Raimundo Rodrigues Pereira: Lava-Jato, um estudo de duas sentenças

No último dia 20 de julho, o juiz Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, a autoridade judicial supervisora do andamento da Operação Lava-Jato, a gigantesca investigação que tem como objetivo punir malfeitores diversos em ação na Petrobras nos governos petistas, publicou sua segunda sentença.

Por Raimundo Rodrigues Pereira, na revista Retrato do Brasil

Dilma - Retrato do Brasil

Esta atinge principalmente três dirigentes da Camargo Corrêa Construções e Participações (CCCP), braço de um dos maiores conglomerados industriais do país, no qual se incluem desde o controle integral da Alpargatas S.A., produtora das famosas sandálias Havaianas, a maior fabricante de calçados da América do Sul, até participações destacadas nos blocos de controle da maior geradora privada brasileira de energia elétrica, a Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL), da CCR, uma das grandes concessionárias de infraestrutura de transportes do mundo e do Estaleiro Atlântico Sul, a grande instalação de construção naval criada nos anos recentes em Pernambuco para produzir navios e sondas para a Petrobras. Na sentença de Moro foram condenados os dirigentes João Ricardo Auler, presidente do Conselho de Administração, Dalton dos Santos Avancini, diretor-presidente, e Eduardo Hermelino Leite (vulgo “Leitoso”, na sentença de Moro), diretor vice-presidente. Avancini e Leite foram condenados a 15 anos e dez meses de prisão, a serem cumpridos inicialmente em regime fechado. um estudo de duas sentenças.

Os crimes que lhes foram imputados são: “lavagem de dinheiro”, que teriam cometido 38 vezes; “corrupção ativa”, por terem repassado dinheiro ao ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa; e “pertinência a organização criminosa” organizada para “lavar o dinheiro sujo” obtido da Petrobras pela corrupção de seu diretor. Mas, pelo fato de terem feito as chamadas delações premiadas, Avancini e Leite tiveram suas punições reduzidas drasticamente. Como Auler, estavam presos no cárcere da Polícia Federal (PF) em Curitiba desde 14 de novembro passado. Leite fez a delação em duas dúzias de depoimentos e foi solto em 24 de março deste ano. Avancini fez o mesmo e foi solto uma semana depois.

Os quatro meses e uma semana de Leite e os quatro meses e duas semanas de Avancini na prisão da PF foram considerados suficientes para as partes das penas a serem cumpridas em regime fechado pelos dois. Desde a saída do cárcere da PF eles estão portando tornozeleiras eletrônicas e em regime de prisão domiciliar, no qual deverão ficar, no entender do redator deste texto, até 14 de março de 2016 (na sentença de Moro, ao que tudo indica por descuido, está escrito 14 de março deste ano, o que não faz sentido, visto que, naquela data, ambos ainda estavam presos na PF – em regime fechado, é óbvio). A partir daí, tanto Avancini como Leite deverão cumprir mais seis anos de pena, primeiro em regime semiaberto, com recolhimento domiciliar à noite e nos fins de semana, e, a partir de 14 de março de 2018, em regime aberto.

Com Auler, o caso foi outro. Ele foi solto graças a um habeas corpus concedido pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) no final de abril. A decisão, por três votos a dois, resultou de ação movida pelo advogado Alberto Toron, a pedido de Ricardo Pessoa, da UTC Engenharia, outro dos empresários encarcerados pela PF. E o benefício do habeas corpus obtido por Pessoa foi ampliado para outros oito dirigentes de empreiteiras – entre os quais Auler – que se encontravam na mesma situação, presos há mais de quatro meses sem julgamento. Auler foi o único dos três dirigentes da CCCP a se declarar inocente das acusações que lhe foram imputadas. Moro, no entanto, não aceitou as alegações apresentadas por seus advogados – e por ele pessoalmente, em defesa própria, quando interrogado por Moro.

