Wevergton Brito Lima: A rebelião de Ferguson e o Paraíso americano

Ferguson é uma cidade do Missouri, com pouco mais de 20 mil habitantes, onde 17,6% da população vive abaixo da linha da pobreza. No dia 09 de agosto o policial branco Darren Wilson atirou no jovem negro Michael Brown, 18 anos, que morreu. Segundo todas as testemunhas ouvidas o jovem não reagiu à abordagem e estava com as mãos levantadas. Desde então, Ferguson vive mais de cem dias de rebelião popular.

Por Wevergton Brito Lima*

Ferguson rebelião revolta

De início a polícia não sabia o que dizer, revelando apenas que Brown e um amigo foram abordados por estarem andando no meio da rua. Os primeiros protestos reuniram centenas de pessoas e foram pacíficos. A partir do dia 11 assumiram caráter de rebelião, com manifestantes armados, depredações, enfrentamentos com as forças da ordem e atingindo outras regiões do Missouri.

As declarações de Obama pedindo calma não surtiram efeito. No dia 16 de agosto o governador do Missouri, Jay Nixon, decretou estado de emergência e toque de recolher entre meia-noite e 5 horas.

No dia 18 foi acionada a guarda nacional, braço do exército americano nos estados.

Neste mesmo dia a família de Brown divulgou o resultado de uma autópsia realizada de forma independente. Segundo os peritos que conduziram o trabalho o jovem foi atingido pelo menos seis vezes. A investigação revelou que uma das balas entrou no topo do crânio de Brown, sugerindo que sua cabeça estava inclinada para frente no momento em que foi atingido.

A polícia a cada declaração aumentava a indignação popular. Dias depois do ocorrido autoridades ligaram Brown a um roubo de uma caixa de charutos ocorrido em uma loja de conveniência… Mas ao mesmo tempo admitiram que o policial que o matou não tinha conhecimento do roubo! A família do jovem reagia. Segundo os parentes as versões manipuladas divulgadas pela polícia visavam "responsabilizar a vítima e desviar a atenção dos verdadeiros problemas".

É simplificar demais chamar a rebelião de “conflito racial”, como faz a mídia hegemônica subordinada ao imperialismo. A questão racial é, lógico, um componente importante do fenômeno, mas por si só é insuficiente para explicar a dimensão do que está acontecendo e o que acontece volta e meia em diferentes partes do território americano. Basta imaginar o que seria a abordagem da mídia caso um fato semelhante desencadeasse protestos em Caracas ou Havana. Veríamos manchetes histéricas: “Rebelião ameaça governo chavista”, ou “Governo comunista chama tropas para sufocar a rebelião”.

Para além da costumeira manipulação da mídia, basta uma simples olhada nas fotos das manifestações na cidade americana para constatar que tem muito branco participando, apesar de Ferguson (centro dos protestos) ter uma população majoritariamente negra (67,4% de acordo com o senso de 2010).

Mas o que faz as pessoas aderirem aos protestos além da questão racial?

Uma pista encontramos nos dados divulgados por nada menos do que o escritório responsável pelo senso americano, que em 2011 revelou que um em cada seis americanos vive na pobreza, o que significa 46,2 milhões de pessoas. Segundo o escritório é a maior taxa de pobreza já registrada desde que os dados começaram a ser coletados em 1959. A reportagem da BBC, que abordou este assunto ressalta ainda que “segundo o censo, a taxa de pobreza é ainda mais alta entre negros (27,4%) e hispânicos (26,6%) do que entre brancos (9,9%). Entre crianças negras, a taxa de pobreza chega a 39%, mais de três vezes maior do que a registrada entre crianças brancas (12,4%). O censo também revela que cerca de 50 milhões de americanos não tinham seguro saúde em 2010, mesmo patamar registrado no ano anterior.”

Outra pista é a forma peculiar com que os Estados Unidos busca resolver a questão da pobreza: prendendo os pobres. O paraíso da liberdade capitalista, apesar de estar longe de ter a maior população do mundo, tem a maior população carcerária do mundo, 2.228.424 (segundo o Centro Internacional de Estudos Prisionais, do King's College, de Londres), o que significa que 1 em cada 142 cidadãos americanos está preso (no Brasil a proporção é de 1 para 283 e na China 1 para 796). Os negros são 13% da população americana, mas nas prisões são 40%.

Voltando ao caso Brown, Obama pediu calma à população e exortou para que confiassem na justiça. Até mesmo o pai da vítima, Michael Brown, fez um pedido para que cessassem os protestos violentos: “quero justiça para meu filho, mas quero que ela seja feita do jeito certo”.

Nesta segunda-feira (24) um júri de 12 pessoas (nove brancos), resolveu por maioria de votos (não é preciso unanimidade para este tipo de deliberação) livrar o assassino de Michael Brown de qualquer acusação! Vejam o relato do site G1 (provavelmente tímido, vindo de onde vem) sobre o que aconteceu em seguida:

“Tiros e explosões foram ouvidos na cidade do estado de Missouri. Carros incendiados e saques também foram registrados. Manifestantes queimaram edifícios, saquearam lojas e atiraram contra a polícia. Tropas de choque, FBI, Swat e a Guarda Nacional foram nas ruas de Ferguson. Tumultos foram controlados com gás lacrimogêneo. Segundo o sargento Brian Schellman, da polícia de St. Louis, 61 pessoas foram detidas. Os confrontos representaram a pior noite de distúrbios na cidade desde agosto. Entre os presos estão pessoas com idades entre 17 e 66 anos. A polícia ainda não tem um balanço de estragos e prejuízos. (…) Pelo menos 12 imóveis foram incendiados pelos manifestantes dentro da cidade e nas proximidades – a maioria foi totalmente danificada. Veículos incendiados, janelas e veículos destruídos, saques e sons de tiros tomaram a Avenida West Florissant de Ferguson e seus arredores, após o anúncio da decisão judicial.”
 

A tragédia pessoal de Brown foi a centelha que encontrou a pradaria cheia de galhos secos. O incêndio será controlado não por apelos de Obama e mesmo da família da vítima, mas sim pela atuação do maior e melhor aparelho de repressão estatal do mundo que funciona nos Estados Unidos, reprimindo as constantes revoltas decorrentes de um sistema cruel que mata e prende os negros e pobres cotidianamente.

No dia 23 (domingo), portanto um dia antes do assassino de Brown ficar livre de acusações, um garoto negro de 12 anos, morador de Cleveland (Ohio), Tamir Raice, estava com uma pistola de brinquedo quando foi abordado por policiais. Testemunhas são unânimes em afirmar que o garoto não ameaçou nem apontou a arma (de brinquedo) para os agentes. Mesmo assim levou dois tiros e morreu.

Mas o fato é que a rebelião de Ferguson continua e qualquer que seja o seu desfecho o fatos vão provando que o paraíso americano tem uma porta estreita e chaves de ouro que são propriedade de uma parcela de privilegiados, enquanto a maioria pena no purgatório, lutando para não cair no inferno da miséria ou da cadeia, aonde a luz do sonho americano não alcança.

*Jornalista, Secretário Estadual de Comunicação do PCdoB-RJ e membro da Comissão Nacional de Comunicação do PCdoB