Celso Amorim: Um Balanço das Relações Brasil-África
O Instituto Lula, por meio da Iniciativa África, lançou o primeiro número dos cadernos “Diálogos Africanos”. Seu objetivo é disseminar estudos e análises e incentivar o debate sobre a África e suas relações com o Brasil. Por ocasião do 5º Seminário “Conversas sobre África”, o embaixador brasileiro Celso Amorim proferiu palestra em São Paulo, no dia 26 de maio de 2015. Abaixo a transcrição da palestra.
Publicado 04/09/2015 18:19
Um dia, um jornalista brasileiro, não necessariamente muito bem informado, perguntou: “Ministro, por que que o senhor dá tanta atenção à América do Sul?”. Eu disse: “Porque eu moro aqui." A razão principal do Brasil dar atenção à África – há muitas outras: econômicas, estratégicas, políticas –, mas a principal é essa: a África mora no Brasil. Ela mora em nós.
A primeira coisa que me vem à mente, da importância da África é quase uma brincadeira, mas foi o que me ocorreu agora, eu me lembro que, no início da gestão do presidente Lula, nós dávamos também muita atenção à América do Sul. O cônsul do Peru aqui presente sabe dos esforços que foram feitos pela integração da América do Sul.
E, um dia, um jornalista brasileiro, não necessariamente muito bem informado, perguntou: “Ministro, por que que o senhor dá tanta atenção à América do Sul?”. Eu só fiquei com pena que não foi ao vivo, então eu tive que repetir a frase depois, porque era na televisão. Eu disse: “Porque eu moro aqui. Se eu morasse noutro lugar, morasse na Europa, talvez eu desse mais atenção à Europa, mas eu moro aqui na América do Sul, eu vivo aqui na América do Sul.” E eu acho que, da África, a gente pode, por fazendo uma troca, dizer: a África mora aqui. Então, a razão principal do Brasil dar atenção à África – há muitas outras: econômicas, estratégicas, políticas –, mas a principal é essa: a África mora no Brasil. Ela mora em nós.
Mencionou-se aqui que a Nigéria é o país mais populoso da África. O Brasil é o segundo país de maior população afrodescendente do mundo, inclusive os outros países africanos, inclusive os Estados Unidos, que também têm uma população grande de afrodescendentes. Acho que isso é algo notável, mas é algo que nem sempre os brasileiros souberam absorver adequadamente. Aliás, durante muito tempo talvez até tenham rejeitado ou de formas diretas ou de formas sutis. Porque uma das características do preconceito é que ele não se revela de maneira evidente. Uma das características do preconceito é que ele vem sempre acompanhado daquela frase “Eu não tenho preconceito”, e aí vem uma porção de coisas negativas em seguida.
A África é muito perto do Brasil. Perto também fisicamente. Eu tive oportunidade, quando fui ministro pela primeira vez no governo Itamar Franco, de cumprir uma promessa que havia sido feita por um antecessor meu, a de ter uma reunião de comissão mista com o Senegal. Há muito tempo que nós não tínhamos uma reunião de comissão mista com o Senegal. Eu falei: “Bom, eu tenho que ir, eu não vou deixar de fazer isso”. O governo Itamar Franco, todo mundo sabe, foi um governo curto. Eu tive um ano e meio de ministro naquela época e falei: “Eu tenho que ir ao Senegal”. Só que, o Brasil, entre as carências que ainda temos, talvez a principal, aquela que o presidente Lula não conseguiu – não vou dizer eu e ele, porque seria pretencioso –, mas que nem o presidente Lula conseguiu vencer, é a timidez das nossas linhas aéreas. Então não há nenhuma linha aérea brasileira que vá para a África. Felizmente, hoje, temos várias linhas aéreas africanas que vêm ao Brasil. Mas eu diria que é quase vergonhoso que o Brasil não tenha uma linha aérea própria que vá à África. Para não lembrar só das coisas boas é preciso também que a gente mencione o que falta fazer. Não só o que foi feito, mas o que falta fazer.
