A novidade do voto turco, uma esperança para a região

Chegam da Turquia boas notícias. De fato, o extraordinário resultado conseguido pelo partido HDP (Partido Democrático Popular), juntamente com a derrota do partido do presidente Erdogan (AKP – Partido da Justiça e do Desenvolvimento), sinaliza um possível recuo do projeto de desestabilização da região que nos últimos anos tiveram na Turquia de Erdogan um dos principais protagonistas.

Por Maurizio Musolino*, em seu blog

Demirtas

A Turquia se confirma, como testemunha a política destas últimas décadas, como uma nação plena de complexidade e, portanto, a leitura do voto do último domingo (7) não pode ser desvinculada do contexto. Quero recordar uma das maiores contradições que desde sempre caracteriza o panorama turco: as forças políticas que majoritariamente se pronunciam favoráveis ao laicismo e à independência nacional são as mesmas que durante décadas têm feito importantes conluios com os setores militares que sempre influenciam enormemente a vida política do país. O CHP (Partido Republicano Popular), ligado à tradição Kamalista, derivado do nome de Kemal Ataturc, outrora o campeão da laicidade do Estado e da independência turca, é de fato historicamente ligado aos setores militares que são manchados por golpes de Estado sanguinários e fascistas. A confirmação disto é a feroz luta pelo poder desencadeada depois da primeira vitória do partido de Erdogan em 2002, entre o partido religioso ligado à Fraternidade Muçulmana e os setores militares temerosos de perder o controle do país.

Os primeiros anos do governo do AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento), foram marcados por alguns aspectos positivos, como demonstram os acordos com a Síria e o Irã para criar uma zona franca comercial entre os três países, a realização de reais tratativas com os curdos e uma parcial marginalização dos generais e chefes do estado maior que pretendiam exercer uma espécie de supervisão sobre as ações do governo. Naqueles anos se registra também um denso diálogo entre Erdogan e os países do Brics, coisa que alarma enormemente os estados maiores da Otan que não ficam parados e tomam medidas em sentido contrário.

Mas, de fato tudo mudou depois de 2009, quando no Cairo a Fraternidade Muçulmana (da qual o partido de Erdogan faz parte) assina um veraddeiro pacto com o setor da Casa Branca representado pela então secretária de Estado Hillary Clinton. Desde então, a política de Ancara sofre uma mudança de 180 graus. Começam as operações para desestabilizar a Síria de Assad, os militares mais ligados à Otan (a Turquia é pelo número de soldados o principal país da Aliança Atlântica) reconquistam prestígio e poder, as relações com os curdos são rompidas e são curadas as feridas que tinham sido abertas com Israel pelo massacre da embarcação Mari Marmara.

Assim, a Turquia se torna o eixo da desestabilização síria, ali são adestrados os rebeldes que vão combater contra Damasco e por ali passam as armas e os homens que em pouco tempo permitem ao Isis e às variantes da Al Qaeda o crescimento do peso militar e da capacidade de controlar fatias do Estado sírio. Uma estratégia política que enterra as ambições neo-otomanas de Erdogan e coloca o país como a principal linha de frente dos interesses dos Estados Unidos na região. Interesses que não se detêm diante de nada, nem mesmo quando o Isis assume o controle de Kobane e o mundo assiste consternado ao massacre de mulheres e homens curdos, sem que a Turquia, a poucos quilômetros distante da cidade síria, mova um dedo. Na verdade, o governo turco naqueles dias estava empenhado em bloquear seja o ingresso das brigadas curdas, provenientes do Iraque e das regiões curdas do país, que queriam defender os seus irmãos, seja a população de Kobane que tentava fugir do horror do Isis.

Provavelmente, um dos motivos da derrota de Erdogan deve ser buscado exatamente nesta opção feita por ele. O partido HDP consegue, de fato, pela primeira vez, conquistar a maioria esmagadora dos votos curdos, tirando de Erdogan aquela reserva de apoio clientelístico que naquela região era obtido com falsas promessas e jogos de poder.

A questão curdo-turca tem antiga origem, são necessárias páginas e páginas para resumí-la, limito-me então a lembrar que a negação de um Estado curdo indpendente passa pelos acordos de Sykes- Picot, quando as potências vencedoras da Primeira Guerra Mondial dividiram entre si o ex-Império Otomano tendo em mira exclusivamente os seus interesses econômicos e geopolíticos e ignorando as aspirações dos povos que ali viviam.

Mas o segredo da vitória do partido de Demirtas, jovem curdo proveniente da experiência dos movimentos pelos direitros civis, deve ser encontrado sobretudo na capacidade do partido HPD de ligar os interesses do povo curdo aos interesses mais difusos, como aqueles por uma democracia real, pelo respeito ao meio ambiente e pelos direitos civis e trabalhistas. Um programa que propunha, no quadro turco, o princípio da Rojava** e o protagonismo das mulheres. Um percurso também repleto de complexidade que liga o resultado turco ao desejo de mudanças de tantos jovens que há meses se manifestam na Grécia e na Espanha. De fato, Demirtas é olhado por aqueles movimentos que lotaram a praça Taksis há apenas um ano e que com seu protesto conseguiram fazer tremer o poder de Erdogan, que então parecia imbatível.

O que se espera hoje, depois do voto do domingo passado? É difícil fazer prognósticos. Provavelmente o partido de Erdogan fará pressões sobre uma fatia de deputados da direita organizada no MHP (Partido de Ação Nacionalista) para formar um governo de coalizão que não ponha em questão as ambições do presidente da República. Não se pode excluir nenhuma solução e seguramente a complexidade turca trará novas surpresas. Mas ao pôr de joelhos o sultão Erdogan, é lícito esperar que também as ambições dos califas e neo-sátrapas possam recuar e talvez a história daquela parte do mundo dê um giro rumo a uma solução mais justa e democrática.

*Jornalista italiano, especialista em Oriente Médio

** Em 2013, os curdos da Síria anunciaram a organização de três regiões administrativas no norte do país, chamadas de “cantões”: Afrin, Jazira e Kobane. Separados geograficamente em meio a um território conflagrado pela guerra, os cantões formam a região de Rojava – palavra que, em curdo, significa “oeste”.

Rojava tem uma população de cerca de 3 milhões de pessoas, espalhadas por doze cidades. Enquanto se organizam para lutar contra o Estado Islâmico e unificar os cantões, os curdos estão criando uma própria forma de organização social, política e econômica na região, baseada no confederalismo democrático. (NT)

Tradução de José Reinaldo Carvalho para o Blog Resistência