Ana Matos: Pobreza e privatização de direitos

Se por um lado os programas de transferência de renda têm importância mais que comprovada no combate à pobreza, é preciso avançar ainda mais no acesso a serviços públicos, gratuitos e de alta qualidade.

Por Ana Luíza Matos de Oliveira*, publicado no Brasil Debate

Plano de Saúde

No dia 28 último, a presidenta Dilma Rousseff instituiu o “Grupo de Trabalho Interministerial de Acompanhamento de Gastos Públicos do Governo Federal”, com o objetivo de propor medidas para melhoria da execução orçamentária e financeira de 2015 e da qualidade do gasto público.

Alguns meios de comunicação noticiaram que o GTAG recomendaria cortes em programas sociais, avaliação que poderia ser precipitada, dado que o grupo ainda não entregou recomendações. Deve-se considerar também que programas sociais prioritários do governo federal (Anexo 3º da Lei de Diretrizes Orçamentárias) não são passíveis de contingenciamento.

De fato, é importante que cortes não sejam realizados de forma a diminuir os efeitos das políticas sociais na redução da pobreza e desigualdade social – essas últimas ainda fortes características do nosso País – especialmente agora: alguns estudos recentes têm mostrado uma estagnação ou crescimento dos índices de pobreza na América Latina (ver “Panorama Social de America Latina 2014”, da CEPAL) e no Brasil (ver “Paralisia econômica, retrocesso social e eleições”, de Waldir Quadros), com efeitos na mobilidade social, em especial entre os anos de 2012 e 2013, e tendência, portanto, diferente da observada entre 2003 e 2012.

Assim, se em um primeiro momento os avanços sociais na luta contra a pobreza e na melhoria dos índices do mercado de trabalho não haviam sido contaminados pela desaceleração econômica do Brasil e da América Latina em geral, o cenário agora parece estar mudando.

O gráfico 1 mostra a evolução da proporção de pobres e extremamente pobres (ou indigentes) no Brasil e a tabela 1 investiga especificamente os índices de 2012 e 2013:

Desde 2003, certamente o País tem avançado no combate à pobreza por meio das transferências de renda, sendo o programa mais conhecido o Bolsa Família. Mas ele não deve ser tomado como o único instrumento para a superação das diversas facetas da pobreza.

De fato, grande ênfase tem sido dada a programas de transferência de renda na América Latina: entre 1990 e o final da década de 2000, o gasto social como proporção do PIB aumentou 6,6 pontos percentuais na América Latina, mas as transferências monetárias absorveram praticamente 60% desse aumento (“América Latina: Mínimos monetários em lugar da proteção social”, Lena Lavinas).

Isto é, houve melhorias na provisão de serviços públicos, mas que não acompanham a evolução da possibilidade de acesso via renda (do trabalho, transferências ou crédito) a direitos como educação e saúde.

Por exemplo, grande parcela do gasto em saúde no Brasil é privado: enquanto a participação do gasto público com saúde no PIB era de 4,5% em 2011, a do gasto privado com serviços de saúde era de 5,5% no mesmo ano.

E de setembro de 2002 a setembro de 2014, subiu de 18,1% para 26,1% a taxa de cobertura da população brasileira por planos de saúde privados, segundo dados da ANS (tabela abaixo).


 

Já na educação, a porcentagem de matrículas da educação básica no setor privado foi de 12,48% em 2002 para 17,21% em 2013, segundo dados do MEC/INEP e, no ensino superior, a porcentagem de matrículas em cursos presenciais em Instituições de Ensino Superior (IES) privadas foi de 69,78% em 2002 para 71,1% em 2013 (tabela abaixo).

Diversos estudos mostram a influência de uma lógica de mercado que orienta a assistência privada, que interferiria também nos procedimentos indicados e adotados, pensados a partir de interesses econômicos (“Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento (resultados preliminares)” FIOCRUZ), não só de hospitais ou planos de saúde, mas também de farmacêuticas, outras empresas e associações de profissionais envolvidos na assistência (“Interaction between pharmaceutical companies and physicians who prescribe antiretroviral drugs for treating AIDS”, Mario César Scheffer). Relações semelhantes podem ser pensadas para a educação.

Considera-se positivo que mais pessoas tenham acesso a esses direitos, porém o fortalecimento do setor privado no acesso à saúde e educação não necessariamente diminui desigualdades ou garante qualidade.

Assim, deve-se discutir se o acesso nos últimos anos se tornou mais igualitário, independentemente de rendimentos ou classe social; se houve uma diminuição das diferenciações regionais; de que maneira as políticas públicas adotadas nos últimos anos têm aberto espaço para o fortalecimento de interesses privados no provimento desses direitos; e se o fato de o direito ser acessado por meio de um sistema privado – que busca maximização de lucros ou interesses – afeta o acesso e a garantia ao direito.

Portanto, se por um lado os programas de transferência têm importância mais que comprovada no combate à pobreza e na composição dos rendimentos da população mais pobre, é preciso avançar ainda mais para o provimento de acesso a direitos (como educação e saúde) públicos, gratuitos e de alta qualidade.

Além de manter as conquistas até aqui, é preciso continuar reduzindo a pobreza no País e avançar no combate às outras formas de pobreza e desigualdade que não a monetária/de renda.

Se existe a necessidade de corte de gastos, que os mesmos não ocorram arriscando avanços conquistados nos últimos anos e diminuindo a possibilidade de maiores investimentos públicos em áreas como as apontadas.

*Ana Luíza Matos de Oliveira é economista (UFMG), mestra e doutoranda em Desenvolvimento Econômico (Unicamp). Colaboradora do site Brasil Debate.