Bom, naquela época, para eu ir a Dacar, eu tinha que ir a Paris. E ir a Paris tomava três dias, né, porque tem que ir a Paris, dormir uma noite, depois seguir pra Dacar e vice-versa, então tomava três dias. E isso coincidiu com o lançamento de um plano econômico muito importante no Brasil, que foi não o Plano Real, mas a moeda, o Real. O Real foi lançado pelo presidente Itamar Franco, que foi um presidente meio transitório. Ele esteve dois anos mais ou menos na Presidência e, durante o governo dele, teve esse fato: a moeda, o Real, foi lançado. E os ministros tinham que estar presentes. Não havia como os ministros não estarem, até porque isso causaria uma sensação estranha. E o meu então chefe de Gabinete, hoje ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, descobriu a solução: “Nós podemos ir num avião da Força Aérea Brasileira”. E eu fiz uma pergunta a ele muito simples: “Mas esse avião tem banheiro?” Ele disse: “Não, não tem banheiro”. E eu falei: “Quanto tempo vai demorar pra cruzar o Oceano Atlântico, entre Natal e Dacar?” “Ah… A Força Aérea, a FAB diz que mais ou menos quatro horas”. Aí eu calculei: “Bem, então a autonomia do avião é mais ou menos parecida com a minha, de modo que nós vamos chegar lá a tempo, né, e em condições de poder trabalhar”.
E eu descobri – que eu não sabia, porque essas coisas a gente pode saber teoricamente –, mas, alguns anos depois, eu fiz um voo no mesmo avião, entre o Acre e o Recife, e é mais longo. Então, na realidade, Dacar é mais perto… Natal ou Recife são mais perto de Dacar do que de Cruzeiro do Sul ou Rio Branco, no nosso próprio território. Então, a África é muito perto do Brasil. Não é um pouco perto, não. É muito perto. Boa parte da mídia brasileira – eu não quero ficar falando mal da mídia, não, porque dizem que eu falo mal da mídia – expressa o que grande parte da população brasileira pensa, ou pelo menos uma parte da elite brasileira pensa.
Por que a África? A África tá muito perto do Brasil. A África vive junto com o Brasil. A África tem problemas muito parecidos com o Brasil. Então, eu tinha um impulso notável. Eu tive esse trabalho na época do presidente Itamar Franco. Tive uma experiência única e invejável, porque eu representei o Brasil na posse do presidente Mandela, talvez o fato mais importante, pelo menos da segunda metade do século 20, senão de todo o século 20. Há um fato interessante, se eu não me engano foi o presidente Kenyatta [do Quênia], que uma vez fez o comentário de que, enquanto a Organização da Unidade Africana não se reunisse na África do Sul, ela não estaria completa. E depois dessa reunião na África do Sul, justamente que surge a União Africana como novo nome da Organização da Unidade Africana.
Então, essas realidades são muito fortes. Essa proximidade física. O que gera comércio, potencialmente gera comércio, gera interesses estratégicos comuns… Eu pude agora, como ministro da Defesa, também ver a importância de algo que nós fizemos, que é a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, que já tem muitos anos, mas que foi revitalizada agora, com reuniões sobre segurança marítima e o bom acolhimento que essas propostas têm da parte dos países africanos, que são nossos vizinhos. Eles estão do outro lado do oceano, dividem conosco o Atlântico Sul, uma área de paz. É uma área de paz, que deve ser livre de armas nucleares e que deve ser objeto de cooperação entre outras áreas, na área da pesca, mas também em muitas outras áreas de riqueza em que seja possível.
Então, nós descobrimos a importância também da cooperação na área de defesa. Mais recentemente, eu pude ver a importância dos fatos que se passam no Golfo da Guiné, por exemplo. Uma grande parte do petróleo brasileiro vem daquela região. Então não é uma questão só abstrata. É uma questão que tem interesse real para o Brasil. E fico muito contente de ver aqui também a embaixadora da Etiópia, porque eu acho que a decisão de abrir uma embaixada em Adis Abeba talvez tenha sido uma decisão-marco, porque, além da importância natural da Etiópia, ela é também aonde se reúne toda a União Africana. E, hoje, depois, já no governo da presidenta Dilma, temos inclusive um adido militar em Adis Abeba que se ocupa do tema da segurança marítima, não da Etiópia, que não tem mar, mas da África. Então isso acho que é uma demonstração de que essas coisas vão se aprofundando, vão gerando frutos e vão se espalhando para campos onde antes talvez nós nem cogitássemos estar presentes.
