Há 15 anos FHC e a mídia reeditavam Gonçalves Dias: meninos, eu não vi

Em poucas palavras, centenas de jovens estudantes, indo ao encontro dos índios de diversas aldeias para marcharmos juntos e embandeirados, para a praça da celebração dos 500 anos, fomos cercados e inicialmente atacados com bombas de gás e borracha, cassetete e máscara, imobilizados no chão, algemados e presos.

Por Rilton Primo*, especial para o Portal Vermelho

Artigo Rilton Primo - Reprodução

Alguns estudantes quase conseguiram escapar da violência direta pulando cercas de arame farpado e ultrapassando um portão de acesso lateral à aldeia dos Pataxós, mas caíram em ribanceiras e emboscadas da polícia pelos outros portões de acesso. Uns 150 presos. Outros tiveram mais sorte. Depois soubemos, a mídia noticiava que vândalos, baderneiros, invadiram uma aldeia Pataxó.

Ao que se soube, armas de fogo foram disparadas, um índio foi atingido e toda a aldeia ergueu-se, sob a agitação dos próprios policiais, contra os supostos estudantes agressores. A imprensa noticiou que os arruaceiros já tínham feito ao menos uma vítima. A aldeia converteu-se em um lugar em alerta defensivo à morte. Não tivemos tempo, como agora, passados quinze anos do ocorrido, de lembrar o sentido subliminar dos versos à bravura do I-Juca Pirama de Gonçalves Dias, o revivemos à flor da pele:

No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos – cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d’altiva nação;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.
São rudos, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
Condão de prodígios, de glória e terror!
[…]
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo tupi.
Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.
 
Fomos perseguidos, ao que nos pareceu, por todos os lados, dentro do mato fechado, entremeado por cercas, encalçados por índios armados de porretes, tacapes, gritando "nós não somos animais!" Isto por uns caminhos. Pelos outros acessos, cercas além, pelotões com escudos e armas, rindo-se e atiçando: "Parados! As saídas estão bloqueadas! Vamos pegar vocês! Vocês não têm como escapar!". A solução foi tentar nos dispersar em grupos menores e testar opções. Mas de pouco adiantou; desde cedo estávamos sendo monitorados por helicóptero que voava baixo, estranhamente, com metralhadoras enormes empunhadas.
 

Mergulhamos alguns até o nariz em um rio estreito cheio de vegetação e seguimos seu curso até uma praia doce aparentemente deserta. Quando decidimos evadir por ali todos os que sobramos, outros jovens em fuga surgiram da mata e se atiraram na praia pedindo socorro, com índios adultos em seus calcanhares, armados de porretes enormes, pintados de vermelho, nervosos, vociferando, indignados, quando decidimos todos avançarmos sobre os que se lançaram à praia, para evitar o pior, gritando que estávamos ao lado deles, que não tínhamos sido nós que atiramos no índio, que estávamos fugindo do ataque dos policiais e que apenas queríamos saber qual era o caminho mais próximo para fugirmos para o litoral, ao que um deles apontou um sendeiro entre os arbustos e, por um instante, conteve a ira dos demais. Fomos todos, imediatamente. Chegamos a uma estrada de barro.

Um destacamento completo da polícia com escudos estava de emboscada, em formação, nos aguardando em silêncio, a apenas uns cinquenta metros. Achamos que fomos entregues de bandeja, traídos pelos índios, mas logo vimos que todos fomos enganados. Os índios não mentiram. Era a saída. Ali tudo parecia invertido ao inverso, tínhamos reconquistado a confiança dos Pataxós, mas eles mesmos viram que nos colocaram em uma situação indefensável e nem eles podiam fazer mais nada por nós.

E os campos talados,
E os arcos quebrados,
E os piagas coitados
Já sem maracás;
E os meigos cantores,
Servindo a senhores,
Que vinham traidores,
Com mostras de paz.
Aos golpes do imigo,
Meu último amigo,
Sem lar, sem abrigo
Caiu junto a mi!
Com plácido rosto,
Sereno e composto,
O acerbo desgosto
Comigo sofri.
 

