Pepe Escobar: Otan, libertadora do “Jihadistão”?

O Califa Ibrahim, codinome Abu Bakr al-Baghdadi, autodeclarado líder do Estado Islâmico, realmente não tem veia de marketing. Quando o show estava pronto e agendado, para que a Otan salvasse a Ucrânia e a civilização ocidental das garras daquele Império do Mal remixed, a Rússia… Vem o Califa e, tendo acessado seu caríssimo relógio mágico, intromete-se na programação, com mais um daqueles seus especiais de “cortem a cabeça deles!”.

Por Pepe Escobar, no Asia Times Online

Muito adequadamente, houve desconfianças e sobrancelhas arqueadas, que duraram até que toda a sopa-de-letrinhas das agências de inteligência dos EUA solenemente confirmaram que o EI, sim, realmente degolara mais um jornalista norte-americano em vídeo (de Barack Obama, presidente dos EUA: “Ato de violência horrífico”).

E então, sem mais nem menos, vem O Califa, repica e proclama ao mundo que seu próximo alvo será ninguém menos que o presidente russo Vladimir Putin. Estaria falando pelo recentemente posto em ostracismo príncipe Bandar bin Sultan da Arábia Saudita, codinome Bandar Bush?

Em tese, tudo estaria resolvido. O Califa passa a ser prestador contratado de serviços para a Otan (ele já trabalha no ramo, praticamente…). O Califa degola Putin. O Califa liberta a Tchetchênia – serviço rápido, não aquela coisa terrivelmente embaraçosa, confusão sem fim, no Afeganistão. O Califa, de enfiada, já ataca logo o Brics – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. O Califa vira Secretário-Geral-Sombra da Otan. E Obama finalmente para de reclamar que seus telefonemas para Putin só caem na caixa postal.

Ah, se geopolítica fosse simples como filme tranca-quarteirões da Marvel Comics.

Ora! O Califa deveria saber – dado que, em grande medida, é produto Made-in-the-Ocidente, com substancial input de petrodólares do Conselho de Cooperação do Golfo – que a Otan jamais lhe prometeu um jardim de rosas.

Assim aconteceu, previsivelmente, que aqueles ingratos, Obama e David Cameron, primeiro-ministro britânico – oh yes, porque o “relacionamento especial” é tudo que importa na Otan, os demais são figurantes – juraram sair à caça do Califa com uma ampla (quer dizer… Não é assim tão ampla) “coalizão de vontades”, com os suspeitos de sempre do Conselho de Cooperação do Golfo plus Turquia e Jordânia, bombardeando o Curdistão Iraquiano, partes do Iraque sunita e até a Síria.

Afinal de contas, o presidente da Síria “Bashar al-Assad-tem-de-sair”, não mais “a brutalidade de Assad” na formulação de Cameron, é o verdadeiro culpado pelas ações de O Califa. E tudo em nome da Guerra Global ao Terror à moda da Operação Liberdade Duradoura Forever.

Entrou água, pode-se dizer, na festa do secretário-geral (em final de mandato) da Otan Anders “Fog(h) da Guerra” Rasmussen. Afinal, estava combinado que aquele seria o “momento crucial”, na cúpula da Otan em Gales, quando a Otan alcançaria o píncaro de sua Guerra Fria 2.0, resgatando “os aliados”, todos os 28, das profundas tenebrosas da insegurança.

Basta ver a réplica de um glorioso Magnata Eurocombatente plantada lá, em frente ao hotel onde acontece a reunião da Otan na cidade de Newport, sul de Gales.

E, cúmulo dos cúmulos, aquele maldito Califa Eslavo do Mal, Vlad Putin em pessoa, construiu um plano de paz de sete itens, para resolver o sorvedouro ucraniano – bem quando o imponente exército de Kiev foi reduzido a estrogonofe pelos federalistas e/ou separatistas no Donbass. O presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko – que até praticamente ontem ainda berrava “Invasão!” a plenos pulmões – soltou longos suspiros de alívio. E até revelou, detalhe, que Kiev estava recebendo armamento de alta precisão de país sem nome, que só pode ser EUA, Reino Unido ou Polônia.

A coisa toda gerou grave problema, porém. Contra quem/o quê a Otan defenderá a Civilização Ocidental, se tudo que se disse até hoje sob o rótulo “agressão russa” aparece agora sobre o palco identificado como mapa do caminho para a paz?

Não surpreende que os 60 chefes de estado e de governo com respectivos Ministros da Defesa e de Relações Exteriores – que brindaram o mundo com invasão “soft”/furo consentido do “anel de aço” que cerca Newport impedindo que se aproximem as hordas de manifestantes protestantes – tenham ficado confusos, com cara de zonzos.