O juiz o condenou a nove anos e seis meses de prisão, inicialmente em regime fechado. O que disse Auler a Moro no resumo desse depoimento feito na extensa sentença do juiz (150 páginas de texto)? Auler argumentou que não participou das operações de distribuição de propina. Reconheceu que, de fato, conhecera José Janene, o deputado do Partido Progressista (PP) do Paraná considerado o principal articulador do esquema que uniu a dupla Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef, indiscutivelmente as principais figuras do atual esquema de corrupção da Petrobras. Mas esse primeiro encontro, por volta de 2006, disse Auler, foi institucional: Janene era da Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados e ele, pela CCCP, estudava a construção de um oleoduto em São Sebastião, um porto marítimo no estado de São Paulo. Janene lhe teria apresentado Costa como “um homem dele” e de seu partido e solicitado doações eleitorais para esse partido, o PP. Auler diz que prometeu a Janene encaminhar o pedido para “quem de direito dentro da empresa”.

A partir desse encontro, não mais teria visto o deputado, até um incidente, muito citado na história da Lava-Jato e que seria a prova da truculência do líder do PP paranaense. Auler diz que, por volta de 2008, Janene lhe apresentou Youssef dizendo que a CCCP seria obrigada a pagar uma comissão pelos projetos da Diretoria de Abastecimento, chefiada por Costa, pelas obras na construção da Refinaria Presidente Getúlio Vargas (Repar), no Paraná, licitação que a CCCP tinha ganhado e estava começando a executar. Auler teria negado, mas, apesar disso, diz, Janene teria continuado a insistir no pedido. A certa altura, disse Auler a Moro, parou de receber Janene. E então, um dia, em 2009, o deputado, acompanhado de Youssef, conseguiu entrar no prédio da empresa, tentou passar por sua secretária e criou uma grande confusão, que só teria sido resolvida quando Auler saiu de sua sala e apresentou Janene e Youssef a seu colega de diretoria Eduardo Leite, dizendo que seria esse diretor o responsável por recebê-lo dali por diante. Moro quis saber, então, se Auler teria dado instruções a Leite para não ceder às pressões de Janene, ou mesmo se teria acompanhado os resultados dos contatos de Leite com Janene ou Youssef. Auler disse ao juiz que não fez nem uma coisa, nem outra.

Moro rechaça completamente essa versão de Auler. Escreveu, nos itens 430 a 437 de sua sentença, apresentada em 607 pontos numerados: “O relato é de todo inverossímil. O acusado João Auler admitiu que teria sido procurado por José Janene e Alberto Youssef em cobranças de propina. Ao invés de recusar simplesmente e enxotá-los, que seria o comportamento normal do homem probo, o acusado afirma que, após se desentenderem, os encaminhou ao acusado Eduardo Leite, em posição hierárquica inferior na empresa, para tratar desses assuntos. Segundo afirma, não teria dado qualquer orientação a Eduardo Leite para que cedesse à solicitação de propina ou para que não cedesse e depois do episódio sequer se interessou em saber dos desdobramentos, se Eduardo teria recusado ou aceito as solicitações. Aparentemente, o acusado, então vice-presidente da Camargo Corrêa, não tinha nada a ver com o assunto, sendo indiferente ao fato da Camargo pagar ou não a propina! Em outras palavras, se um alto executivo de uma empresa é procurado para pagar propinas, a solução é encaminhar o solicitante a um subordinado e esquecer o assunto! Não é crível que João Auler, vice-presidente da Camargo Corrêa, em caso que envolvia contratos de 5,8 bilhões de reais para a Camargo e propinas de cerca de 110 milhões, teria adotado comportamento da espécie. A apresentação a este Juízo de um álibi inverossímil corrobora as declarações dos acusados colaboradores acerca da participação direta e consciente do acusado João Ricardo Auler no esquema criminoso”.

Deixando de lado a citação de Moro aos 5,8 bilhões do valor total dos contratos da CCCP com a Petrobras e dos 110 milhões de propinas embutidas neles, a ser examinada mais adiante, eis três observações iniciais sobre a conclusão do juiz de que Auler inventou a história:

1. Auler diz que deixou o fato de lado porque Janene saiu de cena logo depois da reunião de 2009. E, efetivamente, Janene teve um AVC em fevereiro de 2010 e morreu pouco depois, em setembro.

