“A Governança da China”, o novo livro de Xi Jinping

28 de setembro, o dia em que se comemora o aniversário de Confúcio, o pensador chinês mais famoso no mundo, foi a data escolhida pelo Gabinete de Imprensa do Conselho de Estado da China para anunciar a publicação do livro de autoria do presidente Xi Jinping “A Governança da China”.

Por José Medeiros da Silva e Rafael Gonçalves de Lima*

O livro reúne, em 18 capítulos temáticos, 79 trabalhos apresentados pelo presidente chinês entre 15 de novembro de 2012 e 13 de junho de 2014, como intervenções políticas, discursos, mensagens e considerações. Mais do que as aparentes e repetitivas formalidades discursivas, a coletânea revela como a atual geração de líderes do Partido Comunista da China (PCCh) olha para o seu país e para o mundo e, principalmente, quais as ideias que governarão a China pelos próximos anos.

Elaborado para dialogar com o mundo, o livro foi publicado simultaneamente em 9 línguas – chinês, português, espanhol, francês, inglês, alemão, russo, árabe e japonês e lançado oficialmente pela Editora de Línguas Estrangeiras da China na 66ª Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, no início de outubro de 2014. Em português são 565 páginas, em chinês, 471. Na obra, um extensivo apêndice publicado pela agência Xinhua traça um perfil de Xi Jinping desde sua juventude até a chegada ao mais importante posto de comando do país. 45 fotos, de diferentes fases da vida e de encontros políticos, complementam a mensagem do livro.

Como brasileiros, tivemos o prazer de ficar quase três meses isolados em um hotel do Departamento de Imprensa do Conselho de Estado da China para, com uma equipe de tradutores chineses, proporcionarmos aos leitores de língua portuguesa a publicação desse livro. As limitações foram muitas, principalmente de tempo. Mas eis que temos também em nossa língua a possibilidade de melhor compreender para onde a China pretende caminhar.

Três grandes temas se entrelaçam ao longo do livro: o Partido, o Estado e a Nação.
No que diz respeito ao Partido, os leitores têm o privilégio de adentrar em discussões de natureza bem interna, como a política de seleção e formação de quadros, a linha de massas e os principais desafios práticos e teóricos no atual momento histórico. Destaca-se nas intervenções a lucidez do presidente Xi Jinping sobre os graves problemas a serem enfrentados pelo Partido, como a corrupção e degeneração ideológica, para que o mesmo continue merecedor da confiança do povo: “Dentro do Partido, há muitos problemas que necessitam urgentemente de solução, sobretudo, aqueles existentes entre alguns quadros, como fraude, corrupção, separação das massas populares, formalismo e burocratismo. Estes problemas precisam ser resolvidos com grande esforço. Todo o Partido deve estar alerta ”.

Essa lucidez estende-se também aos problemas morais e de formação enfrentados pelos quadros. O detalhamento e a profundidade dessa compreensão, assim como os desafios e exigências para os quadros dirigentes estão muito bem explícitos: “Estamos expostos à poeira todos os dias, por isso, temos de tomar banho, usar sabonete, esfregar com esponja e lavar-nos no chuveiro para ficarmos limpos e radiantes. Igualmente, o nosso pensamento e a nossa conduta também podem ser manchados pela poeira e pelos micro-organismos políticos. É por isso que devemos ‘tomar banho’ para tirar a poeira, relaxar nossa mente, abrir os poros e promover o metabolismo. Assim, podemos trabalhar com honestidade e atuar com integridade. Algumas pessoas pretendem sempre encobrir a poeira acumulada no pensamento e na conduta e não aceitam o ‘banho’. Quanto a elas, os camaradas e a organização têm de ajudá-las a ‘tomar banho” .

Em “A Governança da China”, fica explícito que o PCCh é o cérebro do Estado e seu principal gerenciador. Xi Jinping, que já foi diretor da Escola do PCCh, núcleo central do pensamento marxista na China, deixa claro em seu livro que os trabalhos a serem realizados, principalmente aqueles relacionados a educação ideológica e a prática da linha de massas são urgentes. Perder a luta ideológica é perder controle do Partido e perder o controle do Partido é perder o controle da governança da China. Ou, como diriam Confúcio e Mêncio, é perder o Mandato (Tianming), isto é, a legitimidade de governar.

Nesse sentido, o livro passa a ser uma obra de referência quase obrigatória. Se muitos fracassos podem ser creditados ao Partido, as conquistas da China atual não lhes podem ser negadas. Nesse sentido, compreender o Partido é condição sine qua non para entender as movimentações do Estado chinês, tanto no plano interno, quanto em suas relações com os outros Estados. E Xi Jinping, mas do que qualquer outro líder depois de Mao Tsé-Tung e Deng Xiaoping, é um homem de Partido, ou melhor, não apenas um administrador da máquina partidária ou governamental, mas um pensador sobre a tradição histórica dessa máquina.

