O segredo dos olhos do cinema argentino

Parte da nova geração de cineastas argentinos, Lucía Puenzo discorre sobre carreira e o vigor da produção cinematográfica do seu país.

Por Franthiesco Ballerini*

Repete-se à exaustão, no meio cinematográfico nacional, que “o cinema argentino é melhor que o brasileiro”. Aí aparecem tanto argumentos rasos – “eles ganharam um Oscar” (O segredo de seus olhos, 2010, dirigido por Juan José Campanella) quanto mais profundos, envolvendo questões acadêmicas, estéticas e até econômicas. Uma discussão inútil, pois comparar cinematografias de culturas diferentes não é o mesmo que dizer “esta lavadora é melhor que a outra”.

O fato é que o cinema argentino seduz cinéfilos e intelectuais do mundo inteiro. Não foi sempre assim, mas há quem argumente que o boom do cinema vizinho tenha começado a partir dos anos 1990, quando uma quantidade considerável de diretores fazia seus primeiros grandes filmes após saírem de boas escolas de cinema do país. O mesmo ocorrido em Hollywood nos anos 1960, quando os movie bratz saíram das universidades e tiraram a indústria norte-americana do buraco (Steven Spielberg, Brian De Palma, Martin Scorsese, James Cameron, entre outros). Por isso, no caso argentino, há quem defenda o termo Novo Cinema Argentino para designar o talentoso cinema feito por cineastas como Daniel Burman, Lucrecia Martel, Lucía Puenzo, Pablo Trapero, Marcelo Piñeyro, entre outros. É aí que entra, no entanto, a comparação com o cinema brasileiro e o questionamento sobre a validade deste termo. Não poderia existir um novo cinema argentino se nunca houve uma interrupção da produção, tampouco uma mudança significativa na estética e na linguagem usada pelos cineastas – ao contrário do Brasil, que teve sua cinematografia interrompida no governo Collor, em 1990, fazendo com que o cinema brasileiro demorasse anos para retomar seu rumo.

Sem essa interrupção dos fundos de financiamento, o cinema argentino conseguiu aprimorar suas leis, fomentando uma produção constante e crescente. Em 2011, por exemplo, o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (Incaa) estabeleceu taxas que as produtoras devem pagar em função do número de salas ocupadas por filmes estrangeiros na Argentina, bem como localização. Em Buenos Aires, por exemplo, há uma sobretaxa de trezentos ingressos até quarenta cópias, e doze mil ingressos se um filme ocupar mais de cento e sessenta e uma salas. A intenção do governo é preservar a diversidade do parque exibidor e evitar o monopólio dos blockbusters de Hollywood em alguns finais de semana.

Já em termos estéticos, uma das grandes virtudes dos nossos vizinhos está na diversidade temática. Ao contrário do cinema brasileiro, cujas maiores bilheterias vêm da comédia e os prêmios, do cine-favela, na Argentina, dramas da classe média são muito mais comuns e bem recebidos pelo público. Os novos cineastas argentinos não deixam de criticar a lamaceira política e econômica de seu país, mas a crítica vem como pano de fundo. Como em O abraço partido (2004), de Daniel Burman, uma comédia sofisticada – ao estilo Woody Allen – mostrando os percalços da juventude portenha para fazer a vida fora do país nos anos 1990. Ou A menina santa (2004), de Lucrecia Martel, que confronta o drama de uma adolescente dividida entre os desejos sexuais e a vocação da fé.

Outro argumento que sustenta a ideia de um cinema argentino “superior” ao brasileiro está na tradição literária do país, que por sua vez facilita o surgimento de bons roteiristas. Um argumento frágil, uma vez que nem a literatura brasileira, tampouco os roteiristas nacionais deixam a desejar. Uma premissa melhor, no entanto, está no fato de que a imensa crise política e econômica que assola o país há mais de duas décadas seria fermento ideal para reflexões artísticas, como a história do cinema já bem mostrou em épocas anteriores (Expressionismo Alemão, Neorrealismo Italiano etc). Em tempos de crise, a arte séria não pode ignorar o que ocorre em seu país, ainda que os artistas sejam impedidos de fazer tais críticas (Irã, Rússia), o que não é o caso da Argentina, mesmo com as investidas do governo em leis que afetam o funcionamento da mídia local. Seja qual for o argumento, o cinema argentino merece atenção. E quase sempre aplausos.