2. Auler estava num posto superior ao de Leite, mas não era seu chefe direto. A Camargo Corrêa é um grupo gigantesco, com vários braços, cada um deles com muitos empreendimentos, e Auler apresenta em seu álibi o nome do projeto com o qual estava comprometido especialmente na época.

3. Em pelo menos um caso, o de Eduardo Leite, que Moro cita pelo depreciativo apelido de “Leitoso” no início de sua sentença, o juiz não está certo ao confiar mais nas palavras dos dois delatores da CCCP do que nas de Auler, que não delatou ninguém.

Sobre esse terceiro ponto é necessário entender o quadro maior da chamada Operação Lava-Jato e entrar em vários detalhes. Nossa história atual, como dissemos de início, é de duas sentenças. A primeira é de 22 de abril passado. Trata de um pedaço do julgamento que envolve a CCCP e é parte da Lava-Jato. Como se sabe, essa operação, do início de 2014, tem sua origem em outra, anterior, contra quadrilhas de doleiros e que acaba batendo, no final daquele ano, em Youssef, por ele ter feito favores a um desses doleiros (Youssef foi absolvido nessa história). A partir de então, Youssef – que já tinha sido doleiro e fora beneficiado, sob supervisão de Moro, numa delação premiada – acabou sendo monitorado e investigado de todas as formas. E, talvez por descuido, como diz Moro, em 21 de outubro de 2013 citou o nome de Costa numa conversa com Marcio Bonilho, um dos donos da Sanko Sider, empresa com dois braços, um de serviços e outro de fornecimento de tubos e conexões para a CCCP na obra da RNEST, a refinaria da Petrobras em Pernambuco, um dos outros dois contratos cuja soma perfaz os 5,8 bilhões citados (o outro é o da Repar, no Paraná, já citado). Na conversa telefônica grampeada e transcrita na sentença por Moro, Beto – Youssef – diz: “Não, porra, pior que o cara fala sério, cara, que ele acha que foi prejudicado, cê tá entendendo? É, rapaz, tem louco pra tudo. Porra, foi prejudicado, o tanto de dinheiro que nós demo pra esse cara. Ele tê coragem de falá que foi prejudicado. Pô, faz conta aqui, cacete, aí, porra, recebi 9 milhão em bruto, 20% eu paguei, são 7 e pouco, faz a conta do 7 e pouco, vê quanto ele levô, vê quanto o comparsa dele levô, vê quanto o Paulo Roberto levô, vê quanto os outros meninos levô e vê quanto sobrô”.

Moro acha a gravação da fala de Youssef com Bonilho muitíssimo interessante. Ele a usou diversas vezes em suas intervenções na Lava-Jato e a apresenta tanto na primeira quanto na segunda sentença, das quais trata este artigo, como uma das mais relevantes para o entendimento da história. Nos famosos interrogatórios que fez e que tiveram grande repercussão política, entre o primeiro e o segundo turno da recente eleição presidencial, apresentou a gravação do grampo para o próprio Youssef ouvir. Depois, pediu a ele esclarecimentos. Os principais trechos do diálogo estão transcritos nas duas sentenças. Um trecho, porém, o que fala de dinheiro pago por Youssef ao próprio “Leitoso”, só está na primeira. Moro o suprimiu da segunda.

O trecho suprimido é interessante para quem quer compreender a posição do juiz. Nele, Moro começa perguntando a Youssef se ele ouviu bem a gravação e se de fato é de uma conversa sua. Youssef, chamado de Alberto na transcrição, responde:

“Alberto: – Ouvi sim senhor, Excelência.

Juiz federal: – Era o senhor mesmo?

Alberto: – Era eu falando com Marcio Bonilho.

Juiz federal: – A segunda parte do diálogo [na qual] há uma referência a uma dívida desse 1 milhão, 2 milhões. O senhor pode me esclarecer esse diálogo, essa parte do diálogo?