“De fato, como governar uma sociedade socialista, ou seja, uma sociedade completamente nova, é uma questão que não foi bem resolvida no mundo socialista por longo tempo. Karl Marx e Friedrich Engels não tinham as experiências práticas sobre a governança integral de um país socialista e as suas teorias sobre a sociedade futura eram na sua maioria apenas previsões. Vladimir Lenin faleceu apenas alguns anos depois da Revolução de outubro na Rússia, assim não pôde explorar essa questão profundamente. A União Soviética, embora abordando essa questão e obtendo algumas experiências práticas, cometeu graves erros e falhou na sua solução. Desde que chegou ao poder nacional, o nosso Partido tem se empenhado continuamente em resolver essa mesma questão e, apesar de graves contratempos, tem acumulado ricas experiências e obtido importantes êxitos em relação ao sistema e à capacidade de governança do Estado. O progresso tem sido particularmente ressonante desde o início da reforma e abertura. Com a estabilidade política, desenvolvimento econômico, harmonia social e unidade étnica, o nosso país vive um forte contraste em relação às situações caóticas de algumas regiões e países no mundo. Isso demonstra que o nosso sistema e a capacidade de governança do Estado são em geral bons e adequados à realidade e às exigências do desenvolvimento do país” .

A cultura tradicional chinesa, com seu grande legado histórico, é outro elemento que se destaca no livro. Aliás, em quase todos os textos são recorrentes citações ou referências de diversas obras clássicas chinesas, como por exemplo diversos ensinamentos de Confúcio. Se em um determinado período histórico a cultura tradicional foi duramente combatida pelo Partido, agora ela não só é apreciada mas amplamente valorizada e instrumentalizada para um propósito nacional bem definido.

Vale enfatizar que esse é uma outra inovação teórica desenvolvida pelo PCCh e muito bem argumentada por Xi Jinping. Sob sua liderança, o Partido compreende cada vez mais a sua responsabilidade histórica de conduzir, promover, propagar e desenvolver esse legado. Sua tarefa não é a de rechaçar, mas de harmonizar: "No decorrer de mais de 5.000 anos, a nação chinesa conseguiu desenvolver uma brilhante cultura, vasta e profunda. Devemos unir os genes da cultura tradicional chinesa com a cultura contemporânea e harmonizá-los com a sociedade moderna, popularizando-os de maneira aceitável e amplamente acessível ao público" .

Em uma leitura atenciosa do livro também fica mais fácil compreender o porquê do afloramento de alguns fenômenos culturais, como a internacionalmente propagada especulação sobre a volta do confucionismo na China. Na verdade, esse fenômeno está diretamente associado à questão do nacionalismo, elemento-chave que tem sido diligentemente forjado pelo Partido. Quando se sente as entranhas da China, logo se percebe que o confucionismo, assim como o taoísmo, são partes da maneira de ser chinesa. Ou seja, continuam a existir mesmo quando negados, pois depois que chegaram nunca mais saíram, mesmo quando renegados ou impronunciados. No entanto, no caso do confucionismo, ainda que seja um elemento sempre presente não se pode afirmar que é um elemento dirigente. No caso do Estado chinês, esse papel continua nas mãos do Partido, que é tipicamente marxista-leninista, com características chinesas, obviamente.

O presidente chinês tem clareza do que faz e do que busca. A consciência coletiva chinesa consegue muito bem captar a mensagem de seu líder e aplicá-la de forma rápida e dinâmica. Esse é um elemento da tradição confucionista que facilita a governança do país, principalmente quando o direcionamento da ação está em sintonia com as necessidades coletivamente percebíveis. Assim, em seu livro, Xi Jinping fala com todos. Explica a China e o seu projeto de China para o mundo e para os próprios chineses, onde quer que esses estejam. De forma clara e firme, orienta o sentido da atividade econômica segundo as prerrogativas estabelecidas no 18° Congresso Nacional do Partido, para a construção das metas dos “dois centenários” e a concretização do sonho chinês da grande revitalização da nação . Em tom de amizade e com cuidadosa diplomacia dialoga com os líderes das grandes nações, dos países vizinhos e com todos os que se relacionam com a China. Como um professor, aponta erros objetivando o processo de aprendizagem e, com seu próprio exemplo, procura orientar um padrão de comportamento para todos os chineses, quer vivam na China, quer no exterior. Como pai, procura instruir crianças e jovens chineses, segundo os padrões morais que acredita serem corretos.

Em resumo, o livro de Xi Jinping é também uma ferramenta para compreensão da diplomacia chinesa no mundo contemporâneo. Diríamos que a China não pretende dominar os outros países, mas dominar-se, ou melhor, governar-se. Quer ouvir e ser ouvida. E como diz uma máxima do Daxue (O Grande Estudo), apêndice de um dos clássicos confucionista, e sempre mencionada pelo professor e amigo Severino Cabral, “Sabendo reconhecer as prioridades, estarás ao alcance da via”. No livro, fica claro que Xi Jinping conhece bem as prioridades de seu país, por isso o seu sonho é tão objetivo.

*José Medeiros da Silva, Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, é Investigador convidado do Instituto Internacional de Macau e há sete anos vive na China.

Rafael Gonçalves de Lima é bacharel em Relações Internacionais pela Faculdades de Campinas (Facamp) e atualmente faz mestrado em Relações Internacionais na Universidade de Jilin, na China, com bolsa do governo chinês.