Bem, eu gostaria de dizer também que o meu interesse pela África, grande, desde o início, tem longa data. Porque eu era jovem, adolescente, na época do grande movimento de descolonização, quando o primeiro-ministro britânico soube identificar que havia ventos de mudanças – the winds of changes – que estavam mudando a face da Terra: era a independência africana. Naquela época, final dos anos 1950, início dos anos 1960, o Brasil caminhava com uma política externa muito independente, apesar das limitações que o país tinha. E rapidamente reconheceu os países africanos, inclusive estabeleceu várias embaixadas em alguns deles. Se eu não me engano, a Tunísia e o Marrocos foram dos primeiros, mas, logo em seguida, Senegal, Nigéria…
O Brasil foi estabelecendo várias embaixadas. E foi um fato muito importante, que empolgou a minha juventude. Não a minha pessoal, mas a juventude da minha época. Porque aquele fato, além, digamos, do lado libertário de eliminar uma grande injustiça que se acumulava por séculos, também embaralhava um pouco o jogo da Guerra Fria, que era onde parecia que o mundo vivia. “Não, agora temos uma força nova”. Tanto que os franceses, rapidamente, cunharam a expressão “Tiers Monde”, quer dizer, era o Terceiro Mundo. Primeiro Mundo era o mundo capitalista, o Segundo Mundo era o mundo socialista ou comunista e o Terceiro Mundo era esse mundo em desenvolvimento, que já existia em parte. Existia na América Latina, existia um pouco na Ásia, mas é a independência africana, a independência dos países africanos que torna isso uma grande realidade. Então, a minha geração foi muito influenciada por esse grande movimento emancipatório que é uma maneira também que a África teve de civilizar o mundo. Nós temos que olhar para as contribuições que a África tem dado à nossa cultura, mas também à nossa política.
Bem, voltando aqui ao lado mais brasileiro, essa época, infelizmente, sofreu um golpe abrupto, porque, em 1964, os rumos políticos do Brasil mudaram. Não que o Brasil tenha rompido com a África, mas o Brasil adotou políticas, que foram muito menos pró-ativas em relação à África. E em alguns casos até foi conivente com o colonialismo, como era o caso das colônias do antigo Império colonial português, na época ainda do Portugal salazarista. Não há como negar esse fato e é um fato que, inclusive, teve um custo político pro Brasil também e durante algum tempo.
Enfim, mas muito antes mesmo até da volta da democracia para o Brasil já se percebeu que era importante ter uma atitude nova em direção à África. E eu acho que talvez um marco importante – passando assim muito rapidamente pelas décadas –, mas um marco importante dessa mudança do Brasil, antes mesmo da democracia, quando um general-presidente diz que ia começar uma abertura lenta, gradual e segura, ele também teve vislumbres na política externa. E um dos fatos mais importantes foi o reconhecimento de Angola, o reconhecimento do MPLA como governo legítimo de Angola em 11 de novembro de 1975. O Brasil foi o primeiro país a reconhecer Angola. Aquilo não era uma coisa óbvia, nem era uma coisa fácil. Nós estávamos em plena Guerra Fria, quer dizer, da mesma maneira que a independência africana e a descolonização haviam sacudido a Guerra Fria, esta, de certa maneira, depois se impôs também aos problemas africanos e muitos dos movimentos ou da posição dos países era, em grande parte, definido em função da posição da Guerra Fria. E o partido que chega ao governo na África é o partido que era apoiado pela União Soviética e por Cuba, o Movimento Popular de Libertação de Angola, o MPLA.