Alberto: – Sim senhor, Vossa Excelência. Na verdade, a Camargo Correia me devia 2 milhões que o próprio vice-presidente e o presidente pediu que eu adiantasse a agentes políticos e a Paulo Roberto Costa e que, posteriormente, vinha e resolvia os pagamentos [mas] depois foi empurrando com a barriga, eu estava nervoso.

Juiz federal: – O presidente e o vice-presidente quem?

Alberto: – O Dalton [Avancini] e Eduardo Leite.

Juiz federal: – Esse Leitoso que o senhor se reporta no diálogo 1 é o… quem?

Alberto: – Eduardo Leite.

Juiz federal: – E o senhor fala nesse diálogo: ‘Pior que o cara fala sério, ele acha que foi prejudicado, você tá entendendo? É, rapaz, tem louco pra tudo. Foi prejudicado? Tanto dinheiro que nós demos pra esse cara’. De quem o senhor está falando aí?

Alberto: – Eu estou falando do Eduardo Leite, que, por conta das vendas de tubo que nós fazíamos pra Camargo Correia, ele também recebia parte do comissionamento, tanto ele quanto o diretor [Paulo Roberto].

Juiz federal: – Recebia parte do comissionamento o quê, das vendas da…?

Alberto: – Comissionamento da vendas da Sanko.

Juiz federal: – Quer dizer, ele estava na empresa, a empresa comprava e ele também recebia um percentual?

Alberto: – Também recebia um percentual, Vossa Excelência.

Juiz federal: – E quem fazia esse pagamento?

Alberto: – Eu fazia.

Juiz federal: – E o senhor pagava como isso?

Alberto: – Em dinheiro vivo.

Juiz federal: – Depositava em conta ou coisa parecida?

Alberto: – Não, Excelência, ele retirava no meu escritório.”

Como se pode perceber, a direção da CCCP não era um santuário. Moro pareceu confiar mais em Leite do que em Auler na sua segunda sentença. Mas ele próprio sabia, da primeira ação penal, como acabamos de ver, que Leite não era um anjo. Leite repassava propinas a Costa, via Alberto Youssef e empresas de fachada que Youssef montara, com a participação de um grupo de mais sete pessoas. Youssef, a despeito da delação premiada, continua preso. Todas as sete pessoas vinculadas às operações camufladas ligadas às propinas foram condenadas por Moro nesta primeira ação. Na lista de condenados nela, não estão os três diretores da CCCP, porque, sob o argumento de dar celeridade ao julgamento, os promotores, com a concordância de Moro, foram esquartejando a história em partes, para facilitar as condenações, ao que tudo indica. Bonilho, um dos donos da Sanko, entrou nessa primeira ação penal e na segunda e, embora tenha sido absolvido na última, foi duramente penalizado por Moro na primeira, por sua conivência com o esquema: mesmo tendo recebido de Moro, como todos os outros sete condenados ligados ao esquema de Youssef, o direito de recorrer da sentença em liberdade, foi penalizado com 11 anos e seis meses de reclusão. Mas o crime de Leite, de roubar a própria empresa, desapareceu dos autos. É certo que caberia à empresa denunciar a corrupção do funcionário, mas é no mínimo estranho Moro – que, na sentença, faz várias exortações à empresa – ter omitido o roubo de parte do lucro da empresa pelo alto funcionário “Leitoso”.

Por último, em nossa história, voltemos aos dois contratos da CCCP com a Petrobras, o da RNEST e o da Repar. O da refinaria de Pernambuco é para a construção da Unidade de Coqueamento Retardado (UCR) e das unidades de Tratamento Cáustico Regenerativo (TCR). Resumidamente, UCR e UTC são partes de uma refinaria que transformam produtos da primeira destilação do petróleo, de menor valor, em produtos de maior valor agregado. A UCR trabalha com o coque, um resíduo negro de destilação com grande conteúdo de carbono. E as unidades de TCR, com o uso de soda cáustica, retiram de produtos da destilação um poluente, o enxofre. Como a Petrobras contrata a construção dessas unidades? Graças a décadas de experiência, a estatal tem um setor, a Gerência de Estimativa de Custos e Prazos, com quadros técnicos capazes de entender como unidades tipo UCR e TCR são compostas e funcionam, de estudar os preços de mercado de seus componentes e de sua montagem e de estimar os custos da contratação delas.