A cineasta argentina Lucía Puenzo
 

Escritora premiada, Lucía Puenzo migrou seu talento com as palavras para os roteiros e foi natural que se tornasse diretora. Membro desta geração de novos cineastas, com apenas trinta e sete anos, já ganhou dezenas de prêmios internacionais, no Festival de Cannes por XXY (2007), Havana, Montreal, Goya etc. Lucía demorou a entrar para o cinema para fugir da sombra do pai, Luis Puenzo, um dos grandes nomes do cinema argentino do século 20, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro por A história oficial (1986). Abaixo, em entrevista à Revista Cult, Lucía fala sobre o cinema argentino e sua carreira.

Cult – Porque falar sobre um nazista foragido na Argentina em seu novo filme, O médico alemão?

Lucía Puenzo: Me intrigou como uma família foi seduzida por Joseph Menguele, deixando-o entrar em sua casa e conviver com suas vidas. Menguele continuou fazendo experimentos médicos e os limites da medicina também me intrigam. Temas como dilemas éticos, onipotência etc.

Foi fundamental começar a carreira na literatura antes de ir para o cinema?

Ainda gosto mais de escrever, embora como filmo sempre com a mesma equipe, trabalho com amigos próximos. Acho que editar um filme é bem parecido com escrever, pois em um se escreve com palavras e com outro imagens, mas o exercício é similar. Mas filmar é um exercício mais árduo, que leva anos e brigas para conseguir viabilizar o projeto e convencer tanta gente a embarcar na ideia. Mas as influências que tenho para escrever são as mesmas para filmar: Nabokov, Raymond Carver, John Cheever, César Aira, Manuel Puig e Sergio Bizzio estão presentes na minha cabeça na hora de filmar bem como Michael Haneke, Tarantino e Patti Smith na hora de escrever.

A que você atribui a imagem que se tem do cinema argentino no mundo de uma produção rica, vigorosa e diversificada?

O Novo Cinema Argentino não saiu do nada, surgiu graças às leis, pensadas por cineastas da geração do meu pai, que permitiram proteger o cinema nacional e a carreira de dezenas de diretores, bem como a entrada de jovens formandos no mercado. Credito, portanto, a um governo que protege e impulsiona o desenvolvimento da cultura. Mas as escolas também têm importância fundamental. Antes do auge das grandes escolas de cinema era difícil ver, por exemplo, uma mulher como diretora de fotografia ou gaffer, sem falar em dirigir filmes, hoje absolutamente democrático graças à formação acadêmica.

Concorda então com o termo Novo Cinema Argentino?

Como um cinema de renovação, com a entrada de jovens no mercado, faz sentido. Mas a velha geração fez leis que ajudaram a tecer a carreira dos novos cineastas. Com o tempo o termo já não consegue abarcar tudo que se produz, pois há produções tão diversas que não cabem debaixo de uma mesma denominação.

No Brasil, produzimos até cem filmes por ano para entrar nas 2679 salas de cinema, criando um inevitável gargalo, só aliviada por leis como da TV Paga. Como está isso na Argentina?

A distribuição também é a parte mais frágil na Argentina. A maioria dos filmes é varrida das telas em menos de três semanas, porque competem com os tanques americanos. Acho que é preciso pensar em leis regionais para fortalecer a América Latina como um todo na Cota de Tela, como ocorreu na Coreia do Sul há um tempo.

Como a crise econômica argentina e a questão da liberdade de imprensa afetam a produção e a liberdade audiovisual?

Na Argentina há uma absoluta liberdade de imprensa para contar qualquer história que queiramos contar. Adoraria encontrar com algum diretor que diga com honestidade que teve algum tipo de censura para contar uma história no cinema.

*Jornalista, mestre em Comunicação Social. Atualmente, é professor e coordenador geral da Academia Internacional de Cinema.