Crise hídrica: a solução está no estudo das bacias hidrográficas

Há 48 anos, desde que criou a disciplina de hidrologia e manejo de bacias hidrográficas, Osvaldo Ferreira Valente afirma que convive com “a frustração de ver a produção de água ainda ser tratada com alta dose de empirismo e de soluções do tipo ‘salvadoras da pátria’”.

Cantareira

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, ao ser questionado sobre como resolver a crise hídrica que já atinge algumas cidades brasileiras, o engenheiro florestal é categórico ao sugerir que seja feito um “estudo hidrológico do comportamento das bacias formadoras do Sistema, incluindo informações sobre geologia e solos e procedimentos adotados no uso da terra”.

Contudo, comenta, ainda há quem repita “aquele conselho tão recorrente e perigoso para quem pergunta o que fazer para salvar uma nascente e recebe a resposta simplista: cerque-a e plante árvores”. “Se isso fosse verdade”, pontua, “seria facílimo e barato resolver os problemas de abastecimento de água para as nossas variadas necessidades”.

De acordo com Valente, depois de um estudo hidrológico para saber como se dá o comportamento das bacias hidrográficas, é preciso “considerar os aspectos socioeconômicos dos ecossistemas familiares, principalmente dos que ocupam áreas rurais. Depois disso, fixar metas de produção de água para os próximos cinco anos e, a partir delas, dimensionar as estruturas de recarga artificial de aquíferos”.

Osvaldo Ferreira Valente explica ainda que as “crises de água existem porque ainda não respeitamos os conceitos de hidrologia referentes às pequenas bacias, onde tudo começa, e não aplicamos os princípios e as tecnologias necessárias para os seus manejos”. Segundo ele, é preciso explicitar que “a bacia hidrográfica é a responsável por receber e processar os volumes de água recebidos das chuvas. E que é dela, portanto, a responsabilidade de manter os cursos d’água, seja ele um córrego, riacho, ribeirão ou um grande rio. Essa falta pode ser a explicação para a concentração de atenções nas calhas dos cursos d’água em si, ou no máximo em suas áreas ciliares, esquecendo que eles são produtos dos comportamentos das bacias que os formam. Por isso, eu sempre estou cobrando que as pessoas deixem de mergulhar nos rios e passem a ‘mergulhar’ nas suas bacias”, salienta.

Segundo o engenheiro, apesar das iniciativas de reflorestar o Sistema Cantareira, “dificilmente conseguiríamos aumentar substancialmente a cobertura florestal nas bacias” que formam o Sistema. “Talvez, com o novo Código Florestal, possamos, em alguns anos, passar a cobertura atual de 21,5% para 28%. Tal aumento seria pouco relevante para a elevação da produtividade de água. Há até o risco de, num horizonte de 30 anos, o aumento de a cobertura florestal provocar uma diminuição da produtividade”, explica.

Osvaldo Ferreira Valente é engenheiro florestal, especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas. É professor titular, aposentado, da Universidade Federal de Viçosa – UFV e autor de dois livros sobre o assunto, intitulados Conservação de nascentes – Produção de água em pequenas bacias hidrográficas e Das chuvas às torneiras – A água nossa de cada dia. Depois de aposentado, tem dedicado o seu tempo em consultorias de projetos de manejo de bacias, principalmente na capacitação e treinamento de equipes envolvidas, e na divulgação científica de conhecimentos relacionados com a produção de água.

Confira a entrevista.

IHU On-Line
– Quais são as razões das crises de abastecimento de água que se vê no Brasil nos dias de hoje?

Osvaldo Ferreira Valente – Com exceção dos habitantes do Semiárido, os brasileiros foram criados sob o conceito de que água era um bem abundante, livre e sem valor econômico. A Lei 9.433, de janeiro de 1997, a Lei das Águas, procurou mudar esse sentimento, dizendo, em seu primeiro artigo:

Item II – a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico.

Item V – a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

Mas talvez tenha faltado dizer, mais explicitamente, que a bacia hidrográfica é a responsável por receber e processar os volumes de água recebidos das chuvas. E que é dela, portanto, a responsabilidade de manter os cursos d’água, seja ele um córrego, riacho, ribeirão ou um grande rio. Essa falta pode ser a explicação para a concentração de atenções nas calhas dos cursos d’água em si, ou no máximo em suas áreas ciliares, esquecendo que eles são produtos dos comportamentos das bacias que os formam. Por isso, eu sempre estou cobrando que as pessoas deixem de mergulhar nos rios e passem a “mergulhar” nas suas bacias.