E o fato de o Brasil ter sido o primeiro país a reconhecer o governo de Angola foi uma grande surpresa pra todos. E teve um efeito. Inclusive anos mais tarde, conversando com um ministro angolano, ele me disse que era, na época, um jovem lutador, devia ter 15 ou 16 anos. Ele disse que ele lembra perfeitamente o lugar onde ele estava, a praça em que ele estava no momento em que houve o reconhecimento do Brasil. E aquilo mudou a batalha na capital. E, como todos sabem, as grandes batalhas, pra conquista do poder, terminam sempre na capital ou começam na capital. E aquilo permitiu então que o MPLA consolidasse sua posição, depois levou mais vinte ou trinta anos de guerra civil. Mas foi um ato corajoso, que recolocou o Brasil, digamos assim, numa posição mais avançada em relação à África.
E depois o Brasil, durante muitos anos, nas Nações Unidas e em outros lugares, continuou apoiando a África. Então, durante esses períodos, houve também ações de natureza cultural. Ninguém vai dizer que não houve nada. Houve a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a CPLP, já depois do governo militar. Me sinto muito honrado de ter ajudado o embaixador José Aparecido, que era o grande idealizador dessa Comunidade, para que ela passasse a existir. E tinha essa natureza, um pouco cultural, talvez um pouco retórica. Mas, na realidade, foi o que nos ajudou a redescobrir a África. Porque, de certa maneira, a elite brasileira, que eu acho que resistia muito a uma ideia da África em geral, resistia menos à África de língua portuguesa, pelos laços culturais e até por uma certa antropologia um pouco paternalista que já existia no Brasil. O fato é que nós, com a CPLP, voltamos a ter uma relação mais próxima com a África.
Também nesses anos houve dois fatos importantes. O Brasil voltou a participar mais ativamente de operações de paz. E a primeira operação de paz importante da qual o Brasil participou desde o tempo de Suez – nós tínhamos tido observadores no Congo apenas – foi em Moçambique com a ONUMOZ. O próprio secretário-geral da ONU, em contato então comigo, resolveu que o Brasil devia ter uma companhia já como preparação para uma força maior em Angola, que viria a ser a UNAVEM. E, já na UNAVEM, nós chegamos a ter, durante um certo tempo, maior contingente.
Enfim, tudo isso foi nos aproximando. Quanto à atuação do Brasil na ONU, muito especialmente no Conselho de Segurança ou mesmo quando não estava no Conselho de Segurança, o Brasil tinha uma legitimidade muito grande pra certas questões, era muito ouvido. Eu fui embaixador lá e tínhamos muita ação no sentido, inclusive, de ajudar os países que tinham muito pouca gente. Normalmente esses países tinham duas pessoas. E nós tínhamos que ajudar a analisar as resoluções, encontrar as resoluções certas.
E a posição do Brasil – estou falando agora dos anos 1990 – era muito respeitada, porque, curiosamente, embora o Brasil, mesmo estando no Conselho, não tivesse poder de veto, ele tinha uma espécie de veto escondido nas questões africanas, principalmente na questão de Angola. Uma vez, simplesmente, a ameaça de abstenção por parte do Brasil em relação a uma resolução fez com que ela mudasse. Não que o Brasil pudesse, com uma abstenção, impedir que ela fosse adotada, mas tirava a legitimidade da resolução. Então nós mantivemos sempre essa proximidade.
Mas, sem dúvida alguma, foi no início do governo Lula que o grande impulso foi dado. Eu tive naturalmente a orientação geral do presidente Lula. Tá, aliás, no discurso de posse do presidente, a referência à África é colocada por ele próprio. Eu sei, porque eu trabalhei no discurso original, ele fez questão que houvesse uma referência à África. Tá no discurso dele. Mas eu tive também uma influência doméstica, porque a minha mulher acompanhava muito a política, sempre acompanhou muito. E um dia – eu era antes embaixador em Londres – ela veio pra minha posse, voltou pra Londres, tava lá há duas, três semanas, e, um dia, eu telefonei pra ela e comecei a contar vantagem, dizia assim: “Olha, aqui nós criamos um grupo de amigos pra Venezuela, estamos mudando os termos de negociação com a ALCA, vamos fazer não sei o quê na OMC, fizemos uma declaração sobre o Iraque…” Aí ela parou um pouquinho e disse assim: “E pela África, vocês não tão fazendo nada?” Então, com essas duas orientações, a do presidente Lula e a da minha mulher, eu tinha que me dedicar profundamente às questões africanas.