No caso das obras para a RNEST, o valor estimado, divulgado pela Petrobras em 9 de janeiro de 2009, quando foram abertas as propostas, foi de 3,428 bilhões de reais, com uma variação, como dizem os engenheiros, para cima, de 4,113 bilhões e, para baixo, de 2,914 bilhões. Em outras palavras: a Petrobras não avalia o custo exato de obras de tal complexidade, como parece razoável: ela estima um preço máximo e um preço mínimo para aceitar as propostas que vai receber. Por regra adotada há anos, as propostas são consideradas aceitáveis se o valor apresentado pelos concorrentes à realização da obra fica na faixa de 20% a mais ou 15% a menos do valor que ela apresenta: no caso, os 3,428 bilhões. Ou ainda: a Petrobras disse em 9 de janeiro de 2009 que examinaria as propostas entre 4,113 bilhões e 2,914 bilhões de reais. As acima de 4,113 bilhões seriam consideradas caras demais e recusadas; as inferiores a 3,428 bilhões seriam consideradas baratas demais e um eventual vencedor da concorrência não teria como realizar as obras com esses recursos, e essas propostas, por esse motivo, seriam também recusadas. São obras muito específicas e a Petrobras tem um cadastro das empresas que podem realizá-las. Foram convidadas para concorrer à licitação 15 empresas. No dia 9, só quatro apresentaram propostas. Das maiores empreiteiras brasileiras, a Andrade Gutierrez não entrou na disputa. Entraram a Camargo Corrêa, a UTC associada à Engevix e a Odebrecht associada à OAS. Apresentou proposta também um grupo menor, a MPE Engenharia e Projetos. Abertas as propostas, todas ficaram acima do limite superior aceitável de 4,113 bilhões.

A Camargo Corrêa apresentou a de menor preço, de 5,937 bilhões. A concorrência foi, então, anulada. A Petrobras fez, então, algumas modificações no projeto para reduzir seu custo e anunciou nova licitação. Esta foi realizada em 10 de setembro de 2009. Abertos os envelopes com os valores das propostas e o das estimativas da Petrobras, viu-se que o custo intermediário definido pela estatal caíra para 2,876 bilhões, sendo o limite superior de 3,451 bilhões e o inferior de 2,444 bilhões. Quatro propostas foram apresentadas e de novo a Camargo Corrêa apresentou a de menor preço, de 3,446 bilhões, abaixo do limite máximo – portanto, aceitável. E também de novo foram feitas apenas mais três propostas, dos mesmos consórcios e empresas, e todas com valores acima do limite. A Camargo Corrêa, então, ganhou e, depois de algumas negociações, assinou o contrato por um pouco menos, 3,411 bilhões de reais. A obra teve ainda nove aditivos, cujo custo somado foi de 0,361 bilhão.

No caso das obras na Refinaria Presidente Getúlio Vargas, a concorrência foi também para uma UCR e outras unidades menores – para manuseio de coque, recuperação de enxofre, tratamento de gás e águas residuais e subestações de energia elétrica. A estimativa da Petrobras para o valor intermediário dessas obras foi de 2,093 bilhões de reais, com variação entre o mínimo de 1,780 bilhão e o máximo de 2,512 bilhões. Foram convidadas a apresentar propostas 20 empresas. Só três foram apresentadas: uma da Camargo Corrêa com a Promon, outra da Queiroz Galvão com a IESA e outra da Andrade Gutierrez com a Techint. A Camargo ganhou com uma proposta de 2,489 bilhões e assinou o contrato para as obras no dia 7 de julho de 2008, com um pequeno desconto, em 2,488 bilhões. A obra teve ainda dez aditivos, que custaram 0,228 bilhão.