É claro que saneamento é importante, com combate contínuo à poluição das águas. É claro que a mata ciliar é importante, como proteção à biodiversidade e como barreira de acesso direto aos leitos. Mas dois aspectos devem ficar bem claros: primeiro, que a poluição só poderá ser um problema se existir água correndo no leito; segundo, que as áreas ciliares não podem ser responsabilizadas pelas quantidades de água produzidas pelas bacias, pois elas representam no máximo 10% das superfícies das mesmas.

Em resumo, as crises de água existem porque ainda não respeitamos os conceitos de hidrologia referentes às pequenas bacias, onde tudo começa, e não aplicamos os princípios e as tecnologias necessárias para os seus manejos.

IHU On-Line
– Que elementos não estão sendo discutidos com a devida prioridade e cuidado quando se trata das crises de abastecimento de água?

Parte da resposta já foi dada na pergunta anterior. Mas vale a pena acrescentar que no primeiro artigo da Lei 9.433, o Item I afirma ser a água um bem de domínio público. O que quer dizer isso? Que a água que nasce e corre pela propriedade rural de alguém não lhe pertence e que quaisquer coletas feitas devem estar previamente autorizadas pela Agência Nacional de Águas – ANA, ou por seus representantes estaduais. É o princípio da outorga. Ora, se o poder público chamou para si a propriedade do recurso, inclusive cobrando por isso, quando o consumo não for considerado insignificante, cabe a ele cuidar do mesmo. Pelo menos oferecendo suporte técnico e financeiro aos donos das propriedades onde nascem e correm os pequenos cursos d’água.

Os comitês e as agências de bacias, também criadas pela Lei 9.433, ainda estão descobrindo a melhor maneira de atuarem. Uma dificuldade é que elas têm de operar no sistema de licitação e aí o processo fica muito frio para a lida com as áreas rurais. Ganham empresas que não têm nenhuma ligação com o meio social e econômico e não conseguem estabelecer a empatia necessária com as comunidades. Acabam o trabalho, desmancham os acampamentos e vão embora. Em pouco tempo todos os trabalhos desenvolvidos estarão perdidos. O sucesso só vai ser alcançado quando as atividades forem desenvolvidas sob a metodologia da extensão rural. Outro fato preocupante é a concentração de recursos arrecadados no saneamento, campo dominado por empresas de engenharia que estão muito mais estruturadas para fazer pressão junto às agências.

Os comitês precisam, também, buscar mais assessoria especializada em produção de água para estabelecerem as prioridades de aplicação dos recursos arrecadados com a cobrança pelo uso da água. Assessoria em hidrologia aplicada às pequenas bacias, em geologia e solos, em tecnologias de manejo de ecossistemas hidrológicos e em conscientização e capacitação de ecossistemas familiares que interagem com os hidrológicos. A hidrologia aplicada a pequenas bacias (hidrologia de produção de água) tem especificidades que não são contempladas pela hidrologia comumente ensinada na maioria dos nossos cursos de engenharia, que se concentra na análise de vazões de cursos d’água.

IHU On-Line
– O senhor sinaliza que, ao contrário do que muitos especialistas estão afirmando, o reflorestamento não é a única solução para aumentar a produção de água de mananciais de abastecimento. Qual é a importância do reflorestamento nesse processo e quais são as alternativas?

É evidente a importância da floresta natural na conservação ambiental, na manutenção da biodiversidade e no oferecimento de variados serviços ambientais. Mas tudo isso não pode ser confundido com um comportamento sempre positivo na produção de quantidade de água. Aquelas imagens de nascentes e córregos brotando ou correndo límpidos pelo interior de florestas estão perfeitamente de acordo com qualidade de água, mas nem sempre com quantidade produzida.

Em artigo recente, de minha autoria, publicado pelo Jornal da Ciência – SBPC e republicado pelo Portal EcoDebate em 09/07/2015, sob o título de “Florestas e produção de água”, tive a oportunidade de discutir o assunto com base em duas teses de doutorado e outra de mestrado, defendidas na USP. São dados científicos, portanto, mostrando que as produtividades de água de bacias cobertas por florestas naturais, estudadas nas teses, variaram de 15,43 L/Km2.s a 2,4 L/Km2.s, nos meses de agosto, que são meses centrais dos períodos de estiagens nas regiões estudadas. Fiz questão de usar as teses para não deixar dúvidas sobre a confiabilidade das informações. As bacias estudadas estavam cobertas com florestas secundárias e com mais de 30 anos. A bacia que produziu 2,4 L/Km2.s está com vazão superficial zerada em agosto, nos últimos três anos. Há informações um pouco empíricas e, portanto, servindo apenas como notícia, de que ela produzia 6,28 L/Km2.s, na década de 1960, quando a bacia estava começando o processo de regeneração natural.