E logo no início do governo eu tive a oportunidade de fazer uma viagem. Visitei, na época, seis ou sete países: Moçambique, África do Sul, Zimbábue, um certo atrevimento porque as grandes potências não estavam achando bom, mas eu achei que era importante… Moçambique, Zimbábue , África do Sul, Angola, São Tomé e Príncipe, Namíbia e Gana. Depois nós voltamos várias vezes. Era um pouco uma coincidência geográfica pro avião poder voltar pelo caminho. E era também um avião pequeno, um pouquinho maior do que aquele anterior, porque esse tinha um banheiro. E eu fui acompanhado até por um parlamentar que, no meio do caminho, falou: “Vocês trabalham demais, não é possível!”. Porque todo dia nós íamos em alguns lugares, não dava nem tempo de dormir. Mas foi uma viagem importante, e eu descobri coisas que eu não sabia que estavam acontecendo e interesses.
E eu voltei de lá com uma frase na minha cabeça. E a frase era: “A África tem sede de Brasil”. Porque eu sentia que o Brasil podia ajudar a África e a África precisava das coisas que o Brasil tinha. Porque não é que o Brasil seja um país desenvolvido, porque não é. Até hoje nós estamos tremendamente contra a desigualdade, mas ela persiste em muitas coisas. Eu vou contar uma coisa pra vocês, que talvez, assim, até por, digamos, vaidade corporativa, não devesse contar, mas o primeiro embaixador negro do Brasil, de carreira, foi promovido na minha gestão, na gestão do presidente Lula. Porque se perguntasse a qualquer diplomata se ele era racista ele ia dizer que não até a última gota. Mas você sabe como é que é. As pessoas frequentam os mesmos clubes, têm os mesmos amigos, vão aos mesmos cinemas e passam a apoiar um ao outro. É natural assim, em todas corporações. É natural, mas não é correto. Então nós conseguimos promover, já no final do governo, o embaixador Benedicto Filho, um grande embaixador hoje, chefe da área de Ciência e Tecnologia do Itamaraty.
Mas, enfim, isso mostra como as coisas tomaram tempo pra se realizar e tomam tempo pra se realizar até hoje. Então, eu vim da África com essa convicção, de que a África tinha sede de Brasil. E o presidente Lula, logo em seguida, foi em uma outra viagem também e foi mais ou menos aos mesmos países, mais concentrado no Sul, São Tomé, Moçambique, África do Sul, Namíbia e Angola.
Eu queria mencionar dois ou três fatos curiosos. Um é o seguinte: eu tive envolvido em muitas negociações, porque, no caso do Brasil, o ministro do Exterior é também o principal negociador comercial em questões, digamos, de OMC, de ALCA. Não é o ministro da Indústria e Comércio. É o ministro do Exterior. Ainda é e espero que se mantenha assim. E eu tinha prática de negociação. Mas, no caso da África, a minha negociação era com o público interno, porque havia uma permanente crítica no sentido de dizer que era perda de tempo… Ninguém tinha coragem de fazer uma observação de fundo racista. Nem tô dizendo que eles, no fundo, sejam racistas, mas eu tô dizendo que havia um grande preconceito. Eu me lembro que essa primeira visita foi menos criticada, talvez porque tinha Angola e Moçambique, países de língua portuguesa. Também tinha a África do Sul, que tinha a mística do Mandela que chegou ao Brasil e chegou a todas as classes no Brasil, sem dúvida alguma.
