De Guerrero a Gaza: Mudando o local do conhecimento 

Os locais de conhecimento que a vontade de resistir ao poder implica são exteriores às fronteiras dos locais autocentrados de produção do conhecimento, que buscam ao mesmo tempo governar e saber o mundo.

Por Hamid Dabashi*, em Al-Araby 

Hamid Dabashi - Hamid Dabashi

No início de novembro de 2014, enquanto o México estava afogado no desaparecimento traumático de 43 estudantes da Escola Rural de Ayotzinapa, no sul do estado de Guerrero, eu estava na Cidade do México para dar duas palestras na Universidad Nacional Autónoma de México (Unam) e no Colegio de México, duas das mais veneradas instituições de ensino superior do país.

Coincidindo com a celebração nacional do “Dia dos Mortos”, essas falas estavam no contexto de uma “Semana Árabe” que colegas mexicanos organizaram e na qual acadêmicos proeminentes do México e do exterior se reuniram, para refletir sobre a condição do Mundo Árabe e Muçulmano após as revoluções árabes.

Esta reunião acontecia no momento em que o México atravessava um dos seus períodos históricos mais devastadores. Meus colegas e eu nos vimos repetidamente levados a fazer comentários comparativos e referências às condições mexicanas contemporâneas enquanto dávamos nossas palestras sobre as situações no Mundo Árabe – do Marrocos à Síria, do Bahrein ao Iêmen. De repente, referências cruzadas entre Guerrero e Gaza não eram apenas naturais, mas necessárias; não só lógicas, mas nesta lógica também esclarecedoras e inovadoras.

Enquanto isso acontecia, eu e muitos outros colegas docentes na América do Norte tínhamos deixado nossos campi para reunirmo-nos na Cidade do México, em um momento em que agitações fanáticas do comediante estadunidense Bill Maher e seu companheiro islamofóbico Sam Harris competiam por manchetes com uma nova série de anúncios que sua alma gêmea, Pamela Geller, estava pregando em metrôs e ônibus dos EUA, contra muçulmanos. O convite a Bill Maher para proferir um discurso na cerimônia de graduação da Universidade da Califórnia em Berkeley estava na corrente de notícias das pessoas enquanto eu embarcava em meu voo no [aeroporto] JFK: “Estudantes do campus de Berkeley protestam contra o planejado discurso de graduação de celebridade ‘abertamente preconceituosa e racista’.”

O local do saber

Viajar dos EUA para o México pensando e escrevendo sobre as revoluções históricas no mundo árabe e muçulmano torna uma questão crítica bastante clara. A produção de conhecimento nos contextos europeu-ocidental e norte-americano transformou-se em um dado autopromovido por duas razões diametralmente opostas: 1) as formas mais dominantes de saber produzidas nesses dois locais são de think tanks e outras instituições militantes e militarizadas a serviço do poder imperial e, por sua vez, institucionalizadas pela mídia de massas predominante; e 2) discursos opositores, de pensadores críticos, não têm alcance ou influência sequer próximos dos tidos pelos que produzem conhecimento a serviço do poder. Mas, se não for cuidadoso, e aí está o embaraço, esse pensamento de oposição, na verdade, cai direto na armadilha do discurso dominante e, forçosamente, engaja-se apenas em suas características hegemônicas.

Considere-se o fato de que um comediante iletrado como Bill Maher ou um sionista liberal como Sam Harris (ambos categoricamente despistados com relação à história e à doutrina islâmica) têm muito mais influência confirmando um grande componente da sociedade americana, em seu racismo arraigado, do que qualquer pensador crítico poderia ter para deslocá-los. O conhecimento e o contraconhecimento produzidos nos EUA como o epicentro do império globalizado (e, por extensão, na Europa Ocidental) estão ambos presos em um impasse que exauriu há muito todas as possibilidades de qualquer superação epistêmica.

Porém, a situação no México era e continua diferente. O México está no meio de uma condição profundamente traumática. A Cidade do México é o centro cosmopolita de uma cultura rica, diversificada, com razão orgulhosa e confiante. Em lugares como o México temos as possibilidades epistêmicas de um tipo diferente de saber, porque ali ele é produzido não no âmago do poder, mas na condição crítica de um trauma nacional. Esta dialética produtiva entre o saber e o trauma é infinitamente mais dinâmica que a relação entre o conhecimento e o poder e a reação involuntária contra ele inevitavelmente produzida.

Acredito que a contestação fútil entre a produção de “conhecimento” dominante e amplamente estabelecida (ou, mais precisamente, ignorância) e o pensamento crítico que ela paradoxalmente demanda e, instantaneamente, anula, precisa ser decisivamente abandonada a favor de uma mudança fundamental do local da produção de saber, em lugares alternativos como o México, ou qualquer outro lugar na América Latina, na África ou na Ásia. Portanto, por extensão, em qualquer lugar onde as pessoas estão experimentando tais episódios traumáticos em suas histórias, algo que instantaneamente coloca Ferguson, Guerrero e Gaza no mesmo plano social e epistêmico.

