Gustavo Guerreiro: A defesa do Atlântico Sul

Por *Gustavo Guerreiro

No dia 2 de abril, completaram-se 33 anos do início do conflito entre Argentina e Inglaterra pelo controle das Malvinas. Marcando a passagem da data, o governo inglês declarou que a Argentina prossegue como “uma ameaça viva” por pretender reaver o território, o que justifica o aumento do orçamento militar britânico para a defesa do arquipélago. Paralelamente, a potência europeia programa a exploração de petróleo em área oceânica a 200 km do território.

Não se trata de um contencioso isolado no cenário do Atlântico Sul, fruto de cobiça por recursos naturais. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) regula-se por documento de caráter doutrinário intitulado “Uma Europa segura num mundo melhor”, de 2003, onde surge o conceito de “segurança multidimensional”, cuja nefasta discricionariedade exprime simultaneamente uma atitude hegemônica, disfarçada de “combate ao terror”, e esquizofrênica, ao considerar países não alinhados como potenciais ameaças, o que ocorreu recentemente com a Venezuela.

Na América do Sul, a instalação de bases militares dos EUA em território colombiano e a reativação da IV Frota estadunidense, cuja função é vigiar os mares do Atlântico austral, indicam a presença intimidante das potências mundiais. Na África, a situação é ainda mais delicada. O aumento da insegurança em áreas como o Delta do Rio Niger, o Golfo de Benin e Cabinda, a invasão do Mali pelo Exército francês em 2013 e o anúncio do envio de tropas estadunidenses para 35 países africanos são travestidos de uma guerra sagrada contra o “arco ameaçador” de extremismo islâmico. O intuito escamoteado é o domínio de riquezas nacionais, sobretudo minérios, resultado da crescente rivalidade com a China.

A cooperação Sul-Sul na bacia do Atlântico emerge, assim, como alternativa de países menos desenvolvidos frente à atitude imperialista dos EUA e aliados. Os países sul-americanos e africanos constituíram em 1986 a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (Zopacas) e denominaram este espaço oceânico como “zona pacífica e livre de armas nucleares e processos de militarização externos”, conforme documento de sua criação. A Zopacas se constitui no espaço oceânico menos militarizado e nuclearizado do planeta. Mesmo com ameaças externas, a relação entre os dois continentes tende a se concentrar na cooperação e no desenvolvimento socioeconômico. O discurso utópico da horizontalidade e da solidariedade entre nações esbarra em novos desafios impostos a partir um amplo espectro de questões, como segurança e defesa regional, respeito às normas internacionais e resolução de conflitos. Enfim, um caminho que busca o diálogo e a negociação em lugar do uso da força.

No modesto intercâmbio comercial entre os dois continentes, têm prevalência potências regionais como Brasil e África do Sul. A atuação desses países emergentes do Brics é parte de uma estratégia mais ampla de projeção global, de ampliação de sua influência em assuntos mundiais e fóruns multilaterais.

Apesar de discutível do ponto de vista conceitual, ganha força o discurso do Atlântico Sul como espaço geopolítico com identidade própria. A construção dessa identidade não se dá somente por uma agenda econômica e militar, mas também por esforços comuns no enfrentamento de novas ameaças externas que avançam sobre os recursos naturais, especialmente o petróleo.

A sanha imperialista que já atingiu a África dá sinais de que alcançará a América Latina. Além dos exportadores tradicionais, como Venezuela e Nigéria, reservas de energia fóssil estão surgindo no Brasil, Argentina, África do Sul, Angola e em outros países da África Ocidental. O Atlântico Sul, como espaço fornecedor de energia, pode desempenhar um papel crucial na política global de segurança.

Os esforços visando reforçar a aliança Sul-Sul são esparsos e descontínuos. A Zopacas cumpre um papel importante na neutralização de iniciativas dos EUA e aliados (como seria, por exemplo, a criação de uma espécie de Organização do Tratado do Atlântico Sul) destinadas a consolidar sua hegemonia imperial. Como disse o sociólogo alemão Norbert Elias, “só existe uma possibilidade de um Estado com maior potencial de violência ser impedido de explorar ao máximo sua porção de poder relativo: ser reprimido por outro estado equivalentemente forte ou por um grupo de Estados que consiga controlar as rivalidades entre si”.

*Gustavo Guerreiro é Mestre em sociologia e pesquisador do Observatório das Nacionalidades

Fonte: O Povo

Opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as opiniões do site.