Há muitos trabalhos científicos mostrando que florestas naturais possibilitam velocidades de infiltração que podem chegar a mais de 60 mm/h, tendo, assim, capacidade de evitar enxurradas na maioria das chuvas intensas por ela recebidas. Por que, então, a baixa produtividade de 2,4 L/Km2.s, ou até de zero?

Tudo vai depender de disponibilidades de água no solo e do balanço de energia do meio. Numa área degradada, ou de culturas agrícolas que explorem pequenas profundidades de solo, poderá haver transferência de muita energia para a floresta que, ao explorar camadas mais profundas do solo, poderá provocar altas taxas de evapotranspiração, dificultando o armazenamento de água nos aquíferos subterrâneos. É como se a área florestal se comportasse como uma ilha consumidora da energia não utilizada pelas áreas vizinhas. O assunto é, portanto, muito mais complexo do que parece à primeira vista. A localização e a implantação de florestas para produção de água devem ser precedidas de estudos sobre balanço de energia na região.

Se os reflorestamentos não se mostrarem confiáveis para aumentar a produção de água, poderemos adotar tecnologias de abastecimento artificial de aquíferos, tais como os terraços de bases estreitas nas encostas, as caixas de captação de enxurradas nas áreas mais torrenciais, ou ao longo de estradas, e as barraginhas, quando em áreas mais planas ou ligeiramente onduladas. Também práticas vegetativas, como os cultivos em contorno, a rotação de pastagens e os plantios diretos. Mas todas essas tecnologias precisam ser dimensionadas e localizadas sob os princípios hidrológicos aplicados a pequenas bacias hidrográficas.

IHU On-Line – Para além do reflorestamento, o que seria uma alternativa para revitalizar o Sistema Cantareira?

No artigo mencionado na resposta anterior há referências a propostas que correm na mídia e que pretendem resolver a questão com reflorestamentos. Mostrei, lá, que dificilmente conseguiríamos aumentar substancialmente a cobertura florestal nas bacias que formam o Sistema Cantareira. Talvez, com o novo Código Florestal, possamos, em alguns anos, passar a cobertura atual de 21,5% para 28%. Tal aumento seria pouco relevante para a elevação da produtividade de água. Há até o risco de, num horizonte de 30 anos, o aumento de a cobertura florestal provocar uma diminuição da produtividade. Este perigo foi mostrado em tese recente de doutorado na USP.

Estudo hidrológico

O que fazer, então? Primeiro, um estudo hidrológico do comportamento das bacias formadoras do Sistema, incluindo informações sobre geologia e solos e procedimentos adotados no uso da terra. Segundo, considerar os aspectos socioeconômicos dos ecossistemas familiares, principalmente dos que ocupam áreas rurais. Depois disso, fixar metas de produção de água para os próximos cinco anos e, a partir delas, dimensionar as estruturas de recarga artificial de aquíferos, já mencionadas na resposta anterior. Programar e desenvolver, também, programas de melhorias de procedimentos de cultivo da terra. Tais programas devem ser implantados com metodologias de extensão rural, ou seja, por instituições ou organizações que detenham tal expertise e não por empresas de engenharia especializadas em execução de obras de infraestrutura.

Mas não é só o meio rural que deve ser responsável pelo abastecimento dos aquíferos. As áreas urbanas também podem colaborar, facilitando infiltração. O geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos, grande estudioso das inundações urbanas, tem publicado artigos e livro com propostas para aumentar a infiltração de água nos espaços das cidades. Recentemente ele teve oportunidade de expor suas ideias no congresso da SBPC, em São Carlos-SP (com resenha publicada pelo EcoDebate, em 17/07/2015). Ele fala em sarjetas drenantes, em calçadas com áreas verdes, em adoção de pisos permeáveis, etc. Muitas cidades brasileiras já obrigam a construção de cisternas de infiltração junto às construções.

Produtividade da água

É fundamental, para sucesso da operação, que deixemos de lado aquela ideia de que basta cercar as áreas de preservação permanente em torno das nascentes e dos cursos d’água e plantar árvores, para o problema estar resolvido. Em algumas situações, a mata ciliar que passar a se desenvolver poderá até provocar diminuição de vazões. Isso se nada for feito na bacia para compensar o efeito de uma área que pode ser importante em questões ambientais, mas não garantidora de aumento de produtividade de água. Os volumes infiltrados nessas áreas são rapidamente drenados pelos cursos d’água; não ficam armazenados nos aquíferos até os períodos de estiagens. Por outro lado, nos meses secos, na maioria das regiões brasileiras, já há energia disponível no meio para provocar aumento da taxa de transpiração, lembrando que muitas dessas áreas ficam úmidas o tempo todo, por serem regiões de passagem de água dos aquíferos para as nascentes e cursos d’água. Podem garantir, portanto, suprimento contínuo de água para o fenômeno da transpiração.