Quais são as conclusões maiores que o juiz Moro reiteradamente apresenta nas suas duas longas sentenças (a primeira também é grande, com 115 páginas)? Basicamente, Moro diz que:
A empreiteira Camargo Corrêa, com outras grandes empreiteiras brasileiras, teria formado um cartel, por meio do qual, por ajuste prévio, teria sistematicamente frustrado as licitações da Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras) para a contratação de grandes obras a partir do ano de 2006, entre as quais a RNEST, o Comperj e a Repar.

As empreiteiras, reunidas em algo que denominavam de “clube”, ajustavam previamente entre si qual delas iria sagrar-se vencedora das licitações da Petrobras, manipulando os preços apresentados no certame, com o que tinham condições de, sem concorrência real, ser contratadas pelo maior preço possível admitido pela Petrobras.

Em síntese, as empresas, em reuniões prévias às licitações, definiram, por ajuste, a empresa vencedora dos certames relativos aos maiores contratos. Às demais cabia dar cobertura à vencedora previamente definida, deixando de apresentar proposta na licitação ou apresentando deliberadamente proposta com valor superior ao contido na proposta da empresa definida como vencedora.

Para permitir o funcionamento do cartel, as empreiteiras corromperam diversos empregados do alto escalão da Petrobras, entre os quais o ex-diretor Paulo Roberto Costa, pagando percentual sobre o contrato.

O esquema criminoso de propinas e lavagem de dinheiro que acometeu a Petrobras é, pelo que as provas até o momento indicam, gigantesco, com dezenas ou centenas de fatos delitivos conexos e com o envolvimento de dezenas de pessoas.

Surgiram elementos probatórios de que o caso transcende à corrupção de agentes da Petrobras, servindo o esquema criminoso para também corromper agentes políticos e financiar, com recursos provenientes do crime, partidos políticos.

Repetindo, em síntese Moro diz o que, afinal, é repetido em todo o país hoje em dia: que houve um gigantesco esquema de corrupção na Petrobras, comandado pelas grandes empreiteiras, a partir de 2006; que os mecanismos criminosos desse aparato envolvem os partidos políticos que são financiados por essas empresas com dinheiro público extraído da estatal graças à corrupção de seus diretores, por sua vez mantidos em seus cargos por esses mesmos políticos.

Para provar esse esquema gigantesco, Moro inclui em sua segunda sentença o depoimento da testemunha Gerson Luiz Gonçalves, empregado da Petrobras que presidiu uma das inúmeras comissões internas de apuração das denúncias levantadas no escândalo que envolveu a empresa. Moro quis saber dele se era normal o fato de a Camargo Corrêa ter apresentado uma proposta no caso da concorrência para as obras da Repar, ter saído vencedora, a concorrência ser anulada e, depois, na nova licitação, se repetir a mesma ordem de classificação por preço das mesmas empresas concorrentes, o que levou a Camargo a ser novamente vitoriosa. Gonçalves declarou que era isso mesmo, que em quatro ou cinco situações examinadas pela comissão ocorreu algo semelhante.

A primeira grande obra: Lula, Gabrielli, Dilma, na ampliação da Repar

Moro também chamou para depor Augusto Mendonça Neto, dirigente da Setal Óleo e Gás S.A. (SOG), uma das empreiteiras, como diz Moro, “envolvidas no esquema criminoso”, e que assinou um acordo de delação premiada com a Justiça em 27 de outubro de 2010. Mendonça Neto, até essa altura da história, é o principal teórico de defesa da existência do cartel e dos ajustes para frustrar as licitações e permitir o pagamento de propinas a agentes da Petrobras. Mendonça Neto, diz Moro na sentença, mostra que o cartel é antigo, mas teria funcionado de forma mais efetiva a partir de 2004 ou 2005 [pouco após o início dos governos petistas], já que teria havido concomitantemente a cooptação dos diretores da Petrobras para que não atrapalhassem o seu funcionamento. A partir das licitações das obras do Comperj, por volta de 2011, o cartel teria perdido sua eficácia porque a Petrobras teria começado a convidar outras empresas, dificultando os ajustes.

