Joan Edesson: Audifax Rios, caboclo ribeirinho do Acaraú

Por *Joan Edesson

Sábado último. Rebanhos de peixes sangravam a noite. Escamados em azuis, vermelhos, amarelos, verdes, cores vivárias, milhares de peixes sangravam a noite, em fogo na anca direita um enorme “A”, inconfundível marca do dono. Acarás, certamente, peixes antigos, moradores do Curral Velho. Secundavam-nos enormes garças pintadas de manhã, daquelas que deram nome às águas milenares; carnaúbas reais, sóis risonhos, serras, um rio único e inconfundível; um cardume de búfalos reproduzindo-se sem parar; e gentes, gentes a não mais poder, beatos, índios, caboclos, canoeiros, pescadores. Multidões de viventes sangravam a noite, no sábado último.

Só no dia seguinte é que soube: o índio velho da Licânea, o caboclo da Santana, o canoeiro do Acaraú, dormira pela última vez. Como gostaria, certamente, na sua velha casa, no fim de tarde de um sábado modorrento, após contemplar pela última vez o casario ancião semeado nas margens do rio.

Os rebanhos que sangravam aquela noite corriam tristes, lágrimas nos grandes olhos arregalados (outro traço inconfundível), órfãos, da mais dura e dolorida orfandade que pode haver.

Algumas marcas únicas: o sol (olho aberto, riso solto), a carnaúba, o rio (águas vertendo por caminhos muito, muito velhos dentro dos sertões). Impossível não reconhecer o traço onde se o veja, nem precisamos procurar a marca de ferrar. A cor, o traço, únicos, inimitáveis.

Outras marcas: peixes em profusão, mixórdia de cores; garças feitas por inteiro de luz; bois de enormes chifres retorcidos. Mais importante que tudo: pessoas, rostos, faces rugosas de índios, pescadores, agricultores, cangaceiros, beatos, Antônio Vicente, Cícero Romão, gentes diversas do sertão do Ceará. Rostos de dor, faces de sofrer, nos olhos a secular resistência sertaneja.

Artista do traço, artista da palavra. No texto leve, a presença constante de Licânea do Rio das Garças e seus infindáveis personagens.

Boêmio de largos anos, andarilho de becos e atalhos e praias, sabedor dos segredos da cidade, era amante, intérprete e confidente de Fortaleza, não há dúvidas, apaixonado por ela, quase uma vida batendo pernas por suas ruas.

Mas seu coração… Ah! Seu coração… Pulsava desenfreado pela Santana, pelas águas do rio Acaraú, pelos carnaubais, pelos canoeiros que cruzam o rio, pelo casario, pelas ruas do Curral Velho, pelas pessoas da Licânea.

Seus desenhos, seus textos, em tudo está a imagem de Santana. Não era ele um morador da cidade, mas o contrário, a cidade é que habitava nele, grudada em tudo que fazia.

Deve ter adormecido feliz, na tarde azulada. Mesmo que o Acaraú, entristecido por seguidos anos de seca, desça com tão pouca água. Na tarde azulada, na sua casa, o caboclo sertanejo adormeceu pela última vez, feliz na sua completude e na sua inquietude de artista multifacético.

Dorme em paz, Audifax, dorme em paz. Ficamos por aqui, vendo passar os búfalos de Campanário, vendo passar os búfalos de José do Egito Arcanjo da Anunciação, o Major Zegito, a doer sozinhos, contemplando as parcas águas desse inverno fraco descendo pelo leito do Acaraú.


*Joan Edesson é doutorando em Educação Brasileira na Faculdade de Educação da UFC e membro do Comitê Estadual do PCdoB-CE.

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