Pablo Neruda: Escolhi um caminho
Embora eu tenha me tornado militante muito mais tarde no Chile, quando ingressei oficialmente no partido, creio ter-me definido como um comunista diante de mim mesmo durante a guerra da Espanha.
Por Pablo Neruda*
Publicado 26/09/2014 16:55
Muitas coisas contribuíram para a minha profunda convicção. Meu contraditório companheiro, o poeta nietzschiano León Felipe, era um homem encantador. O melhor entre seus atrativos era um anárquico senso de indisciplina e de rebeldia zombeteira. Em plena guerra civil adaptou-se facilmente à chamativa propaganda da FAI (Federación Anarquista Ibérica).
Percorria frequentemente as frentes anarquistas onde expunha seus pensamentos e lia seus poemas iconoclastas. Estes refletiam uma ideologia vagamente ácrata, anticlerical, com invocações e blasfêmias. Suas palavras cativavam os grupos que se multiplicavam pitorescamente em Madri enquanto a população ia para a frente de batalha cada vez mais próxima. Os anarquistas pintavam bondes e ônibus, metade vermelha e outra amarela. Com seus cabelos compridos e barbas, colares e pulseiras de balas, protagonizavam o carnaval agônico da Espanha.
Vi vários deles calçando sapatos emblemáticos, a metade de couro vermelho e a outra de couro negro, cuja confecção devia ter custado muitíssimo trabalho aos sapateiros. E não pensem que era uma festa inofensiva. Cada um levava punhais, pistolas descomunais, rifles e carabinas. Em geral ficavam nas portas principais dos edifícios em grupos que fumavam e cuspiam, fazendo ostentação de seu armamento. Sua principal preocupação era cobrar os rendimentos aos aterrorizados inquilinos, assim como fazer-lhes renunciar voluntariamente a seus adornos de valor, anéis e relógios.
Voltava León Felipe de uma de suas conferências anarquistas, já de noite, quando nos encontramos no café da esquina de minha casa. O poeta levava uma capa espanhola que ia muito bem com sua barba nazarena. Ao sair, roçou com as elegantes pregas de sua ostentação romântica em um de seus melindrosos correligionários. Não sei se o aspecto de antigo fidalgo de León Felipe aborreceu aquele "herói" da retaguarda mas o certo é que fomos detidos a poucos passos por um grupo de anarquistas, encabeçados pelo ofendido do café. Queriam examinar nossos papéis e, depois de dar-lhes uma vistoria, levaram o poeta lionês entre dois homens armados.
Enquanto o conduziam para o fuzilamento próximo à minha casa, cujos tiros noturnos muitas vezes não me deixavam dormir, vi passar dois milicianos armados que voltavam do front. Expliquei-lhes quem era León Felipe, qual era a falta em que havia incorrido e graças a eles pude obter a liberação de meu amigo.
Esta atmosfera de perturbação ideológica e de destruição gratuita me deu muito que pensar. Soube das façanhas de um anarquista austríaco, velho e míope, de longas melenas louras, que tinha se especializado em dar "passeios". Tinha formado uma brigada que batizou "Amanhecer" porque atuava à saída do sol.
– Você não sentiu uma dor de cabeça? – perguntava à vítima.
– Sim, claro, uma ou outra vez.
– Pois vou dar-lhe um bom analgésico – dizia o anarquista austríaco, encostando-lhe na fronte o revólver e disparando uma bala.
Enquanto esses bandos pululavam pela noite cega de Madri, os comunistas eram a única força organizada que criava um exército para enfrentar os italianos, os alemães, os mouros e os falangistas. E eram, ao mesmo tempo, a força moral que mantinha a resistência e a luta antifascista.
Simplesmente tinha que escolher um caminho. Foi o que fiz naqueles dias e nunca me arrependi da decisão tomada entre as trevas e a esperança daquela época trágica.
*Extraído do livro Confesso que Vivi