O surfe brasileiro entra no radar

Desde que alguém foi flagrado pela primeira vez sobre uma prancha em Santos, em 1934, o Brasil é visto como potência latente do surfe. Mas só latente: o país nunca tivera um campeão mundial, apesar de seus 9 mil quilômetros de litoral e milhões de jovens no mar.

Por William Vieira*, na Carta Capital

Gabriel Medina - Divulgação
 

Quando o esporte ganhou a elite carioca nos anos 1970, espalhando-se pelo país no embalo de Hollywood, a vocação voltou ao dito popular. Caetano Veloso gravou Menino do Rio para a beleza de Carlos Petit e, nos anos 1980, a Globo ousou numa série com André DeBiase como surfista. Mas nunca na história deste país lambido por ondas um brasileiro havia conquistado o desejado título mundial.

Nunca – até Gabriel Medina, o menino de Maresias, fazê-lo aos 20 anos, feito similar ao do maior gênio do surfe da história, Kelly Slater. No Havaí, Medina venceu o circuito mundial da World Surf League (WSL), dando cara à nova geração do surfe nacional. Mas seria ele o Guga Kuerten do surfe, indaga-se o leigo no esporte, talento a brilhar sozinho num panteão de estrangeiros, alçando o Brasil ao pódio num arroubo de self-made man? Ou haveria mudanças no modo como o Brasil surfa, chave para a nova safra de talentos nas ondas?

O ranking da WSL dá a pista. Pela primeira vez o Brasil tem três surfistas no Top Ten. Com sete classificados, é o segundo país com mais nomes na elite do esporte em 2015. Medina é só o líder de um grupo coeso de talentos, a tal “Brazilian Storm”, que quebrou o paradigma do surfe mundial, sempre nas mãos de australianos e havaianos. “E o fenômeno não é isolado”, diz Pedro Falcão, diretor da Associação Brasileira dos Surfistas Profissionais (Abrasp). Teve início em 1986, quando o Circuito Mundial veio ao Brasil. Fundada naquele ano, a Abrasp fez seu campeonato em 1987. “Aqueles que foram pro circuito sem estrutura abriram as portas na raça”, diz Falcão. Fábio Gouveia foi quinto do mundo em 1991 e Victor Ribas, terceiro em 1999. E houve outros lutadores e promessas fugazes. O resultado foi um lastro de ídolos que inspiraram não apenas o negócio do surfe – de publicações e sites que transmitem os circuitos a marcas e entidades que patrocinam o esporte e lucram com ele) como jovens surfistas.

A herança foi direta para Filipe Toledo, filho do Ricardo Toledo, bicampeão brasileiro, e Miguel Pupo, filho de Wagner Pupo, destaque nos anos 1980. São filhos de peixe apoiados pela família, que, assessorados, voaram longe, alimentados por um know-how que, em vez de transmutar-se em lendas, têm sido transmitido. Escolinhas de ex-surfistas também pipocaram nos últimos anos. E, pouco a pouco, uma nova geração de meninos (e meninas) que pegam ondas podem, se vencerem alguma etapa, arrancar um patrocínio e abraçar a profissão. Mas por que ninguém havia chegado lá como Medina?

Eis o mal brasileiro: falta de organização e profissionalismo, diz Roberto Perdigão, diretor para a América do Sul da WSL. “O Brasil tem presença mundial desde os anos 1980, mas não tradição, técnica e patrocínio.” Primeiro, carecia de profissionalismo o atleta: banhado numa aura romântica, o surfe era mais diversão do que profissão, caso de anti-heróis como Dadá Figueiredo, que despontou nos anos 1990, mas ficou no caminho por causa do álcool. “Mas os jovens começaram a fazer o dever de casa”, diz Perdigão: a viajar para o Havaí, ter sua entourage. “Surfe é alto rendimento. À parte o talento, o Gabriel tinha manager, treinador,shaper, nutricionista. Isso requer dinheiro e seriedade.”

E a organização institucional é ruim. “Falta capacitação às associações para dar rumo ao esporte. Quantos circuitos nacionais temos? Nenhum. Hoje, muitos meninos chegam direto nas etapas mundiais.” Medina foi desses. Aos 16 anos venceu uma etapa do WQS, espécie de acesso ao WCT, o evento supremo. Ganhou dinheiro, pontos, patrocínio – e despontou.
“Só não desisti de surfar porque amo o que faço e tenho familiares que me apoiaram”, diz Adriano Souza, oitavo do mundo. “Nós da elite do surfe temos parcerias com empresas que nos ajudam a viajar, treinar e competir sem passar fome. Mas quem está embaixo sofre. Falta estrutura para essa molecada mostrar o valor. Até o ano passado, vi pérolas desistirem por falta de incentivo, de dinheiro.”

Falcão culpa a falta de patrocínio – a Petrobras retirou o seu em 2012. Mas faltam também promotores engajados. A esperança é de que o efeito Medina não apenas reforce o caixa como a profissionalização: circuitos, escolas, talentos. “Esse título repercutirá como Guga em Roland Garros”, diz Perdigão. “Mas enquanto não organizarmos o esporte, dependeremos dos Medina.” O surfe deve fazer mais do que esperar a tempestade.

*William Vieira é repórter de Carta Capital