Esperaram todos nos reunirmos novamente, sem dar um passo. Quando os últimos chegaram, começaram a marchar lentamente em nossa direção e alguém disse "ninguém corre, até o sinal!". Alguns segundos depois, nos certificarmos que tínhamos pernas para uma última tentativa de fuga para a praia, e alguém gritou "corre!" aí o pelotão disparou em nossa captura.

Corremos como feras pelos atalhos do matagal e, como foi possível, alguns atingimos a areia fofa da praia, caminhamos apressados por mais uns 50 metros até perdermos o fôlego e tentarmos olhar uma vez mais para trás. Os retardatários sumiram, ou não havia.

Em segundos, inesperadamente, o pelotão, com sua pesada parafernália, de coturnos altos pretos, pisous as areias da praia e já não tínhamos por onde ir a não ser areia em frente, até uma praça de acesso à cidade de Cabrália, a uns 300 metros adiante.

Nos orientamos a: 1º nos subdividirmos em casais ou, no máximo, três pessoas. 2º nos desfazermos de camisas vermelhas, bonés, adesivos e nos mesclarmos com qualquer possível turista ou nativo. 3º comprarmos cocos, águas, nos dispersamos e alcançarmos a praça mais adiante à direita, antes de sermos alcançados por eles, que já não mais corriam apenas andavam. Estava nos aguardando outro pelotão, como presumimos. Mas não se sabia mais quem era quem. Viramos turistas entre outros. Decidiram não abordar todos os passantes da celebração. Passamos a um metro deles e não puderam fazer nada. Quinhentos anos. Navios de guerra da marinha estavam fundeados na costa e representantes de Portugal viriam.

Sempre o céu, como um teto incendido,
Creste e punja teus membros malditos
E oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.
 

Tentamos alcançar o imóvel onde estavam hospedados todos os militantes desde a véspera. A casa tinha dois andares e estava completamente cercada por um cordão de isolamento armado, viaturas e caminhões. Demos meia-volta e fomos pela praia, depois pelas estradas até a cidade de Porto Seguro, tentando ligar para os organizadores do movimento, o advogado de plantão, os familiares. Poucos escaparam conosco. Soubemos das prisões e do cenário preocupante para os familiares todos.

Os que enfrentaram pacificamente o ataque e permaneceram indefesos no asfalto geraram cenas incríveis de estudantes algemados sentados no chão, índios ajoelhados e deitados sendo indiferentemente ultrapassados por atiradores fardados, fotógrafos sendo arrastados pelas tranças, políticos perdendo os sapatos e rolando pelas encostas. Pipocos mil e voos rasantes.

Chegando em Porto Seguro, fomos a uma espécie de shopping onde havia um restaurante grande, tipo uma churrascaria, onde todos estavam almoçando aterrorizados com as notícias, repetidas a cada 5 minutos, no plantão do jornal, em vários telões, com mais ou menos estes conteúdos, entre outros: "Estudantes vândalos invadem aldeia, atacam índios e são presos pela polícia".

Chegamos a pensar em subir nas mesas e dizer que éramos nós, que era tudo mentira, mas ainda estavam à nossa procura, havia mais policiais na ronda do shopping, seríamos enfim capturados ou resistiríamos à prisão, e, na confusão, receávamos que esta história seria mais uma vez reeditada pela imprensa. Morgana Gomes, em matéria especial da época no Portal Ciência e Vida, noticiou que o então chefe da Casa Militar do governo baiano, Cristovam Rios, afirmou que as prisões foram feitas sob a acusação de alteração da ordem pública e que a operação foi feita com a "aquiescência e o conhecimento" do general Alberto Cardoso (Segurança Institucional), conforme divulgado: “Porém, [replicou Morgana Gomes] quem presenciou toda essa situação, […] afirma que a reação policial foi violenta demais para um país que se diz democrático.” José Pinto, ex-preso político e torturado, pasmou: “fomos parados e cercados, numa verdadeira batalha campal. Helicópteros sobrevoavam a estrada, a poucos metros do chão."

Assim o Timbira, coberto de glória,
Guardava a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi.
E à noite nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Tornava prudente: "Meninos, eu vi!".
*Rilton Primo é economista atuante na Investigação Operacional (ramo da matemática aplicado à tomada de decisões), consultor do Centro de Estudios por la Amistad de Latinoamérica, Asia y África – Ceala