Mendonça Neto diz, na transcrição apresentada por Moro: “O clube definia quem ganharia uma determinada licitação e, na hora em que essa licitação estivesse em andamento, era entregue uma lista das empresas que deveriam ser convidadas pra participar”. Moro pergunta: “Era entregue uma lista pra quem?”. Augusto responde: “Aos diretores Paulo Roberto e Renato Duque” [da área de Serviços e ligado ao PT]. Moro volta a perguntar: “Era entregue aos dois ou a um deles apenas? Como isso funcionava?”. Augusto: “Eu acredito que aos dois. A lista de convidados é uma coisa bastante sensível e o diretor tem o poder de instruir o seu pessoal e colocar ou retirar determinada empresa por determinada razão”. Moro volta à carga: “Quem fazia essa entrega?”. Augusto: “O Ricardo Pessoa”.

Moro vai adiante: “Essa, vamos dizer, pré-combinação das empreiteiras pra ver quem ganhava o contrato e depois o pagamento da propina, isso acontecia em todos os contratos do clube das empreiteiras com a Petrobras ou em alguns contratos apenas?”. Augusto: “Acontecia em todos os contratos que eram discutidos lá no âmbito do clube. Sim, acontecia”.

Logo adiante, um dos advogados de defesa, que Moro não identifica, pergunta a Mendonça Neto se ele participou de alguma forma da entrega dessas listas: “O senhor levou alguma vez esse tipo de lista com ele [Ricardo Pessoa] pra lá [para os diretores da Petrobras] ou o viu levar?”. Augusto: “Não, senhor”. O defensor avança e pergunta como ele sabe, então, da existência das listas. Augusto responde com uma frase do tipo “a lista existe porque é importante, para a minha história, que ela exista”. Augusto diz, exatamente, segundo a transcrição de Moro: “Porque era importante que o convite fosse restrito a uma quantidade de empresas”. A defesa não se dá por satisfeita e volta à carga: “Tá, mas eu pergunto como é que o senhor sabe que ele [Ricardo Pessoa] levava alguma lista?”. Augusto: “Porque ele era a pessoa que fazia os contatos com a Petrobras”. A defesa, ainda: “Sim, ele fazia os contatos com a Petrobras, isso é inegável, mas a pergunta é: como é que o senhor sabe que ele levava essa lista, já que o senhor não a levava com ele?”. Augusto: “Eu não sei se ele levava uma lista, se ele falava ou como era feita essa comunicação, mas o fato é que…” A defesa: “Havia uma comunicação?”. Augusto: “Para uma determinada licitação, era discutida uma lista de empresas que iriam participar e isso era discutido com a Petrobras”. Defesa: “O senhor não sabe se era uma lista ou se ele levava de boca, mas que ele levava, levava. Esse é o seu conhecimento?”. Augusto: “Sim”. A defesa, voltando a insistir: “E como é que o senhor sabe que ele levava se o senhor não levava com ele nem participava dessa interlocução?”. Augusto: “Porque as empresas convidadas eram as que deveriam ser convidadas”. A defesa: “Ou era a Petrobras que as convidava?”. Augusto: “Quem convidava é a Petrobras, porém era dentro das empresas que deveriam ser efetivamente convidadas”. Moro intervém: “Conferia, então, com o resultado da prévia definição pelas empreiteiras, é isso?”. Augusto: “Sim. Aliás, eu posso deduzir que, de alguma forma, essa lista chegava à Petrobras”.

Que a Abemi (Associação Brasileira de Engenharia Industrial), à qual estão filiadas as grandes empreiteiras, com meio século de existência, presidida até há pouco por Ricardo Pessoa, tinha reuniões periódicas e discutia os contratos com a Petrobras, não pode haver dúvidas, pois sua função é discutir os interesses comuns de seus associados. Que a Petrobras realiza suas licitações por meio de carta-convite, como definido por decreto de 1998 do presidente Fernando Henrique Cardoso, como já mostrado (ver “A tática do mensalão na Lava-Jato”, nesta edição), também não. Mas daí a Moro concluir dos feitos examinados em suas duas sentenças que é “forçoso reconhecer” que o cartel criminoso existe vai uma grande diferença.