Mídia tradicional esconde informações sobre atentado a haitianos
Uma série de informações falsas, não confirmadas e com interpretações precipitadas foi divulgada pela mídia comercial brasileira envolvendo o caso em que seis haitianos foram feridos em um atentado a tiros, na cidade de São Paulo, no último dia 1º de agosto. Quem denuncia é o Padre Paolo Parise, membro da Missão Paz, que acolhe imigrantes na capital paulista.
Publicado 13/08/2015 18:33
Em entrevista à Adital, ele desmente a versão de veículos da imprensa hegemônica, que publicaram um suposto atentado xenófobo contra o grupo de imigrantes por meio de disparos com arma de fogo. O que teria causado a morte de um deles. Segundo Parise, os tiros foram de chumbinho e os seis atingidos passam bem.
Segundo o padre, diferentemente do que informou a imprensa de massa, os seis haitianos foram atingidos, em via pública, na Rua do Glicério, bairro da região central de São Paulo, por volta das 20 horas, em dois ataques, num raio de 400 metros. "O carro foi passando e os tiros foram destinados mais ou menos às pernas das pessoas”, afirma. "Divulgaram que houve tiroteio no pátio da igreja, em cima dos degraus. Não houve nada disso”, contradiz o padre, referindo-se à Igreja Nossa Senhora da Paz, que desenvolve trabalho de acolhida aos imigrantes na capital.
De acordo com Parise, três Boletins de Ocorrência foram registrados em uma Delegacia de Polícia Civil do Estado de São Paulo, sendo o primeiro efetuado por um grupo de quatro haitianos. São eles: Vilner Guervil, de 44 anos, Hudson Prophete, de 28 anos, além de Athice Luc e Michelet Saint Lous, que não informaram as idades. Os outros dois atingidos, Joral Louis e Gregory Deraluis, registraram B.O. individualmente.
A Adital teve acesso ao primeiro dos Boletins de Ocorrência. Segundo o documento, registrado na mesma noite dos ataques, o caso é considerado lesão corporal grave. "Todas (as vítimas) estavam próximas, porém, não juntas e não se conheciam, quando, provavelmente, passou pela via pública um veículo desconhecido, de cor e placa não anotadas, ocasião em que um dos ocupantes teria gritado ‘haitiano’ e, em seguida, teriam sido alvejadas por ele na região dos membros inferiores, procurando em seguida socorro médico”, diz o Boletim.
Assim, o documento desmente que um dos ocupantes do carro teria gritado "Haitianos, vocês roubam nossos empregos!”, como foi divulgado pela grande imprensa. "O primeiros atingidos ouviram o grito ‘Haitianos!’. Já os outros não escutaram nada, só sentiram a dor na perna”, conta Parise. De acordo com ele, três dos imigrantes estariam retornando do trabalho para casa. Outro estaria voltando de um culto evangélico, quando foi alvejado.
"Tivemos muita prudência em apresentar o fato para não gerar uma onda xenófoba”, pondera o padre. "Os haitianos começaram a nos procurar, no início da semana. Estavam preocupados com esse chumbinho nas pernas. Percebemos, pela descrição deles, que achavam que haviam sido atingidos por balas perdidas. Nem cogitaram terem sido alvos dessa ação. Acharam que tivessem sido atingidos por São Paulo ser uma cidade violenta”, indica Parise.
Pesquisas apontam que a exposição excessiva e prolongada do corpo humano ao chumbo pode levar a doenças renais progressivas e irreversíveis. Os efeitos tóxicos desse metal sobre humanos e animais afetam, praticamente, todos os órgãos e sistemas do corpo, ocasionando hiperatividade, perda da coordenação motora ou de memória, entre outros malefícios. De acordo com o padre Parise, os haitianos atingidos estão recebendo acompanhamento médico e alguns deles já retornaram às atividades laborais.
Causas do ataque
Segundo Parise, até o momento, há duas hipóteses para a motivação dos ataques. A primeira delas é, de fato, xenofobia. A segunda seria vingança. Ele explica: "um dos haitianos disse que achava que era vingança. Dias atrás, uma mulher estava dirigindo um carro, quando quebraram seu vidro e levaram sua bolsa. Um haitiano correu atrás dele [do ladrão], recuperou a bolsa e a devolveu para a mulher”, conta. "É um quadrilha que atua aqui na rua”.
O haitiano que intercedeu pela mulher que havia sido roubada, no entanto, não está entre as vítimas do ataque. "Foi um gesto contra os haitianos”, disse o padre. "Começamos a ter essas duas hipóteses. Não podemos criar uma interpretação [precipitada], que possa gerar outras manifestações xenófobas”, ressalta à Adital.
A expectativa, agora, é que a Polícia tenha acesso às imagens de uma câmera de segurança instalada diante de supermercado, localizado na rua onde ocorreram os disparos, e avance na interpretação dos fatos. Até o momento, nenhuma testemunha apareceu para reforçar a versão das vítimas. Nos próximos dias, segundo Parise, a Embaixada do Haiti no Brasil deve enviar um representante para acompanhar o caso e se solidarizar com as vítimas.
Repercussão racista nas redes
Mesmo que a causa dos ataques apenas tenha começado a ser investigada, informações e conclusões circulam pelas redes sociais na Internet nos últimos dias, inclusive, com comentários racistas e xenófobos dirigidos aos imigrantes do Haiti. O jornalista e doutor em Ciência Política Leonardo Sakamoto, em seu blog, saiu em defesa dos estrangeiros.
"Pessoas que estão rosnando contra os feridos, dizendo que ‘foi pouco’ ou que ‘ainda bem que alguém tomou coragem’. Para essas pessoas, os imigrantes são também responsáveis pela crise econômica e o desemprego”, critica. Sakamoto contrapôs: "Os haitianos vêm buscar oportunidades de vida, que não são encontradas em seu país. (…) Mas eles vêm também atendendo a um chamado por mão de obra – assim como ocorre com os bolivianos e outros irmãos latino-americanos, africanos e asiáticos”.
"Os haitianos estão produzindo riqueza no e para o Brasil. Mas, sob a perspectiva mal informada de parte população, contudo, eles vêm ‘roubar’ empregos. Isto, quando o preconceito não descamba para o medo de roubo de relógios, joias, carros e casas”, critica Sakamoto. "A verdade é que muita gente, do Acre a São Paulo, passando por Brasília, quando questionada, não sabe de onde vem o incômodo que sente ao constatar centenas de haitianos chegando e andando pelas ruas. Mas se fossem loiros escandinavos pedindo estada, ao contrário de negros, a história seria diferente. Ou seja, para muita gente, o problema é o racismo mesmo. Com todas as letras”, conclui o jornalista, que é também conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.
Para ele, o governo federal demora a viabilizar e a financiar estruturas de acolhida, apoio e intermediação oficial de mão de obra estrangeira no Brasil, de modo a evitar a superexploração e o trabalho escravo de haitianos, que já começa a acontecer. E questiona questões de identidade nacional.
"Afinal, qual o conceito de ‘brasileiro’? A história do nosso país é uma história de migrações, de acolher gente de todos os cantos do mundo. (…) Não faz sentido que viremos às costas aos que vêm de fora e adotam o Brasil, mesmo que a contragosto. Eles são tão brasileiros quanto eu e você, trabalham pelo desenvolvimento do país, mas, normalmente, passam invisíveis aos olhos da administração pública e do resto de nós”, defendeu Sakamoto.