Mas, por exemplo, quando ele visitou a África Ocidental, outros países da África Ocidental, a cada parada eu tinha que dar uma entrevista de imprensa e explicar porque e dizer quanto que ia ter de negócios e quantos empresários. E, na verdade, os empresários inicialmente eram poucos também, porque nossos empresários também eram muito tímidos. E era uma dificuldade. E a única coisa que nos consolou é que isso ocorreu em 2005, no começo de 2005. Passado uns oito meses ou um ano, o presidente da China passou 12 dias na África, foi a oito, a dez países. Aí a pergunta da imprensa mudou: “Por que que o presidente Lula só foi a cinco?” Há sempre uma mentalidade colonial que, infelizmente, se mantém, que você precisa sempre de uma legitimidade externa. Seja dos Estados Unidos, seja da França, seja até da China. Mas, de qualquer maneira, existe essa necessidade de encontrar uma legitimação externa pras suas ações.
Então, mas nós conseguimos fazer muita coisa. Eu queria citar apenas dois fatos aqui, rápidos, e depois falar de alguns resultados. Mas dois fatos importantes. Um, foi minha primeira visita a Adis Abeba. Pra mim, foi uma coisa muito emocionante, por todos os motivos, por ser a Etiópia, um país tão antigo, de tantas tradições. Infelizmente, não pude conhecer a Etiópia toda, mas, pelo menos, ganhei um livrinho, fiquei lendo o livrinho sobre a Etiópia. E, na ocasião, encontrei também o presidente da União Africana, Alpha Konaré, que, em seguida, veio ao Brasil, logo em seguida, pouco tempo depois, e convidou o presidente Lula a visitar a União Africana. E essas coisas tomam um tempo pra ocorrer, acabou ocorrendo dois ou três anos mais tarde. Mas, enfim, foi um momento interessante, porque foi quando o Brasil decidiu, a convite do Konaré, abrir uma embaixada que não só fosse pra o governo etíope, mas também para a União Africana.
Um outro fato muito importante foi na Nigéria. Muito importante. Um encontro com o presidente Obasanjo. Naquele encontro, o presidente Obasanjo sugeriu que nós estabelecêssemos um mecanismo que seria, na visão inicial, mais Brasil-África. Como havia Índia-África, China-África. Mas o Brasil também estava muito empenhado, como está até hoje, na integração da América do Sul. Então nós contrapropusemos que fosse América do Sul-África. Dá muito mais trabalho, posso garantir, do que se fosse só Brasil-África. Já é difícil coordenar o Brasil, você convencer os empresários. Agora, 12 países, obviamente, é muito mais difícil. Mas fizemos a ASA. Teve já três reuniões e agora, há pouco tempo, um seminário pra revitalização.
Eu acho que é algo muito importante. São dois grandes continentes do Sul do mundo, a gente falou aqui da cooperação Sul-Sul, ela não pode se limitar ao Brasil. Uma das coisas muito interessantes que eu notei – agora não foi com a África, mas com os países árabes – é que muitos muitos presidentes que vieram ao Brasil estenderam a viagem, foram até o Chile, foram até o Peru. Por isso a ideia de chamar o conjunto da América do Sul para essa integração e essa busca de oportunidades com o mundo, com a África.
Então esses dois momentos: com o Alpha Konaré, que depois veio ao Brasil e convidou o presidente Lula, e o encontro Lula-Obasanjo foram de extrema importância. E devo dizer que os membros da nossa delegação estavam achando isso: “Pra que isso? Pouco negócio”. Olha, isso é de uma visão tão pequena, que é difícil dizer.
Vamos falar então, rapidamente, dos negócios. As pessoas no Brasil não têm muita noção disso. A África tem um PIB, hoje – dados de 2013, em valores de mercado – de US$ 2,7 trilhões. Em valores PPP, de equivalente per capita, de mais de US$ 3,7 trilhões e cresce mais do que a média mundial. Então a África vai ser, entre outras coisas, também um grande mercado. E não apenas um lugar pra você tirar recursos naturais, mas um mercado pra produzir localmente, pra própria classe média local. Enfim, é de uma grande importância e vai ter uma grande influência no mundo. Um PIB de 3,7 trilhões coloca a África entre as maiores economias do mundo, sem dúvida alguma, se tomar a África como um conjunto.