Sei que esta minha análise poderá ser contestada por muitos e eu estou aberto ao contraditório, desde que ele venha consubstanciado por trabalhos científicos, com valores de vazões medidas antes e ao longo do desenvolvimento da mata ciliar.

IHU On-Line – Em que consiste sua proposta de que, dada a demanda para resolver a crise hídrica no curto prazo, deve-se armazenar água em represas e em reservatórios urbanos? Quais as vantagens desse procedimento?

Vamos começar analisando, por exemplo, o comportamento provável das bacias que compõem o Sistema Cantareira. Os 2.280 km2 do Sistema recebem das chuvas, em anos hidrológicos normais, em torno de três bilhões de metros cúbicos de água. A outorga para o abastecimento das áreas metropolitanas é de 36 m3/s. Isso representa o consumo de algo em torno de 1,2 bilhão de metros cúbicos por ano. Se for feito um bom trabalho de manejo das bacias envolvidas, será possível colocar 17% dos volumes de chuvas nos aquíferos, totalizando 0,5 bilhão de metros cúbicos, o que representa apenas 42% do consumo demandado. Portanto, a captação a fio d’água não daria conta do recado.

Quais são as alternativas para completar a demanda? Investir em represas com capacidades de acumulação suficientes para completar as vazões necessárias; investir em armazenamentos de água de chuva em reservatórios domésticos e industriais, visando aliviar o abastecimento das concessionárias.

O problema maior do Cantareira é estar localizado em cabeceiras de rios, que, hidrologicamente, não são capazes de produzir vazões compatíveis com grandes demandas, como a da região metropolitana de São Paulo. Tenho pouca simpatia pela reservação superficial, mas tenho que aceitá-la para São Paulo. Em inúmeras outras situações, espalhadas pelo território brasileiro, um bom trabalho de manejo de bacias hidrográficas será capaz de produzir o necessário para abastecimento das populações, sem reservação superficial.

IHU On-Line –
O senhor mencionou em artigo recente a necessidade de investir em tecnologias para aumentar a rugosidade das superfícies das bacias hidrográficas, o que dificultaria a formação das enxurradas e favoreceria a infiltração de água no solo. Que tecnologias são essas? Há exemplos de locais em que essas tecnologias foram aplicadas? O Brasil já dispõe delas?

As tecnologias já foram mencionadas nas respostas anteriores. Elas são capazes de diminuir a velocidade de escoamento superficial, dando tempo para que boa parte dos volumes recebidos pelas chuvas possa infiltrar no solo, primeira condição de ter aquíferos bem abastecidos. Vale lembrar que a curva de quantidade de água infiltrada eleva-se com o tempo.

Entre os anos 1999 e 2005, tivemos a oportunidade de testar várias dessas tecnologias na região de Viçosa-MG, com financiamento da concessionária de abastecimento da cidade (Serviço Autônomo de Água e Esgoto, SAAE-Viçosa), tendo conseguido, em alguns casos, até dobrar vazões de pequenas bacias em curto espaço de tempo. Esses estudos foram inclusive premiados pela Agência Nacional de Águas – ANA e estão disponíveis em um relatório que eu posso disponibilizar para quem tiver interesse.

A ANA também já vem financiando a aplicação dessas tecnologias em algumas bacias, através do seu programa chamado “Produtor de Água” (mais informações no site da Agência). Na região de Viçosa, a ANA já está financiando o segundo projeto, com objetivo de criar condições para o Pagamento por Serviços Ambientais – PSA.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

O manejo de bacias hidrográficas, ensinado em várias instituições do país, está aí para nos mostrar como a bacia deve ser organizada para receber os volumes de chuvas anuais e processá-los adequadamente, evitando cheias e inundações e armazenando água nos aquíferos para as demandas dos períodos de estiagens.

Tenho a satisfação de ter criado a primeira disciplina de “hidrologia e manejo de bacias hidrográficas” no país em 1967, efetivamente lecionada para alunos de engenharia florestal da então Universidade Rural do Estado de Minas Gerais, hoje Universidade Federal de Viçosa. Por outro lado, depois de 48 anos dedicados ao assunto, convivo com a frustração de ver a produção de água ainda ser tratada com alta dose de empirismo e de soluções do tipo “salvadoras da pátria”. Ainda sou obrigado a ouvir aquele conselho tão recorrente e perigoso para quem pergunta o que fazer para salvar uma nascente e recebe a resposta simplista: cerque-a e plante árvores. Se isso fosse verdade, seria facílimo e barato resolver os problemas de abastecimento de água para as nossas variadas necessidades.