Vontade do saber

Em meu "Pós-Orientalismo" (2008) já argumentei que o curso inteiro de produção do clássico conhecimento Orientalista chegou a uma curva crucial durante a Guerra Fria e a ascensão dos Estudos de Área, de onde seguiu outra curva, após a queda da União Soviética e a ascensão dos think tanks, ou da produção do saber sob coerção e para conquistas específicas – do Afeganistão ao Iraque. Essas formas variadas de produção do saber permanecem constantes em sua manifestação da vontade do conhecimento como uma expressão de desejo do poder, enquanto no México – como um exemplo do mundo em geral (incluindo comunidades despojadas, de Guerrero a Ferguson e a Gaza) – a produção de saber é precisamente na direção oposta: parece-se com a vontade de resistir ao poder.

Para produzir conhecimento desde a prerrogativa do desejo de resistir ao poder, é preciso estar física ou emocionalmente exterior ao domínio hegemônico da exegese autocentrada de uma vontade do poder, autodenominada “o Ocidente”, e que continua circundando a si mesma, nos EUA e em seus satélites normativos, desde a Europa a Israel, à Arábia Saudita e ao Egito.
Considerar que precisamente no momento em que a mídia de massas liderada pelos EUA é inundada com as bobagens de Bill Maher, Sam Harris e outros “Novos Ateus” iletrados pontificando sobre o Islã e a Sharia, um dos mais brilhantes acadêmicos da nossa época, Wael Hallaq, publicou talvez o tratado mais provocativo sobre as persistentes dinâmicas entre o Direito Islâmico e o dilema da Modernidade Eurocêntrica.

“O Estado Impossível: Islã, Política e o Dilema Moral da Modernidade” [The Impossible State: Islam, Politics, and Modernity's Moral Predicament] (2012), de Hallaq, que tenho ensinado desde a sua publicação, continua sendo uma fonte sólida de reflexão sobre dilemas atuais e futuros das sociedades muçulmanas, oferecida desde o ponto de vantagem de um intelecto profundamente cultivado, estudioso e cuidadoso. (Para uma entrevista diversa com Wael Hallaq sobre uma variedade de assuntos relativos ao mundo muçulmano hoje, assista esta recente conversa [em inglês]).

Mas quem, fora dos limitados círculos acadêmicos do estudo jurídico islâmico, já ouviu falar de Wael Hallaq ou de seus igualmente eminentes colegas Sherman Jackson, Khaled Abou El Fadl ou, antes deles, do distinto egípcio especialista em hermenêutica, o falecido Nasr Hamid Abu Zayd (1943-2010) – e seus trabalhos acadêmicos monumentais sobre a natureza e a função da revelação Corânica ou do Direito Islâmico – especialmente quando se compara com os trilhões de mensagens de Twitter circulando pelo ciberespaço sobre todas as idiotices de Maher/Harris e seus semelhantes?

Acadêmicos como Boaventura de Sousa Santos foram longe para sugerir a necessidade de desenterrar as “Epistemologias do Sul” ao 1) desconstruir as raízes eurocêntricas do pensamento colonizado, e 2) reconstruir os legados filosóficos não europeus interrompidos pelo colonialismo. Mas epistemologias alternativas não residem no sul de qualquer mapa no qual seu norte governa o globo.

O que viabiliza acadêmicos inovadores como Wael Hallaq não é sua localização ou dependência de qualquer “epistemologia do sul” recuperada, mas sua localização moral em um ponto exterior ao domínio e fora do radar da vontade dominante de poder. Assim eles cortam as ligações do conhecimento útil ao poder reinante, que ele serve. Eles então descobrem um domínio epistêmico receptivo a uma história traumática, que produz conhecimento para resistir ao poder, e não para almejá-lo.

Os locais do saber que a vontade de resistir ao poder implica estão além das fronteiras dos locais autocentrados de produção do conhecimento, que buscam ao mesmo tempo governar e saber o mundo – em qualquer ponto, desde Guerrero a Gaza, Ferguson, Kobani e os territórios zapatistas em Chiapas. O que acadêmicos como Hallaq descobrem são novos mundos e como sermos neles cosmopolitas. Eles desenham novos mapas da e para a nossa vontade rebelde de mudar o mundo para além do atual colapso de suas elites dominantes, em qualquer lugar, e suas massas em sofrimento, em todos os lugares.

*Hamid Dabashi é o autor do livro "Pós-Orientalismo: Conhecimento e Poder na Era do Terror" (Post-Orientalism: Knowledge and Power in Time of Terror), 2008.

Fonte: Al-Araby
Tradução: Moara Crivelente