A África também nos dá lições de unidade. Muito antes da América do Sul ou da América Latina sonharem em ter uma organização que não fosse dependente de uma grande potência de fora, a África já tinha a organização da Unidade Africana e depois a União Africana. Então a África, em muitos aspectos, é também um exemplo para os países da América do Sul e é um exemplo o qual eles têm que seguir.
São inúmeros os projetos que o Brasil desenvolveu com a África na área de cooperação técnica. Eu não vou citar todos, mas talvez dois ou três pelo seu lado simbólico. Com o “Cotton-4” – os quatro produtores de algodão, todos países muito pobres e vítimas dos subsídios americanos e europeus ao algodão, que atrapalham muito o seu comércio – o Brasil desenvolveu um programa de melhoramento com a EMBRAPA, a nossa Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, e desenvolveu um programa de melhoria do algodão desses países. Depois o Togo se juntou. O “Cotton-4”, os quatro do algodão são Chade, Benin, Burkina Faso e Mali. A fábrica é em Mali, mas também há unidades em outros países. Depois o Togo também se juntou. E hoje há projetos em outros países também, inclusive Malaui, etc. Não sei com que velocidade eles tão andando, mas eu sei que continuam existindo. Então esse é um grande projeto.
Outro grande projeto, do qual eu tomei conhecimento na minha primeira visita a Moçambique, é o da fábrica de medicamentos antirretrovirais. Talvez ele não esteja com toda a capacidade que nós desejamos, o custo dos insumos é alto, etc., mas um grande passo foi também dado. É por essas e outras razões que o presidente da Namíbia, presidente Pohamba, na época, me disse algo que eu fiquei muito feliz, numa visita que eu fiz já como ministro da Defesa. Ele me disse: “O Brasil não nos dá o peixe; o Brasil nos ensina a pescar”. E eu acho que essa, digamos, deve ser a diferença da cooperação do Brasil com a de algumas outras economias, sejam tradicionais, sejam economias emergentes.
Enfim, todas essas questões nos aproximaram de maneira notável da África. Eu queria dizer, talvez pra terminar, porque haveria tantas coisas a falar, mas pra terminar, dizer duas ou três coisinhas mais. Primeiro, aqui, a presença da Guiné-Bissau pra nós é muito importante. Porque eu acho que a Guiné Bissau precisa muito do apoio não só do Brasil, mas também de outros países africanos. Naturalmente, nós sempre dissemos, apesar da existência da CPLP, que não queremos fazer nada sem que os países da região, da ECOWAS ou CEDAO também participem, mas precisa muito do apoio, do apoio nosso. E a demora, às vezes, algumas vezes, um perfeccionismo, uma exigência de que tudo esteja perfeito antes de que você possa começar a ajudar, muitas vezes apenas perpetua a imperfeição e os erros e até agrava, como nós vimos na Guiné-Bissau.
A última vez que eu estive tratando diretamente da Guiné-Bissau com o ministro do Exterior foi em 2010, justamente no encontro do presidente Lula com os países da África Ocidental. E, na nossa conversa, ficou evidente, que um dos principais doadores condicionava a ajuda a algo que era impossível acontecer no curto prazo. Então, o que aconteceu foi um agravamento da situação da qual, felizmente, agora a Guiné-Bissau saiu. E eu espero que, não só o Brasil e outros países africanos, mas também os países da comunidade internacional possam ajudar na solução do problema da Guiné-Bissau, que é um problema complexo, que exige a reforma das Forças Armadas, que exige, enfim, uma série de outras providências. Não é uma questão simples. Não é que ela seja difícil tecnicamente, ela é difícil politicamente também de serconcretizada. Então, precisa de muita determinação.
Então queria deixar essa palavra, porque eu acho que a boa-nova foi muito bem destacada aqui. A grande boa-nova da África pra nós é a Guiné-Bissau. E acho que trazer a Guiné-Bissau de volta ao convívio de todos esses foros é pra nós uma grande alegria e nós queremos muito que isso se mantenha e se perpetue. E eu digo isso, e digo aqui, e tô só repetindo pelo seguinte: porque quem faz e quem vai fazer a política africana não é só o governo.
