antes vista por ela como uma glória para sua antiga pátria, agora é responsável por várias transformações. Assim, ela permite inclusive que seu filho Guilherme case com Teresinha, a moça brasileira que tanto havia rejeitado. Entretanto, não deixa de alertá-la: “Estou depositando toda a minha confiança em você, Teresinha. Você sabe que não sou a favor dessa mistura de raças. Se você quer mesmo casar-se com meu filho, eu a intimo a fazê-lo feliz. Não quero depois que ele se arrependa”.
 
Lucy inclusive recebe os pais da Teresinha para organizar o casamento, porém, ela e o pai da noiva não chegam a um consenso em matéria de religião. Por fim, cada um tem que ceder um pouco e entendem que todas as “raças” têm personalidade e pensamento próprios: “No decorrer daqueles dias, os dois contendores acabaram passando a se respeitar. Lucy Sonne sentiu que o ‘brasileiro’ podia ter tanta opinião quanto ela; seu Adolfo concluiu que a ‘alemoa’ era feita do mesmo material que ele. Acabaram despedindo-se com sorrisos e efusivos apertos de mão”.
 
Com a aprovação das famílias, ainda há um outro fator que pode estragar o casamento: a guerra. O exército brasileiro deixa os soldados na expectativa de participarem das batalhas: “Guilherme era um soldado brasileiro e não iria desmerecer a farda que usava e nem a confiança na pátria”. O mesmo ocorre com Kurt Durrel na Alemanha, que decide alistar-se em favor da nação. Contudo, sua origem judia é descoberta e, provavelmente, seu destino seja um campo de concentração, mas consegue fugir para a Suíça. 
 
A guerra traz grandes surpresas à família Sonne. O maior abalo, para Julius e Lucy, é ver seu filho Humberto e seu genro partirem às frentes de batalha, além de tudo, para lutarem contra a Alemanha. Entretanto, as dificuldades fazem nascer uma nova Lucy, que nem se importa muito com a mistura de sangue. Quando Guilherme lhe dá a notícia de que será pai, apenas se limita a fazer um breve comentário e, ao saber de que o filho é convocado pelo exército, compartilha a mesma dor com a nora: “Os meus dois filhos! – chorava a mãe, pela primeira vez abraçando Teresinha. – A gente os cria, minha filha, dá-lhes todo o amor que tem, para depois vê-los ir embora assim para a guerra! Oh! Meu Deus, os meus dois filhos!”.
 
Para Lucy, não importa mais se a Alemanha vai perder ou ganhar. O sentimento materno vence o patriotismo. Ela se esquece do ferrenho orgulho nacional, pois os filhos lhe importam mais. O sofrimento por ter um filho na guerra se agrava a partir do momento em que o outro também espera para lutar na Europa. As raras cartas escritas por Humberto-Gustav, seu primogênito, custam a chegar e, quando as lê, não tem a mínima certeza de que o rapaz possa estar vivo. Em 1945, fica nítida a derrota das nações do Eixo e, assim, da Alemanha. Mesmo preocupada com os filhos, a matriarca sabe que, ao perder mais uma batalha, os alemães acabarão derrotados: “Lucy Sonne tapava os ouvidos com as mãos ao ouvir as notícias. Mesmo com o coração sangrando pelo filho e pelo genro que estavam na luta, ela sentia que ele sangrava um pouco mais ao saber que sua terra estava prestes a, mais uma vez, sofrer a humilhação da derrota”.
 
Klueger encerra seu romance associando o fim da guerra ao nascimento da filha de Guilherme e Teresinha, ocorrido em maio de 1945, mesmo período em que Berlin é tomada e Hitler comete o suicídio. Marcando um despertar, um renascer, a criança gerada da miscigenação de etnias diferentes provoca a mudança final em Lucy. Agora, ela dá valor à nação que a acolheu e onde tem condições de viver tranquila, evitando falar da guerra. “Nunca esqueceria a terrível angústia provinda do medo de perder os filhos. A Alemanha passara a ser coisa do passado, ela agradeceria a Deus por estar no Brasil e ter todos os filhos à sua volta”.
 
No final do romance, Lucy apresenta-se como uma mulher informada, capaz de aceitar as diferenças, algo que, no passado, era fora de cogitação. O processo de integração à realidade no exílio demora a ocorrer, realizando-se, principalmente, devido à guerra, que modifica sua maneira de pensar. Aceitando, por fim, o Brasil como nação adotiva, ela passa a entender que os laço afetivos com sua família brasileira são mais fortes do que qualquer sentimento relacionado a sua antiga pátria. 
 
Por fim, a conversa de Guilherme e Herman, já no ano de 1969, procede a uma retrospectiva de toda a história narrada no romance. Nesse capítulo final, é possível conhecer o desfecho de cada personagem, sobretudo, de Guilherme, Teresinha e seus dois filhos. O pequeno diálogo entre os primos não deixa de mostrar o contexto mostrar o contexto da década de 60, recorrendo ao vestuário: “Vive dizendo que é falta de vergonha Marina andar com essas calças compridas que as mulheres estão usando agora… É a moda deles deixe que eles se divirtam. Eu também não gostei quando os meus dois resolveram não mais cortar os cabelos”.
 
Guilherme relembra, juntamente com Herman, todos os acontecimentos tristes que suas famílias viveram durante a Segunda Guerra Mundial. No meio do assunto que vêm travando, eles são surpreendidos: “Trazia a camisa da escola, o rosto e os braços cheios de emblemas e frases feitas a guache e a caneta – Filho – perguntou Guilherme. -Que fantasia é esta? – Ah pai, nós fizemos uma manifestação contra a guerra do Vietnã na saída da escola. A tinta foi para impressionar mais”.
 
A partir da fala do menino, Guilherme conclui que os conflitos sempre renascem em algum lugar do mundo. Enquanto pensa nisso, a personagem dirige sua camionete pela rua, que agora é asfaltada, e onde quase não há mais pastos para olhar. Sente então um cheiro característico de sua infância, algo conhecido, familiar, trazendo saudades: “A guerra nunca acabava, mas o tempo das tangerinas voltava sempre”. A fruta que simboliza sua infância, e cujo odor indica estar pronta para ser degustada, relaciona-se à maturação das ideias de Lucy. Apoiando o movimento hippie, ela se torna aberta às mudanças enfrentadas pela sociedade ocidental no Pós-Guerra. 
 
Do início ao fim do romance em estudo, transcorrem mais de trinta anos. Muda a paisagem ao redor de Blumenau, as ruas são asfaltadas, as pessoas modificam seus pontos de vista, guerras terminam e outras recomeçam. No meio de mudanças tão rápidas, a fragrância do fruto cítrico desperta o passado, às vezes, bastante amargo. Apesar das tristezas sentidas pelos personagens, a esperança renasce, simbolizada por um cheiro que retorna a cada estação.

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Observação: exceto indicação em sentido contrário, todas as citações referidas no texto foram extraídas do romance de Urda Alice Klueger, No tempo das tangerinas. Blumenau (SC), Hemisfério Sul. Trecho da dissertação de mestrado em letras de Neiva Andrea Klagenberg, Migração, exílio e nação: No tempo das tangerinas e Um rio imita o Reno. Apresentada ao Departamento de Linguística, Letras e Artes da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Campus de Frederico Westphalen (RS), 2009. Urda Alice Klueger é membro da Academia Catarinense de Letras, da União Brasileira de Escritores, é colaboradora do Vermelho