Para as crianças nos sinais fechados, dentro e fora dos veículos.

Quem nasceu de 1992 em diante talvez não esteja acostumado a ver, em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Salvador, pessoas com fome, pelas ruas. Esse era, no entanto, um encontro quase naturalizado, até há pouco. Pessoas pedindo esmola para ter o que comer.

Por Katarina Peixoto, na Carta Maior

Na faixa de pedestres dos sinais fechados ou dentro dos ônibus, exibiam menos corpo para a idade que tinham, crianças com remelas nos olhos, barrigas duras e grandes, pedindo algum dinheiro para levar para casa. Não era o crack de hoje. Mesmo quando entorpecidos por cola de sapateiro, e quando sabíamos que o dinheiro seria usado para mais entorpecimento, eram magros, pequenos e barrigudos.

Em maio de 1996, quando era estudante da Faculdade de Direito do Recife e ia para um ato em solidariedade aos 19 trabalhadores rurais sem terra assassinados no massacre de Eldorado de Carajás, resolvi baixar o vidro do carro para escutar o que um desses meninos barrigudos queria me dizer. Era comum eles andarem em bandos, e este estava sozinho, só com um calção, achei que não podia me ferir. Mas feriu.

Ele olhou com um olhar triste e sem horizonte, e me perguntou mais ou menos isto: “Tia, se eu morrer, a senhora vai sentir a minha falta?”. Estávamos na Avenida Rui Barbosa, bairro das Graças. Respondi mais ou menos isto: é claro que se você morrer eu vou chorar muito, eu e muita gente, porque você é muito importante, está entendendo isso? Você é muito importante. Ele ficou em silêncio e o sinal abriu. Olhou seriamente, eu quis acreditar que ele acreditou em mim. O seu ar era um pouco mais vivo, a cabeça não estava baixa. Passei a marcha e desabei, até a chegada na faculdade.

Entre 1991 e 1996, escutei 4 histórias diferentes de “meninos de rua suicidas”, no Recife, que é e sempre foi uma cidade brutal. Nunca falei dessa conversa. Tinha um elemento proibitivo, na coisa, naquele espírito de época, também: quem chora e sofre com a miséria é deprimido, alguém doente. E quem se envolve com isso é de alguma maneira alguém que tem problemas graves.

Só que essa não era a única história. O pai de uma amiga certa noite quase atropelou e matou um menino. Voltava do clube em alta velocidade e se deparou, numa das faixas da Avenida Agamenon Magalhães, com um corpo pequeno, deitado em posição fetal, no meio da rua. Pensando que era um assalto, mas indignado por ser uma criança, desceu do carro armado, pronto para berrar e brigar com o menino. O menino seguiu imóvel, com um olhar ausente. “Tá fazendo o que aí deitado, quer me assaltar?”. O menino se levantou lentamente e disse: “eu pensei que o senhor ia me atropelar”. O motorista voltou ao carro, chegou em casa e comentou com a família sobre o inesperado. Nunca esqueci dessa e de outras duas histórias, de meninos deitados em posição fetal, no meio da rua, nas madrugadas, sem que fosse tentativa de assalto.

Essa paisagem de hordas de meninos barrigudos, de famílias inteiras com fome e sem trabalho, nas grandes cidades, é uma das coisas que não existem mais, no Brasil. Não posso dizer se esses meninos suicidas que vagavam pela Agamenon Magalhães, nos idos dos anos 90, foram bem sucedidos ou fracassaram, resistindo à dor e, quem sabe, procriando. No Recife, a miséria e a fome faziam parte da paisagem das calçadas e marquises e dos sinais de trânsito. Olhando para os anos 90, para o encontro com aquele menino triste e com a memória dessas outras histórias de meninos miseráveis, sem idade perceptível no corpo, querendo morrer, parece que faz muito tempo. E, no entanto, faz muito pouco. Nem duas gerações se passaram.

Em dezembro de 2013, voltei para visitar a família, a Pernambuco, de onde me mudei há 15 anos. A verticalização e a feiúra dos prédios construídos revelam uma espécie de distopia xangaica, algo mezzo Miami, mezzo anos 70 em São Paulo. Obviamente que revelam, por isso, uma penúria política, da vida político-partidária, grande. Muita destruição ambiental, devastação e desmemoria, mas uma melhora geral nas condições dos mais pobres. E uma explosão nos níveis de consumo e usufruto de serviços.

Muitos amigos da classe média letrada, que nunca tiveram barrigas duras, partilhavam de justas queixas. Não há urbanismo, a cidade está explodindo de automóveis, o bem estar diminuiu, o trânsito piorou, não há planejamento urbano. O mal estar é legítimo, mas ele não veio acompanhado, ou ao menos eu não percebi, de nenhum bem estar reconhecido, com outra ausência, além daquelas, dignas de um projeto civilizatório e democrático à altura de nossa estatura intelectual, estamental e estética.

Não se trata, bem entendido, de estabelecer uma disjunção tacanha entre custos e benefícios. Experiências históricas não são, nunca foram, nem serão, negócios de balcão. Ter uma cidade com trânsito ruim, injusta ou feiamente verticalizada, sem áreas verdes públicas e sem um debate público aberto e democrático (que sobreviva ao horror midiático atrelado ao governo estadual mais recente), não são preços a pagar pelo fim da miséria, não necessariamente – nem perto disso. A compra e venda não exaure a experiência, nem, obviamente, o entendimento da experiência.

No calor de dezembro último, num dos cruzamentos da Cruz Cabugá, com o sinal fechado, baixei o vidro do carro de novo. Uns 15 meninos sem camisa estavam ali. Tinham uma pequena caixa nas mãos e estavam, a maior parte, de chinelos nos pés. O que me fez deixa-los falar ao meu pé de ouvido sem medo foram dois detalhes: a sua alegria e as barrigas murchas, sem verminose. “Tem um trocado?”. Estava tão assombrada com a mudança, diante de meus olhos, que fiquei parada, escutando, sem conseguir reagir. “A gente tá juntando um dinheiro, fazendo uma caixinha, pra nossa festa de natal, no colégio – não lembro o nome -, aqui, de Santo Amaro”.

Faz tempo que estou para perguntar aos que estão incomodados com as mudanças econômicas e sociais e que, obviamente, não enxergam disjuntivas onde elas não há.

Digam-me uma coisa: esta outra mudança não toca vocês?