O governo faz, o governo pode iniciar, pode tomar certas iniciativas que são próprias do governo. Mas quem vai cobrar é a opinião pública. Quem vai dizer “continue nessa linha, faça isso, tenha uma concepção dos direitos humanos, que não se concentre só na perfeição”… Eu não tô falando nada contra, somos muito a favor da democracia. E, aliás, a União Africana é também muito exigente. Quando há um golpe de Estado, ela age de maneira forte em relação aos países em que isso acontece. Mas nós temos que ser compreensivos com a evolução. Não é ser compreensivo com um ditador qualquer ou com uma pessoa ou com outra. É ser compreensivo com a necessidade de uma evolução gradual da situação na África.
E a África tem também, na área da política, muito a nos ensinar. O Kofi Annan secretário-geral da ONU, africano, de Gana, homem de grande valor – dizia muito, sempre que os africanos, quando têm um grande problema, eles se reúnem, sobretudo os anciões, mas acho que pode incluir os jovens também, se reúnem embaixo de uma árvore e ficam discutindo ali até encontrar a solução.
E, curiosamente, eu estava lendo outro dia um que é uma coletânea de ofícios, de relatórios de despedida dos embaixadores britânicos, “valedictiory reports”, como eles chamam lá, relatório dedespedida. Tem muito preconceito no meio, tem outras coisas, são dos anos 60, anos 70, ninguém viu, posso falar à vontade. Mas um desses relatórios é muito interessante porque, embora ele faça crítica, ele, por outro lado, reconhece o valor da busca da palavra, da busca… e essa queixa que frequentemente existe até em relação às Nações Unidas… Ah, é um “talk show”, mas como diz o Kofi Annan, enquanto as pessoas tão “talking”, elas não tão fazendo a guerra. E, às vezes, mais importante até que a solução que você encontra, é a maneira de você encontrar a solução. A maneira de encontrar a solução pelo diálogo, pela busca do consenso. E isso é uma tradição africana também, que eu acho que as democracias ocidentais deviam incorporar numa dose muito maior.
Então, eu quero dizer que a política do Brasil em relação à África, eu acho que, hoje em dia, está muito consolidada. Mas é preciso que a sociedade brasileira se interesse muito. Eu vejo que ela se interessa, eu vejo esses fatos, as ligações entre sindicatos. Outro dia eu fui ao Rio de Janeiro – aliás, foi a primeira palestra que eu dei no Rio de Janeiro depois que saí do Ministério. Foi num mestrado de Diplomacia da Saúde. Eu nunca pude imaginar que nós íamos ter um mestrado de Diplomacia da Saúde. Claro que, em grande parte, em função das ações que o Brasil desenvolveu na África, não só, mas em grande parte, as ações que o Brasil desenvolveu naquele continente.
E recentemente fui convidado, fui honrado pelo secretário-geral da ONU, com a nomeação para uma comissão presidida, aliás, pelo atual, não o antigo, presidente da Tanzânia, presidente Kikwete. É que é pra tratar de grandes crises globais da saúde. Então, quer dizer, o Brasil foi o único país latino-americano convidado, o Brasil, eu, ex-ministro do Brasil, uma representante de Botsuana que é encarregada de malária na África e um norte-americano, ex-diretor da USAID.
Então, é um reconhecimento que o Brasil tem legitimidade, que o Brasil vai dizer, vai ser ouvido. E eu vou terminar citando, repetindo, porque eu já falei isso várias vezes. Eu tenho um amigo, que é um professor africano, professor do Quênia, eu acho que ele é do Quênia, chama-se Calestous Juma e é professor de Harvard. E ele tem uma frase – perdoem aqui os africanos se isso pode parecer presunção, mas a frase não é minha, a frase é dele, eu apenas cito, porque acho ela boa. Diz assim: “Pra cada problema africano, existe uma solução brasileira”. Eu não sei se isso é verdade, mas, se nós seguirmos esse lema, nós podemos ajudar muito a África. E vamos ajudar também a nos engrandecer humanamente, que é talvez mais importante do que conseguir vender duas ou três toneladas a mais desse ou daquele produto.
Muito obrigado!