Urariano Mota: Djalma Júnior, ou a lógica no delírio
Minha filha e os da geração dela costumam se referir aos assuntos mais graves, sérios e tocantes como “pesados”. Entendo-os com um esforço de largueza na compreensão.
Por Urariano Mota* para o Vermelho
Publicado 10/04/2015 13:13

Bem sei que na verdade assim se referem às obras e pessoas fundamentais, com as quais não adianta fazer “greia”, para usar uma gíria recifense, ou mesmo brincar com leveza. Mas jamais poderia imaginar que o adjetivo usado por eles fosse tão impeditivo para mim. Pois adiei falar até hoje sobre Djalma Gomes de Lima Júnior.
Tentarei escrever enquanto escuto e ouço o Tropicália, o disco vanguarda dos tropicalistas. Espero que me ajudem na tarefa, na altura de “as pessoas na sala de jantar”, do “Panis et Circenses”. Começo pela mensagem de Fátima Brandão, que me chegou pelo Face há 16 dias, enviada do Canadá:
15 de março de 2015 2:38
A esse golpe, na manhã seguinte respondi:
O que tento fazer agora, cumprindo o prometido.
Em um envelope improvisado, feito a partir de uma folha de papel ofício, Djalma escreveu “a um mestre das Letras”. Primeiro, foi um choque para mim. Eu não sou mestre nem aqui em casa, que dirá para os de fora. Mas fiquei curioso do que viria. No verso, o meu amigo informou o remetente: “Com os agradecimentos – Djalma Jr.”. Então, quando abri o envelope, pude ler uma surpreendente crítica a Soledad no Recife, escrita à mão. Transcrevo-a, sem tirar nem pôr:
Em que me desse a pena aplicar, só num curso do Fogo Fátuo.
Deixar o pixote apodrecer, e lhe triturar os ossos, e como o patrão do bastardo (não sei que data, pois que não sumiu na poeira dos ignóbeis).
Talvez as lágrimas que verti por compaixão em uma senda contrita, me pudessem não comparecer num velório de todos os personagens críticos que assumiu. A beleza de como se apaixona antes do apagar da bela chama. Sim, também sou solidário nesta paixão.
Quisera ter a pena que a mão do autor faz sua jurisprudência, e descreve com tanto suor, a questão que tanto nos empatiza, e enfatiza o papel dos que têm o coração grande, face uma erraiz miúda tão malefunta.
A beleza eterna de SOL, ó você, meu amigo Urariano, que ressaltou de maneira fortemente enfática para qualquer, onde haja uma pena forte.
Olinda 29/01/2012”.
Eu lhe disse na ocasião, no outro dia, ao caminhar na praia de Olinda, que a sua crítica possuía o valor de um troféu para mim. Era verdade, e de tal modo, que a guardei em minha gaveta até hoje, neste 2015. Agora, posso falar que o texto acima é uma sensibilidade exposta como uma fratura, com uma quebra do enunciado que lembra mais verso de poema, como na frase “A beleza de como se apaixona antes do apagar da bela chama”. Explico, para quem não sabe: Djalma tinha o diagnóstico de esquizofrenia. Daí a quebra da fala lógica, mas ainda assim tão expressiva, por força da genialidade que resistia ao terremoto. Ele era poeta, o que eu sei de um livro anterior dele que li. Vem da sua poesia o prumo da frase que define.
A esta altura, enquanto ouço “Mamãe, mamão não chore”, de Mamãe Coragem, devo copiar alguns trechos de um livro de Djalma, escrito em momentos serenos, serenos à sua maneira, devo dizer.
não me lembro; mas também não me esqueço”.
Como pode preferir
a tranquilidade
das minhas panelas?
“Tire isso da cabeça
e ponha no vaso sanitário”
I– Vá caminhar, não atrapalhe as suas elucubrações. Eu espero você na volta.
Elucubrações. A minha mulher já havia notado que Djalma costumava usar as palavras com elegância e precisão. Aliás, com uma necessidade precisa, acrescento agora. Dele eu lembro três momentos antológicos. No primeiro, eu o convidei para beber comigo em uma barraca na praia de Olinda. Ali, conversamos sobre tudo, mas sempre a seu modo, isto é, aqui e ali com hiatos. Na mesa, pude então satisfazer uma curiosidade, que sobre ele eu alimentava, até o nível do escândalo:
– Sim, é verdade.
– É verdade que você, vestido de Che Guevara, com charuto, boina e coturno, entrou no bar da Livro Sete?
– Sim, é.
– Rapaz, como foi que as pessoas reagiram?
– As pessoas fugiam de mim, como se eu estivesse com lepra. Os que ficavam, eu falava com eles em espanhol, mas eles nem me viam.
Na saída, de volta pra casa, me lembrei de repente que ele tomava remédios para doenças psiquiátricas. Então lhe perguntei:
– Você ainda toma aqueles remédios de tarja negra?
– Sim, tomo.
– E sua mãe, ela não fica irada com você tomar remédio e beber cerveja?
– Fica, mas ela não pode falar.
– Por quê?
– Porque ela não bebe, não pode saber o que é isso.
No começo deste 2015, eu o reencontrei depois de um tempo em que não o havia visto na praia. Então ele me disse que tinha ido visitar a irmã Fátima, no Canadá. E eu, sempre com a curiosidade, que a minha mulher chama de impertinente:
– Eu falava.
– Sim, sei. Mas em francês?!
– Sim. Mas lá eles falam uma mistura, não é francês puro não.
E eu, monoglota, no limite da incredulidade:
– Se fosse no Canadá inglês aí já era mais complicado.
– Eu falo inglês também.
– Sério?
Telefonou-me pouco antes do carnaval, voz embolada de medicamento, para me dizer que, de todas as pessoas que conhecera, eu era a única com quem havia mantido uma amizade desde nossos 8 anos de idade e nunca havíamos brigado! Não recebo este comentário, agora que ele se foi, como uma despedida, mas, antes, como uma declaração derradeira de que, apesar de tudo, nós tínhamos experimentado uma forma de amizade que ele, que conhecia a Ética a Nicômaco, sabia só ser possível na ‘simpatia entre as almas’”.
O que dizer depois de tão brilhante evocação? Concluo, pelo menos por enquanto. No fim do ano passado, presenteei Djalma com o romance “O filho renegado de Deus”. Quando o encontrei uma semana adiante, ele me disse: “Urariano, o teu livro é sério. Eu vou arrumar umas coisas minhas primeiro antes de começar a leitura”. Ele se preparava para o mergulho, me disse. E mais não disse, pois bem sei hoje que ele próprio já havia começado a mergulhar em outros abismos. Ele já começara a partida sem volta. Mas todos nós, com a nossa mania de assuntos mais leves, brincalhões, nem notávamos.
O que vale dizer, ao fim: a vida é mesmo pesada, amigo Djalma. Até hoje, quando vou caminhar em Olinda, eu sinto a sua falta na paisagem. Olho e respiro fundo. É como você bem disse em seu livro datilografado: às vezes a gente nem lembra. Mas não esquece.
*Urariano Mota é escritor e jornalista pernambucano. Colunista do Portal Vermelho