Mais de 11 anos depois de “Choque e Pavor”, ainda vivemos em mundo rumsfeldiano. Foi o ex-chefe do Pentágono, Donald Rumsfeld, quem, no governo de George “Dábliu” Bush, conceptualizou a “Velha Europa” e a “Nova Europa”. “Velha”, a das bonecas venusianas. “Nova”, dos marcianos muito machos.

A “Nova” apoiou totalmente a operação Choque e Pavor e a subsequente invasão/ ocupação do Iraque. Hoje, apoia – de fato implora, suplica – que a Otan encare a Rússia.

A “Velha”, por sua vez, tenta pelo menos salvar um espaço de negociação com Putin. E no final a amada prudência [orig. “dear prudence” (NTs)], exercida especialmente por Berlin, foi recompensada pelo plano de paz de Putin.

Pelo sim pelo não, para não frustrar demais o Império do Caos, Paris anunciou que não entregará a Moscou no prazo agendado os primeiros dois helicópteros militares de transporte Mistral comprado pelos russos. Claro que a Otan condenou fortemente a Rússia na questão Ucrânia, e a União Europeia seguiu-a com ainda mais sanções.

Quanto a Fog(h) da Guerra, continua a repetir sua retórica de Marte Ataca! (ver “Otan Ataca!”, redecastorphoto, 4/9/2014). Tudo culpa de Moscou. A Otan é só inocente força só de apaziguamento – sólida e poderosa. Ao mesmo tempo, a Otan não seria doida de pôr-se a começar a apontar a Rússia como inimiga direta.

Assim sendo, como Asia Times Online noticiou, a Otan no máximo ajudará a treinar forças de Kiev; o desempenho delas no Donbass mostrou que precisam muito de treino. Mas não haverá “integração” da Ucrânia – apesar de toda a histeria que se ouviu vinda de Kiev e bem com Polônia e os estados Bálticos clamando por bases permanentes. O novo elemento será a Força de Resposta Otan-remixed (NRF) a qual, por falar dela, jamais antes foi usada.

A NRF já vem até com slogan “marketado”: “Viaje leve e ataque pesado”. Um batalhão de 800 homens capaz de atacar em dois dias e uma brigada de 5 mil, para ataque em de 5 a 7 dias. Bem… Se seguirem o padrão “viaje leve”, dificilmente conseguirão impedir que O Califa anexe vastas fatias do Jihadistão, com seu comboio de flamantes Toyotas brancos. Sobre “ataque pesado”, informem-se com os pashtuns no Hindu Kush, para saberem do que se trata.

Assim foi que Gales gerou a NRF; “rotação” permanente e permanentes bases avançadas para “proteger” a Europa Central e Oriental; e todo mundo soltando dinheiro (nada menos que 2% do PIB de cada um dos 28 países-membros, de agora até 2025). E isso no meio da terceira recessão europeia em cinco anos.

Agora comparem o atordoante orçamento militar conjunto da Otan, de 900 bilhões de dólares norte-americanos (75% de todas as despesas monopolizadas pelos EUA), com o orçamento da Rússia, de apenas R$ 80 bilhões. Depois, a “ameaça” é Moscou!

Desnecessário acrescentar, mesmo sob todo esse som e fúria, Gales não conseguiu pôr a Otan num sofá freudiano – para analisar em monólogo sem fim o fracasso abjeto da “aliança” nos dois pontos, no Afeganistão e na Líbia.

No Afeganistão, o Talibã basicamente controla anéis que cercam as bases da Otan e movimentos de “ataca pesado”, que desmoralizam completamente a “aliança”. Foi a Otan em modo GGT (Guerra Global ao Terror).

E na Líbia, a Otan criou um estado falido devastado por milicianos e chamou a coisa de “paz”. Foi a Otan em modo R2P (Responsabilidade para Proteger).

Otan libertadora do Jihadistão? O Pentágono não dá a mínima. O Pentágono quer GGT eterna. A think-tankelândia dos EUA está em êxtase, agora que a Otan encontrou “renovado propósito” e a sobrevivência de longo prazo da aliança está assegurada por uma “ameaça unificada”. Tradução: Rússia.

Assim sendo, O Califa não está exatamente tremendo em suas botas de deserto Made-in-USA. Até sonha em pôr as mãos no Califa Eslavo em pessoa. Como é que Marvel Comics nunca pensou nisso?!

*Jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como: Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros: Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007. Red Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007. Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.

Fonte: Rede Castorphoto. Traduzido pelo coletivo Vila Vudu